Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

oitentaeoitosim

05
Jun11

Oráculo

Jorge

   À hora da sesta de uma sexta-feira modorrenta, o sátiro Fauno povoou os sonhos da mãe da nascitura Maragarete. Era portador de palavras de bom augúrio: a filhota havia de propiciar muitas alegrias, ao largo de noites e dias. Capaz de desbravar embaraços estruturais e conjunturais com momices, chocarrices, paródias, risos e sorrisos, seria a alegria do lar e arredores. Os fados apontavam-na como porta-estandarte da alegria e da felicidade plenas, pois vinha a caminho o elixir da eterna juventude, uma primícia das deidades ofertada pelas boas prestações da humanidade. Pôs-se ao fresco, quando topou que a receptora se contorcia, disposta a encurtar a soneca.

   Quando nasceu deram-lhe a tradicional palmada de boas vindas no rabiosque. Margarete riu a plenos pulmões. Persignaram-se em surdina os assistentes sorumbáticos, de credo na boca. À beirinha da cama estava o genitor que assistiu à saída de Margarete do ventre materno, depois de muito persistir na intenção contrária, até ao limite da sua argumentação escolástica. Achava um despropósito ter de comungar a nudez das partes pudibundas da consorte com outros; nunca alinhara em ménages a 3, a 4 ou mais, como vinha descrito nos cânones, que o seu limite era as práticas politicamente correctas. Alinhou na praxe, assim que lhe comprovaram por a+b que, caso se esquivasse ao ritual a puérpera, arcaria para todo o sempre com comportamentos, atitudes e competências desviantes. Valha a verdade que ficou surpreso com a quebra protocolar, embora deixasse escapar um sorriso amarelo de orelha a orelha. Pôs-se ao fresco, quando lhe pediram que desse colo à filha, pois ainda não tinha treino suficiente e precisava de um cigarro urgente.

    Quando a levaram à escola pela primeira vez, brotaram por todo o lado os chorrilhos de risos, sorrisos e ademanes impregnados de boas vindas. Margarete riu a bandeiras despregadas, assim que pisou o ginásio do colégio cheio que nem um ovo de gritos lancinantes, uivos a condizer e olhares esbugalhados. Os colegas de admissão, os pais desconsolados e os instrutores ressabiados olhavam-na de viés e través. Entrevistado à má fila sobre as hipóteses que agora se colocam à existência de vidas para além da magnetosfera, um dos formadores presentes à data e agora no desemprego, respondeu que sim, que tinha estado na presença de um alienígena, na citada ocorrência. Contava já com 45 primaveras e 10 filhos e nunca conseguiu esquecer o episódio. Nenhum terráqueo se atreveria a tanto, pelo que só outro habitante de outra parte da Via Láctea se abalançaria a tal desplante. Sugeriu que procurassem a criatura e a exibissem numa galeria, de preferência, na baixa da cidade, uma forma de contribuir para a dinamização daquele espaço. Pôs-se ao fresco, quando se apercebeu que as suas palavras teriam eco e que a vingança da extra-terrestre poderia ser terrível, como sói acontecer.

    Quando a levaram ao primeiro dia de trabalho, Margarete chorou baba e ranho, não se lhe descortinou riso sardónico, sorriso amarelo ou ameaço de gargalhada, nos rictos da fácies. Levaram-na em braços ao seu posto na engrenagem, demonstraram que as máquinas não mordiam, muito menos o patrão e as chefias. De olhos esbugalhados, percebeu que lhe diziam que a higiene e a segurança eram máximas, a organização prodigiosa e até havia bocas-de-incêndio e caixinha de primeiros socorros nos sítios certos. O chefe mais próximo prometeu logo à primeira melhoria substancial do soldo; o segundo chefe mais próximo biprometeu que não haveria assédio da parte dele; o terceiro triprometeu horário flexível. Nada impressionada,  desandou dali inopinadamente, de boa cara, diga-se. Em alta grita, reuniram-se à porta do promitente local de trabalho altos representantes da sociedade, do mundo do emprego e do trabalho. Davam testemunho que o trabalho dignifica, que se nasce para ter família, para sustentar a família, para melhorar a vidinha. E exibiam tarjas, cartazes de encantar e palavras de ordem a rimar.

     Deu corda aos chanatos e  às vilas de Diogo. Pôs-se ao fresco, por receio que a arrestassem. Teve todo o tempo do mundo para rir-se a bandeiras despregadas. O eco converteu-se nos seu riso sardónico e o sátiro Fauno já não entra nos sonhos.  

Mais sobre mim

foto do autor

Subscrever por e-mail

A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.

Arquivo

  1. 2022
  2. J
  3. F
  4. M
  5. A
  6. M
  7. J
  8. J
  9. A
  10. S
  11. O
  12. N
  13. D
  14. 2021
  15. J
  16. F
  17. M
  18. A
  19. M
  20. J
  21. J
  22. A
  23. S
  24. O
  25. N
  26. D
  27. 2020
  28. J
  29. F
  30. M
  31. A
  32. M
  33. J
  34. J
  35. A
  36. S
  37. O
  38. N
  39. D
  40. 2019
  41. J
  42. F
  43. M
  44. A
  45. M
  46. J
  47. J
  48. A
  49. S
  50. O
  51. N
  52. D
  53. 2018
  54. J
  55. F
  56. M
  57. A
  58. M
  59. J
  60. J
  61. A
  62. S
  63. O
  64. N
  65. D
  66. 2017
  67. J
  68. F
  69. M
  70. A
  71. M
  72. J
  73. J
  74. A
  75. S
  76. O
  77. N
  78. D
  79. 2016
  80. J
  81. F
  82. M
  83. A
  84. M
  85. J
  86. J
  87. A
  88. S
  89. O
  90. N
  91. D
  92. 2015
  93. J
  94. F
  95. M
  96. A
  97. M
  98. J
  99. J
  100. A
  101. S
  102. O
  103. N
  104. D
  105. 2014
  106. J
  107. F
  108. M
  109. A
  110. M
  111. J
  112. J
  113. A
  114. S
  115. O
  116. N
  117. D
  118. 2013
  119. J
  120. F
  121. M
  122. A
  123. M
  124. J
  125. J
  126. A
  127. S
  128. O
  129. N
  130. D
  131. 2012
  132. J
  133. F
  134. M
  135. A
  136. M
  137. J
  138. J
  139. A
  140. S
  141. O
  142. N
  143. D
  144. 2011
  145. J
  146. F
  147. M
  148. A
  149. M
  150. J
  151. J
  152. A
  153. S
  154. O
  155. N
  156. D
  157. 2010
  158. J
  159. F
  160. M
  161. A
  162. M
  163. J
  164. J
  165. A
  166. S
  167. O
  168. N
  169. D
  170. 2009
  171. J
  172. F
  173. M
  174. A
  175. M
  176. J
  177. J
  178. A
  179. S
  180. O
  181. N
  182. D
Em destaque no SAPO Blogs
pub