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oitentaeoitosim

31
Ago09

O mosca morta

Jorge

 

    Quando havia qualquer coisa no ar, Humílimo da Silva fazia-se notar. Por ser naturalmente provido de uma conformação anatómica que o habilitava a serpentear por entre tachos, pratos e latrinas, com fácies prazenteira, constava que, em vidas anteriores tinha encorpado toda a espécie de moscas, mosquinhas e moscardos. As desconfianças avolumaram-se, quando o viram nadar deleitado os 4 estilos clássicos na piscina da vizinha que mais parecia feita de sopa, tais os ingredientes de embelecer acrescentados ao precioso líquido. Outrossim desbobinava mesuras encantatórias em torno de carecas famosas, mas doutras vezes punha-se a adejar à volta das trapalhadas que cerzia aos que lhe faziam sombra. Contudo, sabia fazer das fraquezas forças: era tido por campeão de lutas sociais de cunho igualitário.
   Quando havia qualquer coisa no ar, Humílimo da Silva fazia-se notar. Era uma personagem de personalidades múltiplas. Pândito exegeta, fez insinuar a sua condição de cidadão do mundo. A quem tivesse dúvidas exibia a grossa carteira de passaportes passados em seu nome. Um deles exibia com singular orgulho, o do Principado da Pontinha, conseguido através de um contacto seu nas Filipinas. Os seus conhecimentos estendiam-se a todos os horizontes, pelo que alguns coevos também o apodavam de homem das 7 artes, das 7 ciências, dos 7 instrumentos e dos 7 ofícios. Num destes se destacou: virou exímio investigador da cor e do brilho dos minérios auríferos. A talhe de foice, medite-se na polivalência das suas andanças pela vida.
 1 – Quando foi gendarme, exigiram-lhe certificação liceal completa, além de formação complementar no domínio da sarrafada, apertos e suplícios. Demonstrou zelo, proficiência e mérito na escolha dos melros que ajudou a mandar para a choldra. Tinha olho para a coisa, nisso era superdotado, irmãos.
 2 – Quando foi coveiro, exigiram-lhe certificação a nível da magia, feng-sui, vudu, rosa-cruzismo, parapsicologia e transmigração das almas. Geria a contento as campas, os jazigos, a pira incineradora e os ritos. Responsável também do porvir das almas, encaminhava quase todas para o céu, que bem bastava lhes ter mostrado o purgatório e o inferno nesta terra. Terá sido visto em altas conjecturas e confabulações, donde derivava muitas as suas efabulações, com as alminhas mais impenitentes. No proveito é que está o ganho, irmãos.
 3 – Quando foi copista, exigiram-lhe certificação a nível de desenho, artes gráficas, criptografia, grafologia e ortografia de 2 línguas mortas e 3 vivas. Esmerou-se na produção de calhamaços, dramalhões e novas versões destinadas ao adorno de prateleiras. As recomposições letradas e iletradas nunca lhe fora contestadas, porque tinha sido vacinado contra o livre arbítrio. Mas curou-se depressa, irmãos.
  4 – Quando foi paineleiro, exigiram-lhe a certificação a nível de politologia, densimetria óssea, econometria, politologia e feitiçaria, entre outras. Sempre exibiu grande talento e sempre falou a seu talante. Faltava alguém para opinar sobre a queda do cabo Chato? Aí estava ele prestimoso, sempre disponível para deslindar a situação. Destarte construiu reputação nas centrais nacionais e internacionais da formação, informação e contra-informação. Ele sabia-a toda, irmãos.
   5 – Quando foi regedor de freguesia, exigiram-lhe certificação a nível de regionalização, betão, cimento armado e alçapões de lei. Partidário da máxima que diz que «quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é burro ou não tem arte», tentou levar a governação a bom porto, ou seja, água ao seu moinho. Por isso mesmo recebeu os encómios dos defensores das energias a modos de alternativas. Depois quis partir para outra, irmãos.
    Era dia de halloween e ele praticava para rainha má, transvestido num disfarce de moscardo fusco. Ultimava os preparos, quando, esbaforida, a chefe da tribo dele entra por ali dentro como cão por vinha vindimada. Pelo olhar, cabelos, olhos e vestidos exorbitados e exorbitantes, via-se que estava com os azeites. Tinha acabado de acordar de bunda voltada para a lua. Pior ficou, ao pôr os óculos em cima das notícias. Soube então que Humílimo se preparava para uma mijinha incontinente fora do penico.
   Está ali uma mosca a calhar, pensou a chefe, sem os óculos da praxe. Ela detestava baratas, moscas e ratos, tudo bicho necrófilo, sacripanta e saprófito. Saca do semanário pesado do passado fim-de-semana, fez pontaria, zás catrapaz. Acertou em cheio, pois a danação confere maior precisão de tiro. Nisto abre-se o pote das migas ao Silva. Ficou-se a esbracejar de estupor a um canto escuro, o local do abandono dos grilos que soçobram nas lutas de vida e morte severina.
 
