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oitentaeoitosim

14
Ago11

A dívida original

Jorge

  Por fim deus criou Adão. Dado que já mais nada houvesse para criar nos seus domínios, pô-lo a viver à mão de semear. Gostou do que viu, pelo que delegou nele alguns poderes e entregou-lhe as chaves do jardim do Éden, situado algures na triangulação das terras de Prestes João, Shangri-la e a Lapónia. Adão adaptou-se em menos tempo do que leva a arder um fósforo. 

   No jardim celestial cresciam exemplares de todos os nomes de Lineu, por conta dum rio de águas límpidas que cantava as melodias de sempre. Adão palmilhava o jardim de ponta a ponta e de todas as primícias desfrutava. Não havia ali ninguém que se lhe fizesse sombra, por isso se sentia nas suas 5 quintas; ferrava o galho, quando queria e lhe apetecia; comia até à saciedade dos frutos e dos petiscos que aprendeu a cozinhar, às vezes que nem pisco, doutras que nem abade, mas andava sempre dentro da linha. Noutras horas de lazer praticava os desportos todos, estudava as ciências todas e entregava-se a múltiplas actividades culturais.

  - Tivesse a idade dele e era assim que me divertiria – suspirou o ente supremo, enquanto afagava as barbas e afastava dos seus olhos 2 nuvens furtivas.

  Da observação atenta de flores e bicharada resultou que tenha topado um casalinho em vias de facto. Causou-lhe engulhos a encenação: era a luxúria que o importunava, soube-o quando investigou o caso a fundo. A deus a coisa não quadrou bem. Obra de Satanás, está na cara!

   Adão era visto taciturno, de olhos encovados e com cara de caso. O criador aí percebeu não haver volta a dar-lhe; Adão era a sua obra-prima e queria-o viçoso e galhofeiro, para assim o apresentar no próximo conselho superior do Olimpo. Vai daí, estações do ano passariam a via única, só a primavera das flores. Mais, nos seus domínios todos os dias seriam natais.

   Os resultados foram palpáveis, mas o tédio voltou a instilar-se no ramerrame do quotidiano do primeiro homínida, nos tempos seguintes. Adão persistia em observar com potentes instrumentos a bicharada a procriar e autoflagelava-se. Aí o criador, na sua ilimitada sabedoria viu e não gostou. Não havia escapatória para a revolução.

   Deus apanhou Adão a dormir a sono solto e tirou-lhe uma costela do lado esquerdo que é o do coração. Lançou-lhe uns pozinhos de perlimpimpim, umas rezas e por fim materializou-se a seus olhos a mulher, Eva de sua graça. Acordou o dorminhoco que se babou involuntariamente com o que via.

   Foram ambos chamados à presença do omnipotente, uma excepção outorgada em ocasiões muito especiais. Deixou bem claro que as coisas deveriam seguir os trâmites normais no paraíso. Poderiam namoriscar, dar beijinhos pudicos, trocar carícias e piropos e até dar, dentadinhas nos lóbulos auriculares. Que o baile se fique por aí. Que se abstivessem de lhe passar a perna, pois era omnipresente. Que isso da privacidade fora chão que dera uvas e ele estaria cada vez mais de ouvido alerta.

  Na mesma oportunidade e para espanto do duo anunciou que estava a fazer crescer no Éden uma variedade de macieira gigantesca, de cariz orgânico e que, breve trecho, haveria de produzir cabazes infindos de maçãs de ouro. Com esta variedade, calculava ser possível guindar-se ao posto mais alto da criação do Outro Mundo, no próximo concílio das deidades. Que se mantivessem ao largo.

  Adão e Eva persignaram-se e disseram que sim com as cabeças. No primeiro lusco-fusco  que compartilharam, não se fizeram rogados, pois já eram crescidinhos. Foram direitinhos ao centro do paraíso, fizeram um piquenique libertário, no fim do qual foram servidas empadas de maçã orgânica, sem sabor aurígero, ao que se pôde apurar.

  Deu-lhes então para se renderem a uma afobação canhestra, própria de iniciáticos. O acanhamento foi quebrado pelo atrevimento de uma serpente retorcida que lhes pintou o quadro em poucas linhas. Incitou o casalinho a passar a vias de facto. E assim se fez, brincaram aos solteiros e casados e inventaram nessa noite todas as posições mais tarde reproduzidas por indução no Kama Sutra. Nesse mesmo dia Eva ficou de esperanças.

   Para cúmulo, nessa exacta noite, o criador pusera-se a olhar para dentro e cedeu a Morfeu. Depois de séculos de alerta e de imensa criatividade, passou pelas brasas. Há quem veja aí interferências residuais do maligno!

  Mal tinha acabado o festim dos pais primevos, caiu um corisco mesmo ao lado do tálamo em que Eva sacrificara as suas primícias ao prazer, sinal de borrasca, ora se era! Na sua omnisciência, mal sacudira o torpor, soube que os pombinhos tinham borrado a pintura. Fora!  Apontou com garbo e nota artística a porta de entrada única do paraíso. Adão ainda tentou sacudir a água do capote, porém seguiu o rumo indicado, antes que a mostarda chegasse ao nariz o omnipotente. No entanto, a observação de Adão não caiu em saco roto: o pacote das culpas recaiu direitinho nos ombros de Eva que, conformada, os encolheu. «É a vida!» - deixou cair o lamento, por entre 2 grossas lágrimas.

   Antes que dessem corda aos sapatos, o criador fê-los assinar um documento em papel timbrado em que se comprometiam a pagar a justa indemnização por perdas e danos, uma quantia inestimável, do quilate do orbe celeste. Como nem tivessem dinheiro para mandar cantar um cego, ficou estabelecido que eles e seus descendentes pagariam as favas, em prestações suaves, durante os séculos seguintes. Assim o determinava, o omnipotente.

  Puseram-se à procura do primeiro emprego; quando o conseguiram, passaram a comer o pão amassado com o suor do rosto, muito melhor que melgar o Camões, diga-se de passagem. Para abater a dívida foram autorizados a transaccionar bulas, títulos apenas supervisionados por ele e por uma comissão de anjos-da-guarda, criada adóque. Postou à porta do Éden uma coorte de querubins e serafins, com ordem expressa para que fizessem uso das espadas de fogo, caso eles tentassem o regresso ao bem bom no Éden.

   É essa dívida do primeiro pai e da primeira mãe que os humílimos descendentes de Viriato e Sertório também estão condenados a pagar, por igual e com língua de palmo.

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