Água no bico
Com água no bico
1 - Reza a fábula bem antiga que 2 panelas – uma de barro, outra de inox – entregues à inclemência de volumoso raudal, se viram lado a lado, na luta pela sobrevivência. Chuvas diluvianas tinham brotado em fartas bátegas, pelo que se viram à deriva, sem tampas, sem engastes e sem suportes. Foi então que a panela inoxidável estendeu a mão à de barro, sugerindo que fizessem figas ao destino e terçassem forças. Só assim teriam hipóteses de fintar o triste fado que lhes pressagiavam gurus e especialistas na matéria. «Desampara-me a loja, vá, põe-te a milhas!» - gritou-lhe do alto do seu enfado a de barro, quando ambas lutavam denodadamente por arribar a porto seguro. Habituada a tratamento digno de seus pergaminhos, daí pouco afeita às cambalhotas que a vida proporciona aos outros, a de inox, não se conteve e ripostou com toda a veemência: «Ó sua delambida enfarruscada, seu pote de graxa rançosa, assim te eximes ao meu honesto suporte da tua salvação?! Bem sabes que tenho muitas mais hipóteses de escapar a este nó górdio!». A de barro enxotou-a para longe: «Vai antes chatear o vate! Se me dás uma topada, mesmo a contragosto que lá vou eu para o galheiro! É preciso ter topete! Vai arranjar tacho para outro lado!». Não houve mais notícias do desaguisado, mas, nas entrelinhas, pode inferir-se que cada um dos tachos sobreviveu sem mais arrelias, na prossecução dos seus currículos normais.
2 – Reza a fábula bem mais recente que um argirocrata foi içado de bombordo para dentro de uma chalupa cuja tripulação plebeia multiplicava esforços para se manter à tona de água. O colectivo prodigalizava remendos para os diversos furos do casco, enquanto a água se insinuava através de número incontável de rombos, no meio do pantanal. O céu plúmbeo ameaçava cair sobre todas as cabeças, sem remissão. A borrasca rugia forte e feia, como se esforçasse por revolver as entranhas do planeta terráqueo. «Proponho-me remar para o mesmo lado que todos vocês.» - prometeu o hasteado, pouco afeito aqueles assados. Arregaçou as mangas e pôs as mãos bem tratadas à obra. Os tripulantes olharam-no de soslaio, desconfiados de tanta exposição. «Se buscas salvação, toca a trabalhar e não te penses em baldar» - disparou à queima-roupa Robin, o comandante-em-chefe. Aflito, o fidalgo redarguiu: «De acordo, mas não é preciso empurrar, que eu tenho olhos na cara e sei que não estou numa festa de arromba do jet set». Tobin, o contramestre replicou: «Aqui tens que dar o litro e entrar com uma nota grande para o petróleo». O predestinado trabalhou que nem mouro, pagou o petróleo e deixou grossa maquia - arrecadada em paraísos, purgatórios e limbos fiscais -, a ser gasta na aquisição de um navio catita. Para memória futura, consta que isto aconteceu uma vez sem exemplo, a contragosto dos paus-mandados que rezavam, à distância, ao Senhor dos Aflitos, de cabeça descoberta, por não terem conseguido demover um dos seus amados líderes de ceder a semelhante capricho. Não houve mais desenvolvimentos deste epifenómeno.