28
Ago09

Ano farto

Jorge

 

 No primeiro acto eleiçoeiro do ano, os partidos mais votados foram mos, met, ppv e ppc, com 15%, 14%, 13% e 12%, números arredondados, respectivamente. Os partidos do costume, em coligação, conseguiram 41%. A sociedade civil estuporou-se. Os comentadores não gostaram. Os patrões não gostaram e os sindicatos também não. As eleições foram realizadas na primavera, mas deixou hirtos os observadores internos e internacionais. O suserano convidou a coligação dos partidos do costume para formar governo, como era costume, desde que as eleições estavam em vigor. Houve protestos nas ruas, engarrafamentos provocados, greve de braços caídos e greves de fome. Muitas cabeças rachadas depois, o novo governo foi entronizado.
   No segundo acto eleiçoeiro do ano, os partidos mais votados foram pnb, pta, pv e pb, com 15%, 14%, 13% e 12%, números arredondados, respectivamente. O primeiro encheu o reino de autarcas a norte, o segundo no centro, o terceiro no sul e o quarto a leste, oeste e adjacências. Mas, os partidos do costume, reunidos em coligação, conseguiram eleger a maior parte dos presidentes, camaristas, presidentes de corporação e presidentes de assembleias. A sociedade civil estuporou-se um pouco menos. Os comentadores desgostaram um pouco menos. Os patrões desgostaram um pouco menos e os sindicatos também. O suserano degustou uns percebes. Houve protestos nos jardins públicos, engarrafamentos nos caminhos vicinais, greve de braços ao ar nos locais de trabalho e grave às bicas no horário de trabalho. Algumas cabeças rachadas depois, a sociedade civil serenou.
   No terceiro acto eleiçoeiro do ano, os partidos mais votados foram os do costume. Fizeram o pleno, pelo que Antuérpia desejava-os de braços abertos. Os comentadores gostaram. Os patrões gostaram e os sindicatos igualmente. O suserano foi despedir-se ao cais de embarque, deu-lhes muitas pancadinhas nas costas, enquanto a sociedade civil entoava em coro o novo hit musical Longe dos olhos, perto do coração. Ao fundo ouvia-se foguetório. Os eleitos, agarrados à prole e pelas comitivas, seguiram muito felizes a caminho do exílio.
28
Ago09

Jornadas

Jorge

 

