Oráculo
À hora da sesta de uma sexta-feira modorrenta, o sátiro Fauno povoou os sonhos da mãe da nascitura Maragarete. Era portador de palavras de bom augúrio: a filhota havia de propiciar muitas alegrias, ao largo de noites e dias. Capaz de desbravar embaraços estruturais e conjunturais com momices, chocarrices, paródias, risos e sorrisos, seria a alegria do lar e arredores. Os fados apontavam-na como porta-estandarte da alegria e da felicidade plenas, pois vinha a caminho o elixir da eterna juventude, uma primícia das deidades ofertada pelas boas prestações da humanidade. Pôs-se ao fresco, quando topou que a receptora se contorcia, disposta a encurtar a soneca.
Quando nasceu deram-lhe a tradicional palmada de boas vindas no rabiosque. Margarete riu a plenos pulmões. Persignaram-se em surdina os assistentes sorumbáticos, de credo na boca. À beirinha da cama estava o genitor que assistiu à saída de Margarete do ventre materno, depois de muito persistir na intenção contrária, até ao limite da sua argumentação escolástica. Achava um despropósito ter de comungar a nudez das partes pudibundas da consorte com outros; nunca alinhara em ménages a 3, a 4 ou mais, como vinha descrito nos cânones, que o seu limite era as práticas politicamente correctas. Alinhou na praxe, assim que lhe comprovaram por a+b que, caso se esquivasse ao ritual a puérpera, arcaria para todo o sempre com comportamentos, atitudes e competências desviantes. Valha a verdade que ficou surpreso com a quebra protocolar, embora deixasse escapar um sorriso amarelo de orelha a orelha. Pôs-se ao fresco, quando lhe pediram que desse colo à filha, pois ainda não tinha treino suficiente e precisava de um cigarro urgente.
Quando a levaram à escola pela primeira vez, brotaram por todo o lado os chorrilhos de risos, sorrisos e ademanes impregnados de boas vindas. Margarete riu a bandeiras despregadas, assim que pisou o ginásio do colégio cheio que nem um ovo de gritos lancinantes, uivos a condizer e olhares esbugalhados. Os colegas de admissão, os pais desconsolados e os instrutores ressabiados olhavam-na de viés e través. Entrevistado à má fila sobre as hipóteses que agora se colocam à existência de vidas para além da magnetosfera, um dos formadores presentes à data e agora no desemprego, respondeu que sim, que tinha estado na presença de um alienígena, na citada ocorrência. Contava já com 45 primaveras e 10 filhos e nunca conseguiu esquecer o episódio. Nenhum terráqueo se atreveria a tanto, pelo que só outro habitante de outra parte da Via Láctea se abalançaria a tal desplante. Sugeriu que procurassem a criatura e a exibissem numa galeria, de preferência, na baixa da cidade, uma forma de contribuir para a dinamização daquele espaço. Pôs-se ao fresco, quando se apercebeu que as suas palavras teriam eco e que a vingança da extra-terrestre poderia ser terrível, como sói acontecer.
Quando a levaram ao primeiro dia de trabalho, Margarete chorou baba e ranho, não se lhe descortinou riso sardónico, sorriso amarelo ou ameaço de gargalhada, nos rictos da fácies. Levaram-na em braços ao seu posto na engrenagem, demonstraram que as máquinas não mordiam, muito menos o patrão e as chefias. De olhos esbugalhados, percebeu que lhe diziam que a higiene e a segurança eram máximas, a organização prodigiosa e até havia bocas-de-incêndio e caixinha de primeiros socorros nos sítios certos. O chefe mais próximo prometeu logo à primeira melhoria substancial do soldo; o segundo chefe mais próximo biprometeu que não haveria assédio da parte dele; o terceiro triprometeu horário flexível. Nada impressionada, desandou dali inopinadamente, de boa cara, diga-se. Em alta grita, reuniram-se à porta do promitente local de trabalho altos representantes da sociedade, do mundo do emprego e do trabalho. Davam testemunho que o trabalho dignifica, que se nasce para ter família, para sustentar a família, para melhorar a vidinha. E exibiam tarjas, cartazes de encantar e palavras de ordem a rimar.
Deu corda aos chanatos e às vilas de Diogo. Pôs-se ao fresco, por receio que a arrestassem. Teve todo o tempo do mundo para rir-se a bandeiras despregadas. O eco converteu-se nos seu riso sardónico e o sátiro Fauno já não entra nos sonhos.