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Ago09
O mosca morta
Jorge
Quando havia qualquer coisa no ar, Humílimo da Silva fazia-se notar. Por ser naturalmente provido de uma conformação anatómica que o habilitava a serpentear por entre tachos, pratos e latrinas, com fácies prazenteira, constava que, em vidas anteriores tinha encorpado toda a espécie de moscas, mosquinhas e moscardos. As desconfianças avolumaram-se, quando o viram nadar deleitado os 4 estilos clássicos na piscina da vizinha que mais parecia feita de sopa, tais os ingredientes de embelecer acrescentados ao precioso líquido. Outrossim desbobinava mesuras encantatórias em torno de carecas famosas, mas doutras vezes punha-se a adejar à volta das trapalhadas que cerzia aos que lhe faziam sombra. Contudo, sabia fazer das fraquezas forças: era tido por campeão de lutas sociais de cunho igualitário.
Quando havia qualquer coisa no ar, Humílimo da Silva fazia-se notar. Era uma personagem de personalidades múltiplas. Pândito exegeta, fez insinuar a sua condição de cidadão do mundo. A quem tivesse dúvidas exibia a grossa carteira de passaportes passados em seu nome. Um deles exibia com singular orgulho, o do Principado da Pontinha, conseguido através de um contacto seu nas Filipinas. Os seus conhecimentos estendiam-se a todos os horizontes, pelo que alguns coevos também o apodavam de homem das 7 artes, das 7 ciências, dos 7 instrumentos e dos 7 ofícios. Num destes se destacou: virou exímio investigador da cor e do brilho dos minérios auríferos. A talhe de foice, medite-se na polivalência das suas andanças pela vida.
1 – Quando foi gendarme, exigiram-lhe certificação liceal completa, além de formação complementar no domínio da sarrafada, apertos e suplícios. Demonstrou zelo, proficiência e mérito na escolha dos melros que ajudou a mandar para a choldra. Tinha olho para a coisa, nisso era superdotado, irmãos.
2 – Quando foi coveiro, exigiram-lhe certificação a nível da magia, feng-sui, vudu, rosa-cruzismo, parapsicologia e transmigração das almas. Geria a contento as campas, os jazigos, a pira incineradora e os ritos. Responsável também do porvir das almas, encaminhava quase todas para o céu, que bem bastava lhes ter mostrado o purgatório e o inferno nesta terra. Terá sido visto em altas conjecturas e confabulações, donde derivava muitas as suas efabulações, com as alminhas mais impenitentes. No proveito é que está o ganho, irmãos.
3 – Quando foi copista, exigiram-lhe certificação a nível de desenho, artes gráficas, criptografia, grafologia e ortografia de 2 línguas mortas e 3 vivas. Esmerou-se na produção de calhamaços, dramalhões e novas versões destinadas ao adorno de prateleiras. As recomposições letradas e iletradas nunca lhe fora contestadas, porque tinha sido vacinado contra o livre arbítrio. Mas curou-se depressa, irmãos.
4 – Quando foi paineleiro, exigiram-lhe a certificação a nível de politologia, densimetria óssea, econometria, politologia e feitiçaria, entre outras. Sempre exibiu grande talento e sempre falou a seu talante. Faltava alguém para opinar sobre a queda do cabo Chato? Aí estava ele prestimoso, sempre disponível para deslindar a situação. Destarte construiu reputação nas centrais nacionais e internacionais da formação, informação e contra-informação. Ele sabia-a toda, irmãos.
5 – Quando foi regedor de freguesia, exigiram-lhe certificação a nível de regionalização, betão, cimento armado e alçapões de lei. Partidário da máxima que diz que «quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é burro ou não tem arte», tentou levar a governação a bom porto, ou seja, água ao seu moinho. Por isso mesmo recebeu os encómios dos defensores das energias a modos de alternativas. Depois quis partir para outra, irmãos.
Era dia de halloween e ele praticava para rainha má, transvestido num disfarce de moscardo fusco. Ultimava os preparos, quando, esbaforida, a chefe da tribo dele entra por ali dentro como cão por vinha vindimada. Pelo olhar, cabelos, olhos e vestidos exorbitados e exorbitantes, via-se que estava com os azeites. Tinha acabado de acordar de bunda voltada para a lua. Pior ficou, ao pôr os óculos em cima das notícias. Soube então que Humílimo se preparava para uma mijinha incontinente fora do penico.
Está ali uma mosca a calhar, pensou a chefe, sem os óculos da praxe. Ela detestava baratas, moscas e ratos, tudo bicho necrófilo, sacripanta e saprófito. Saca do semanário pesado do passado fim-de-semana, fez pontaria, zás catrapaz. Acertou em cheio, pois a danação confere maior precisão de tiro. Nisto abre-se o pote das migas ao Silva. Ficou-se a esbracejar de estupor a um canto escuro, o local do abandono dos grilos que soçobram nas lutas de vida e morte severina.