   Reginaldo tira o corpo da cama, sacode os ossos, limpa as remelas, bebe um copázio de água e beija Maria que dormia ainda comprazida. Sem tardança, põe pés a caminho da pastelaria que é café, restaurante, cervejaria e quiosque, cinco em um e mais não, porque a fantasia não permite. Desfruta o pequeno-almoço dilecto: frutos secos, mirtilos, morangos, abacate e cereais de mistura, embebidos em água requentada. À entrada, do lado esquerdo, numa arrecadação funciona uma loja de sobrado, onde tinha comprado 3 jornais: um desportivo, um generalista de língua local e outro da estranja. Compra sempre os mesmos, pois não se quer ser distraído da sua linha cívica, que lhe vem do berçário, de mudar só quando se é burro. Meia hora dá apenas para sopesar os títulos, que o caroço das mesmas será madurado mais tarde. Às quintas, acrescenta-lhes um hebdomadário pátrio.
     Maria diz que Reginaldo despende demais em magazines formais e compraz-se em dar-lhe sumiço aos jornais.
   A opção pelas 4 gazetas resulta de uma escolha criteriosa. No burgo, a oferta de jornais pátrios ou regionais, semanários, edições especializadas e de paróquia exorbita da normalidade dos países mais felizes: persegue o padrão da distribuição de universidades, clubes de futebol, ginásios, ópticas e festivais. Andam os intelectuais numa fona a concluir da irredutibilidade da conversão dos indígenas aos valores da cultura média, em artigos de opinião, conferências, artigos especializados, seminários e intervenções nos média. Vai-se a ver, o dispêndio per capita da celulose pede meças a qualquer outra coutada. Ali há gato!
    Maria diz que Reginaldo despende demais em magazines formais e compraz-se em dar-lhe sumiço aos jornais.
   Um dia acaba-se o jornal desportivo da sua predilecção. A partida sistemática dos bons valores indígenas – mais sentida no chinquilho, corfebol e esqui - para latitudes tão distantes como a Gronelândia, Papuásia e ilhas Marshall encurta os relatos da gesta dos paisanos. Longe dos olhos, longe do coração. O director tenta de tudo, amplia as letras, as fotos, as infografias, os espaços publicitários e o espaçamento entre linhas. Só não consegue trocar as voltas ao destino. Partiu para outra.
  Maria diz que Reginaldo despende demais em magazines formais e compraz-se em dar-lhe sumiço aos jornais.
   Dois meses volvidos, o diário indígena dos amores desembestados de Reginaldo vai à vida, à míngua de notícias, pois a cobertura de crimes, incêndios, dramas existenciais e aventuras do jet set tinha sido atribuída em regime de exclusividade aos jornais das paróquias, dos departamentos governamentais e estabelecimentos escolares. A autogestão atingia o ponto máximo, ninguém quer depender de ninguém.
   Maria diz que Reginaldo despende demais em magazines formais e compraz-se em dar-lhe sumiço aos jornais.
   Outros 2 meses para a frente, o semanário dos amores de Reginaldo definha de morte macaca: o director cansa-se de receber telefonemas, mensagens, emeiles, faxes mimosos dos assessores do régulo que lhe contam os passos e zarpa para as Caraíbas. Aí conta  treinar com o melhor velocista de todos os tempos, a modalidade de olho vivo e pé ligeiro. Volta, quando estiver perdoado.
   Maria diz que Reginaldo despende demais em magazines formais e compraz-se em dar-lhe sumiço aos jornais.
  O golpe fatal é desfechado às 3 da tarde daquele mês de verão iníquo, quando o jornal da estranja desaparece das bancas. Fazem de tudo os colaboradores: cortes de estradas, queima de pneus na via pública, nudismo no parque central, ecoterrorismo e sequestro do presidente do conselho de administração. De nada lhes valeu, o que tem de ser tem muita força, ditame de sutra.
    Ontem de manhã, Reginaldo, sem dar cavaco ou pastéis de Belém a alguém, comprou um acervo de bilhetes de avião, de ida e volta em aberto, para as principais praças do sial terráqueo. Nos principais aeroportos, não havendo paralisações, há sempre jornais à discrição.
     
 
22
Ago09

Heróis do asfalto

Jorge

 

