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oitentaeoitosim

28
Dez10

Gualdim

Jorge

    Gualdim nasceu com pé chato, de facto. Em pequeno ferram-no a umas botifarras ortopédicas. As plantas dos pés teimaram em manter o seu perfil aplanado na infância, adolescência e maturidade. Mal dera entrada na vida adulta, deu-se por comprovado que os butes ortopédicos tinham tanto préstimo para as extremidades dos membros inferiores humanos, como a trepanação para o cérebro e adjacências, nos tempos que correm. Mas, por vezes o constrangimento traveste-se de comprazimento. Quando se apresentou à inspecção militar, pressentiu que tinha chegado a sua hora de gozo. Convenceu-se que a sua pequena deformidade lhe abriria as portas da glória. Ao invés, deram-no por incapaz de guerrear, juízo esse que lhe carreou enormes aborrecimentos, pois teve de aturar familiares e amigos à cata de uma benesse. Não olhou a meios, nem a medidas, pôs os pés de molho na praça pública e mostrou à saciedade e à sociedade as razões da sua integridade. Ao lado, um cartaz silencioso rezava assim: «Os alcatruzes da nora nem sempre andam por baixo». Nem 24 horas tinham decorrido, quando o assediaram com ofertas de trabalho. Foi para informador, vulgo bufo, tendo exercido o cargo com muita pertinácia, o que lhe valeu uma condecoração. 

    Gualdim virou beberrão, pois então. Verdade seja dita que tinha criado calo na infância, por conta das sopas de cavalo cansado. Os seus progenitores não lhe aguentavam os guinchos de quem quer sempre mais, pois havia um patamar para gastos. Impetravam a todos os santinhos que o calassem. Por falta de resposta, ganharam o hábito de sedar o pimpolho com a sinecura mais ao alcance da mão. Quando teve voto na matéria, mudou para as limonadas naturais, depois para as laranjadas naturais e depois para iogurtes naturais. Mas, ficou-lhe o bichinho. Um bel dia, ouviu na rádio, sexa desbobinar a teoria segundo a qual dar de beber à dor garantia os postos de trabalho de milhares de compatriotas. Regrediu à infância, sem remorsos. Atirou-se aos púcaros com frenesim. Durante a desfilada de muitos calendários apanhou um único pifo, entre o primeiro e o derradeiro dia do ano. Partidário da súmula que se deve privilegiar o amigo e o vinho mais antigo, era vê-lo tomado de afã precatório a recolher fundos para a sua obra meritória. Um dia o desemprego assolou a lavoura e Gualdim voltou-se para as águas. Tornou-se surfista e só consumia alimentos provenientes da hidroponia e da aquicultura.

    Gualdim hasteou bandeiras, de mil maneiras. Encolheu os ombros, quando lhe apresentaram pela primeira vez a teoria social dos 3 «efes» que, segundo grandes especialistas da matéria, guindaram ao estrelato a maioria silenciosa e seus abencerragens. A sua vida era um fado, empenhava-se na beatificação dos pastorinhos, mas não sofria de clubite aguda ou coisa que valia a quase todos. Um bel dia, ouviu na rádio, o mister pedir muitas bandeiras hasteadas, em nome da dignificação da casta. Quando a equipa representativa se meteu em brios na compita por um troféu internacional, Gualdim abraçou-se a uma catréfia de pavilhões e plantou-os em todos os buracos do apartamento que pagava sem bufar, há 20 anos, à caixa mútua. Guardava-os de noite e dia, não fosse a passarada tomar-se de amores por sementeira tão pouco usual. A equipa falhou nos seus intentos, porque «quem vai à guerra dá e leva». Na ressaca, abandonou a vida de desportista de bancada para a qual comprovadamente não dava uma para a caixa. Tornou-se praticante de jogging e chinquilho.

    Gualdim virou fumador, sem favor. Tinha dado umas passas em cigarros sem filtro, aos 13 anos; aos 14 tinha fumado erva; aos 15 experimentou coca. Com a idade tornou-se mais exigente, mas nunca se deixara agarrar. Um bel dia, ouviu na rádio, um fumador queixar-se da sua contribuição excessiva para o fisco do rincão. Vivia-se então tempos de crise. Esta preclara figura da cena internacional decididamente morria de amores por paragens de largo historial turístico. Comprou sem cessar e sem vício pacotes atrás de pacotes, maços atrás de maços e mal parava para respirar. Contra ventos e tempestades, sobreviveu à fumarada que produzia por conta própria, ao longo de uma dezena de anos, fora de casa e em recatados lugares públicos, longe dos fumadores passivos, apeados ou metidos nos seus carros. Um dia, todos os mandantes do mundo decidiram eliminar todos os tabacais do mundo e proceder à requalificação profissional dos tabaqueiros e donos de tabacarias. «O mal corta-se pela raiz», gritava-se em coro, enquanto os vídeos exibiam o extermínio das folhas das plantas tabaquistas. Na hora exacta em que se certificou que nada mais restava para fumar, tomou-se de amores pelo protocolo de Quioto. Tornou-se num apaixonado jogador da bolsa de CO2.  

     Gualdim ficou para morrer, por nada dever. Era mais do estilo chapa-ganha-chapa-gasta. Com ele os votos natalícios de muita saúde pegavam de raiz; os de prosperidade, nem tanto. Um bel dia, ouviu na rádio, um conselheiro acaciano defender a teoria que o dinheiro da fuga aos impostos seria suficiente para salvar a pátria. A ele, que nunca fugira com o rabo à seringa, caiu-lhe mal a triste figura dos fugitivos. Passou a pregar em todos os aerópagos contra todos quantos guiavam as suas iniciativas privadas por linhas paralelas. De bom grado, cedeu sempre as prebendas que lhe caiam de maduras no seu colo. Treinou com o lendário indiano que não se alimenta há 70 anos. Rasgou as vestes em público, como sinal de irreverência por tanta impertinência e incontinência nos gastos. Carreou o ouro de dadores apoucados, por isso anónimos, disponibilizado às toneladas para o banco central que se apressou a depositá-las no regaço dos empresários mais necessitados que já eram obrigados a recorrer à sopa dos pobres. Imprimiu panfletos que rezavam ser mais difícil dar que receber. Quem foi no estribilho da cantiga deu, mas não recebeu. Por causa disso, mudou de vida e foi pregar aos peixes do deserto.

      Então, naquela tarde em que arco-íris, auroras boreais e trovoada deram as mãos à mesma hora, Gualdim parou e pôs-se a pensar. Olhou à sua volta e reconheceu, acabrunhado, que céu e terra continuavam amovíveis, apesar de tudo. «Atrás de mim virá, quem bem de mim dirá» - cismou. Palavras ainda não eram ditas, tirou-se de brios e de uma assentada tornou-se agnóstico, apóstata e apátrida.

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