  Feliciano é um estudante encartado por vocação e, por mor disso, recusa todas as oportunidades de passar além do nível básico. Um dia perde as estribeiras e despeja tremenda sarrafada nos queixais do energúmeno que o tinha provocado no intervalo entre duas aulas de 180 m. O colega de profissão sobrevive em estado vegetativo durante 5 anos, período durante o qual definha a olhos vistos, até se resumir a pele e osso, pelas vésperas do último suspiro. Tivesse ele aplicado o golpe em cima de um ringue, com um comparsa da mesma idade e peso e ninguém levava a mal. Ossos do ofício, dir-se-ia e ninguém pagava um chavo, azares todos têm na vida. Por isso lhe deram a escolher: a deportação ou o suicídio provocado. Claro que optou pela segunda, a longo prazo. Enjaulado preventivamente numa instituição de bem-fazer, é  condenado a assar leitões e derramar asfalto nas veredas e becos, durante um período probatório de 5 anos. Quanto à indemnização devida, livrou-se de boa, pois se provou não ter lugar onde cair morto. Recuperado do abalo, retoma o lugar na escola, até que cai nas garras das novas oportunidades e chega a mestre em pontes e portos, em 5 anos.
   Tereso, jovem esperança da empresa em que labuta por um cheque verde, abusa dos púcaros e dos fumos num meio-de-semana com amigalhaços e amigalhaças. De madrugada solta a arreata dos muitos corcéis mecânicos do coche eufórico de uma namorada de ocasião e bolina estrada fora. O carro não rola sobre o asfalto, ele é que paira sobre a fita preta do macadame, qual herói provindo do espaço exotérico disposto a entregar de mão beijada a liberdade à humanidade. A cabeça está atordoada de gritos histéricos de pais, irmãos, primos e primas de gema ou adoptivos «Tu és o mais bonito!», «Tu és o maior!». Nisto há um clarão que se levanta na noite escura, uma espécie de sarça misteriosa que se extingue em 5 minutos e com ela fenecem 5 jovens existências. Para mal dos seus pecados, Tereso sobrevive incólume e todos lhe caem em cima. Se as 5 vidas não estivessem de volta, daí por 5 semanas, teria de optar entre a deportação e o suicídio provocado. Escolhe a segunda à primeira, mas a primeira à segunda. Abala desarvorado para a parvónia mais próxima, sobraçando uma mala de cartão. Repete a acção, sem ganhar qualquer arranhadela em mais 5 locais do globo; reivindica e obtém o estatuto de herói.
   Recém-chegado de uma viagem de comboio a electricidade gerada pelo vento, Ambrósio vinha de pôr as pantufas, quando a campainha da porta gemeu. Borrado e intrigado, alcança-a de um salto em comprimento, para a escancarar a 5 indivíduos, enfarpelados de gato pingado, pinguim, iupie, ceo e espantalho, respectivamente. Que fizesse o favor de os acompanhar ao precinto mais próximo. Pois sim, tartamudeou um Ambrósio cor-de-caliça. Fazem-lhe 5 perguntas e tiram a coisa a limpo. Afinal, ele tinha acabado de passar a alfândega da estação central da parvónia sem nada declarar, com documentos do irmão gémeo. Que mal havia nisso, se a prática era corrente nas outras parvónias todas?! Nada de especial, pois. O seu problema, amigo, é que a gente sabe que o seu irmão gémeo acaba de tirar uma licenciatura, um mestrado e um pós-mestrado de engenharia de estrada, às escâncaras, aqui ao lado. Foi então que lhe ocorreu a simpática ideia que as estradas haviam sido abolidas por despacho constitucional. Por isso lhe deram a escolher: a deportação ou o suicídio provocado. Saltou da janela, antes que lhe pusessem a corda do suicídio ao pescoço. Em cima da cama da espelunca clandestina que havia alugado, foi encontrado o «canudo» que certificava Ambrósio com o curso de demolidor de estradas e vias correlativas.
18
Ago09

A praia de areia fina finou-se

Jorge

 

  A radialista anuncia bom tempo, logo pela manhã. Podia confiar-se na informação, chuva não haveria e a temperatura estaria consumível, caso o vento não embirrasse e desatasse a soprar por todos os quadrantes. Estava-se no estio, a altura de tratar do bronze, um requisito estranho dos caucasianos que, não raras vezes, implicam com a tez de outros irmãos. Fontes bem colocadas, garantem que o bronze atrai outros metais, por mais vis que sejam. Pelo menos há quem tenha tal percepção.
   Atenta às notícias, a família Silvestre enche de armas e bagagens requeridas pelo caso o carrocim e parte para o litoral arenoso, ali à mão de semear. Difícil foi arranjar local para aparcar, mas, ao fim de uma hora de vãs tentativas e muito praguejar, lá se encontrou um naco de passeio que se pôs a jeito. Seguiu-se a luta pela posse efectiva de uma franja do areal, nada que 3 espirros à maneira não tenham solucionado de pronto o imbróglio. (A gripe porcina assusta, não é?). Teve de ser bem negociada o estabelecimento do guarda-sol, pois o sol não sossega e toda a gente tem direito ao refrigério da sombra ou aos dardos do astro-rei. Alaparam, despojaram-se, estudaram as confrontações, atiraram-se aos morfos e depois à água, tudo isto no meio de um chinfrim dos diabos.
  A dois mergulhos e uma hora de tostadura à maneira, seguiu-se um intervalo, aproveitado para desenferrujar mais as pernas. Nada melhor que tentar uns chutos, dez malabarismos e 12 raquetadas. Mais do que isso não permitia a concorrência que vinha de todos os lados e a sã convivência democrática não admite excepções. Na praia aprende-se a vida. E ainda jogaram às cartas, a ver quem pagava a bica e o bagaço no restaurante do concessionário que não tinha duche
 Um passeio à beira-mar reconfortou os músculos, os órgãos, os tecidos e as células todas e deu para pôr as conversas em dia. O tema daquela hora era o da vizinha famosa que tinha sido lobrigada suspensa do braço de um marmanjão recém-caçado. E cá vai mais uma sessão de mergulho retemperador!
   Os passos trouxeram-nos de volta ao seu rincão de areia e nada, nem toalhas, nem guarda-sol, nem roupas, nem… areal! Os veraneantes da praia concorrente deram-lhes as más novas: uma onda viva visitara aquela praia e regressara ao buraco pelágico com todos os pertences, seres e haveres. Os estudiosos ainda estudam como compensar o comércio pela areia perdida.
17
Ago09

Nádia dá volta ao Bilhar Grande

Jorge

 

 
    A vida de Nádia  começa atribulada. A recusa em dar a volta no ventre da procriadora quase lhe valia o passaporte para o outro mundo. Não havia volta a dar, pelo que fazem cesariana à mãe. Havia de trocar voltas ao destino, vida fora. Uma, porém, foi difícil de dar.
   Fartos de saber que o trabalho dignifica, os pais vêem-se no desemprego. Os avós haviam comido raízes de ervas danadas, acompanhadas de água fresca, coisa impensável em tempos de paz, em plena guerra. Em tempo de paz comer pouco, de tripas encostadas às costas e calar muito, apesar do grande alarido nos médias levantados por quem não se abstém de leitão da Bairrada regado a champanhe, não se admite. Por isso, decidem passar-se para o outro lado do espelho. Fogem à tentação de frequentar cursos intensivos à la carte, pedem dinheiro a familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos e empatam tudo numa empresa de médio alcance, de apoio à infância desvalida. Com sucesso: de colaboradores dilectos, passam a recolher, despedir e empregar colaboradores de toda a comuna a recibos lilás, a cor da moda de então. Nos 25 anos seguintes mudaram as cores dos recibos, mas não faltou o dinheiro lá em casa para a paparoca, para as férias, para os carros, para os trapinhos de marca, para os festivais estivais e para as tecnologias de ponta. Fazia-se os preparativos para Nádia dar a volta
   A petiz faz a instrução sem falhas, pois sempre esteve internada de dia num colégio de padres e freiras e à noite tirava folgança nas festas, bares, cafés, restaurantes, e nas buates melhores dos arredores. Aprende línguas, piano, clarinete, saxofone e powerpoint. Quando teve de optar por uma universidade, optou por Bolonha, pois era o máximo. Tirou bacharelato, licenciatura e mestrado em gestão de empresas e similares. Mas, faltava dar aquela volta à vida…
    Um dia lê o anúncio sobre o especialista mor do planeta; sai no jornal do clube, juntinho aos anúncios de relax e das festanças da alta sociedade. Mete-se em brios e jura aos namorados todos que vai finalmente dar a volta por cima. Faz a bateria de exames de 3ª e 4ª dimensão convencionados, os homeopáticos todos, as infusões e rezas todas. Por fim, a verdade raiou, quando tentou gamar a bracelete de ouro do especialista mor. Para padecimentos de cleptomania, havia 2 processos de cura: cortar ambas as mãos ou dar largas à tendência até fartar.
    Opta pela segunda e aceita ser banqueira. Curou-se a 90%, nos primeiros 10 anos. Ajudou a criar a actual crise, pelo que se curou em definitivo. O suave milagre da volta foi pago com acções, títulos do tesouro, futuros e pretéritos, dividendos, derivados, depósitos com e sem retorno, cartões e lugares em administrações que depositou na secretaria da ordem das ciritas calçadas, tapadas e mudas até ao pescoço.
 
16
Ago09

Comércio justo

Jorge

 

   Hermenegildo tem família numerosa e divorciou-se, há meses. Um dia vai ao mercado abastecedor e compra umas caixas de frutas, outras tantas de hortaliças e outras de legumes. Feitas as contas, muito dinheiro fica em caixa. Mas, levanta-se cedo, aliás levantava-se sempre cedo, para cumprir as tarefas lá na fábrica, mas nas férias não se olha para o relógio.
 Vai ao café e põe-se a enumerar as vantagens do mercado abastecedor, umas dez, por alto. Diz alto e bom som que toda a gente deveria fazer como ele. Por essa e outras que não vêm ao caso, é declarado persona non grata do dito mercado e ninguém mais lhe vende ponta de um chavelho.
   Hermenegildo tem família numerosa e divorciou-se, há meses. Um dia vai a uma dessa empresas de comércio por grosso e compra muita papinha para a comunidade. Feitas as contas, muito dinheiro ficou em caixa. O horário de funcionamento estende-se do nascer ao pôr-do-sol, por isso arranja tempo, à conta das férias.
  Vai ao café e põe-se a enumerar as vantagens do comércio por grosso, umas dez, por alto. Diz alto e bom som que toda a gente deveria fazer como ele. Por essa e outras que não vêm ao caso, é declarado persona non grata do estabelecimento por grosso e ninguém mais lhe vende ponta de um chavelho.
   Hermenegildo tem família numerosa e divorciou-se, há meses. Um dia vai a uma lota e compra peixe que dava para um mês. Feitas as contas, muito dinheiro fica em caixa. Levanta-se cedo, mas ficou-lhe a caminho, pois tinha que ir fazer uns biscates para arredondar os proventos, mesmo em período de férias.
      Vai ao café e põe-se a enumerar as vantagens do comércio por grosso, umas dez, por alto. Diz alto e bom som que toda a gente deveria fazer como ele. Por essa e outras que não vêm ao caso, é declarado persona non grata da lota e ninguém mais lhe vende a ponta de uma barbatana nessa lota.
 Hermenegildo tem família numerosa e divorciou-se, há meses. Três dos filhos precisavam de vidrinhos, para verem as paisagens em condições. Bate à porta de um amigo importador de lentes e armações, em Pêra. Feitas as contas, muito dinheiro ficava em caixa, se comprasse o produto ao amigo que conhecia um técnico que fazia o jeito de graduar as lentes. Estava de férias e tem tempo de sobra.
   No dia seguinte vai ao café e fala grosso sobre as vantagens de comprar óculos e aros fora do circuito que dá pouco ao produtor e muito ao intermediário. Diz alto e bom som que toda a gente deveria fazer como ele. Por essa e outras que não vêm ao caso, é declarado persona non grata do estabelecimento e ninguém mais lhe vende óculos, mesmo com dinheiro à vista.
   Hermenegildo tem família numerosa e divorciou-se, há meses. Nunca mais há-de fazer férias…
14
Ago09

Senhor, estou farto

Jorge

 

  Durante muitos anos, naquele recanto do mundo, os dias naturais tornaram-se lúgubres e havia quem dissesse mesmo que as noites naturais tinham exorbitado do seu mandarinato e duravam mais. Chamados à ordem, uns sábios disseram porque sim e outros disseram porque não, logo tudo o que estava a acontecer era apenas uma ilusão de óptica. Pelo que a maioria dos indígenas – a maioria era indigente – desatou a comprar óculos claros na feira semanal mais próxima.
    Um arlequim chocarreiro, de riso mavioso e voz à maneira, aproveitando-se da abertura da marcassita nas bolsas de derivados nacionais, atreveu-se a arrotar postas de pescada da boa na praça pública, onde se juntava pouca gente. Ouviram-no dizer que o prolongamento da noite natural se devia a buracos negros da plataforma abissal. Riram a bom rir, mas não lhe deram grande crédito à ideia, vinda como vinha da boca de um engatatão das dúzias, desses que a sociedade admira, perdoa e reprova, tudo ao mesmo tempo. Atrevidote, noutro dia, declarou pelas barbas do profeta que a arritmia dos dias e noites se devia ao facto do mandão do burgo ter a ousadia de desfilar nu por ruas mal afamadas. Isto pôs muita gente a rir às escâncaras, dentro de casa, embora cá fora afivelasse um riso sardónico. O pessoal do controle irritou-se com a situação e esteve vai-não-vai para proibir o riso em toda a extensão do território nacional, ZEE incluída. Fazer pouco dos que fazem muito nunca deu louros a ninguém, assim pensavam os próceres do regime que se puseram também a rir a bandeiras despregadas.
    Entretanto o dia natural voltou à sua sincronia astrológica, 12 horas no início das estações intermédias, mais e menos antes e depois. O arlequim guardou os seus pergaminhos, nas suas sete quintas. Teve a prova que a má consciência dos novos mandadores não lhe permitiria ir mais além da chinela do sapateiro. E fez-se sapateiro de poucos chinelos e sapatorras nenhumas. Bobos da corte bojardeiros e sevandijas ajudaram a que fosse despejado no palco do esquecimento. Mais depressa se perdoa um par de cornos que a ousadia de pôr preço à própria pele. A ousadia de ser diferente e altruista, costuma ser paga com a marginalização pelos seguidores da ideologia do não me comprometas. Fugazmente o arlequim do riso mavioso fazia uma perninha nos seus domínios, mas percebeu que já não era benquisto. As mágoas levou-as para o túmulo.
   Morreu e podia ter ressuscitado ao terceiro dia. Não o quis.
   
13
Ago09

Lapidar

Jorge

 

 António borda a rainha em pano de linho cru. Diz-se à boca pequena que António é um artesão.
 Antónia pinta quadros cubistas, surrealistas e da nova vaga. Diz-se nos médias que Antónia é uma artista.
 Maria recorta alfaias agrícolas em cortiça. Diz-se à boca pequena que Maria é uma artesã.
 Mário apresenta criações tridimensionais com desperdícios da sociedade de consumo. Diz-se nos médias que Mário é um artista.
 Carlos compõe cestos, cestinhos e açafates em verga ou vime. Diz-se à boca pequena que Antonieta é uma artesã.
 Carla faz fotografia mono e policromática, com mensagens subjacentes. Diz-se nos médias que Carlota é uma artista.
 Serafina faz versos à desfilada que rimam de 2 em 2, de sentido linear e único. Diz-se à boca pequena que Serafina é uma artesã das letras, vulgo poeta popular.
 Serafim burila os sons, os tons, as letras, as palavras e as frases, sujeitas a interpretações mil. Diz-se nos médias que Serafim é um artista, género escritor ou poeta.
 Joana canta brejeirices e o amor ao próximo, à terra e a deus, ao sabor de melodias lhanas. Diz-se que Joana é uma artesã, subgénero artista popular ou pimba.
   João canta mensagens, poemas de grandes líricos ou letras de intervenção, derivadas em preceitos de reconfortante musicalidade. Diz-se nos médias que João é um artista, subgénero cantor
   Luísa faz instrumentos musicais à unha. Diz-se à boca pequena que Luísa é uma artesã.
   Luís faz instrumentos musicais na sua fábrica. Diz-se nos média que ele é um artista, subfilo empresário.
   Laurentino, pequeno empresário, comprou meia dúzia de peças de artesãos renomados e guarda-as em cofre domiciliário. Laurentina, empresária de renome, converteu muitas acções em quadros, estátuas, originais musicais, alfarrábios e edifícios patrimoniais.
   Filipe assume-se como artesão e artista. O acórdão do tribunal mais supremo decide que seja lapidado.
 
   
09
Ago09

Nacional-porreirismo

Jorge

 

   É uma menina prendada, nos seus vinte e picos. Aprendeu que na cidade é que se está bem, os desfiles da moda estão lá, as lojas de marca também, os cabeleireiros e tatuadores sobretudo, os tipos do jete set e do pilim, idem idem. Tem um palminho de cara, um busto piramidal, um rabo q.b., umas pernas talhadas a cinzel e uns pés clássicos, sem o mínimo vislumbre de desfeita. Um corpinho bem tratado faz a diferença, é uma mais-valia, apesar dos avanços feministas.Toda a gente lhe entoava loas, que mais bonita não existia, sobretudo os pais vulgares de Lineu, embasbacados por terem sido contemplados com semelhante garridice.
   Batem-lhe à sineta do apartamento e dizem que a querem contratar para apresentar. Querem-na a apresentar o renomado Serão para trabalhadores, na têvê com fibra. Ela diz que sim ao convite e a todos os eventos sociais que lhe estão associados, a montante e a jusante. Os contratantes cedem-lhe de bom grado uma enciclopédia, destinada a suprir falhas de cultura geral, mais um monte de trapinhos duma casa conceituada e produtos de beleza de outra.
    «Senhoras e senhores, agora vamos escutar o insigne cantador que derrete corações, até os empedernidos». O rapaz trina uma melopeia de louvor ao amor, acompanhado pela orquestra sinfónica do bairro. Faz-se um intervalo para publicitar 5 champôs, 5 iogurtes, 5 detergentes, 5 telemóveis e 5 empresas bancárias ou coisa-que-o-valha.
    O co-apresentador, um rapaz estiloso, solto de palavra, de riso e de siso, despeja cargas de brejeirice, beijos aos molhos, larachas a condizer e promove campanhas de coitadice, subsidiadas pelos entediados da campanha oficiosa o-trabalho-induca-e-o-vinho-enstrói. Perguntam ao emplumado rouxinol o nome, a naturalidade, estado civil, a filiação e contratos a curto, médio e longo prazo. Com dentes pepsodentes à mostra, o convidado não se faz rogado e logo despeja a lista das feiras populares, bailes de aldeia, festas de casamento e missas cantadas a que dará o seu contributo a troco de grossa maquia. Extraordinário, fantástico, glorioso, eterno! – gritam em uníssono os mestres da cerimónia, sem acrimónia.
  Vem um plumitivo diplomado, acabadinho de comprar um turíbulo. Porquê, para quê, quanto custou, qual o objectivo, modo de usar – as perguntas saltam como azeite em fritadura. Extraordinário, fantástico, glorioso, eterno! – gritam em uníssono os mestres da cerimónia, sem acrimónia. Novo intervalo para publicitar 5 champôs, 5 iogurtes, 5 detergentes, 5 telemóveis e 5 empresas bancárias ou coisa-que-o-valha.
   Anunciam um baladeiro, cantor de intervenção de longa data, escritor realista nas horas vagas e subscritor afamado de abaixo-assinados de larga visão social. Ele não se faz rogado, canta, encanta e responde ao inquérito: logo despeja a lista das festas populares, festivais de cinema e teatro, plenários, festas da estudantada e comícios a que dará o seu contributo a troco de farta maquia. Extraordinário, fantástico, glorioso, eterno! – gritam em uníssono os mestres da cerimónia, sem acrimónia.
  Outro intervalo que a banha-da-cobra brilha mais de mistura com pichisbeque
   Intervêm ainda um engolidor de lanças, um tarólogo, um pagador de impostos e um tipo que vive num 5º andar e se dá mal com os ocupantes das oficinas das caves. Revezam-se os convidados, as entrevistas não mudam, os intervalos não mudam, todos os dias, todas as semanas, todos os meses, todos os anos. Fantástico!
   A moça prendada acaba de receber das mãos venerandas do venerável primeiro colaborador do suserano a mais alta comenda da cóltura, devido ao alto coturno das suas prestações.
 
   

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