Pardacenta
Pardacenta era aldeia alvacenta. Delambido o Sol, derretia-lhe geadas, dispersava neblinas e evaporava águas supérfluas, ao primeiro raio. O chilre da passarada, a cantarola do vento, o sussurro dos regatos marcavam a compasso certo o ritmo da vida que brotava em borbotões do verde omnipresente.
Pardacenta esparramava-se por múltiplas lombadas matizadas, num trecho fértil daquele trato de quietude, por onde gizavam por junto as juntas de bestas que, a um tempo, estrumavam e amanhavam terras, sob a comandita dos tratadores. Todos os vizinhos dispunham de uma leiva, de um pasto e de um arroio. Os desamparados contavam com a ajuda operativa dos mais afortunados. Os pimpolhos aprendiam as primeiras letras na escola primária, gerida por uma balzaquiana de nota avaliativa máxima. Os enfermiços recebiam toda a atenção de parabolanos e galenos dedicados, na casa do povo, dia-sim dia-não. Pelos domingos e feriados a capela acotovelavam-se crentes, temerosos descrentes das espúrias benesses da vida terrena. Na mercearia/botequim central atascavam-se os devotos da boa pinga e do bom falatório. Ao regedor poucas queixas foram ouvidas, a não ser queixumes derivados do reumático. O senhor Aguiar, fazendo jus ao apelido, calcorreava montes e vales e fazia ali escala por conta da produção biológica do sítio e para dar a conhecer as «coisas usadas pelos senhores e senhoras da vila». Aos fins-de-semana havia ainda tempo para ensaiar modinhas à moda da terra, de autoria de um taxista que correra mundo e que delineou também as fatiotas dos pares saltimbancos.
Um a um, os vizinhos de Pardacenta descobriram que havia telefones, televisões e carros a dar com um pau na aldeia global. Alguns vizinhos magicaram na abalada pela calada da noite e não hesitaram. Outros partiram pela clara luz da jornada, em busca de jornas mais reconfortantes. Os putos em idade escolar foram transferidos para estabelecimentos polivalentes, a muitas pernadas dali, o que promoveu o arrasto dos entes, mesmo dos mais renitentes. O prior, queixoso da escassez de óbolos e de coro afinado, foi pregar para outra paróquia. O regedor abandonou a farpela e atavios do ofício à naftalina, posto que, face ao absentismo reinante nos fogos e leiras, pressentia já não reunir condições para o mando. O dono do tasco carregou os proventos para o banco do município e pôs-se a viver de juros e alcavalas regimentais. Na casa do povo, um retirado funcionário despachava assuntos correntes até ver. O posto de correios, há muito, tinha servido de pasto à voragem da formiga-branca. O rancho folclórico aderiu aos cantos de sereia. O senhor Aguiar quedara-se nas suas tamanquinhas, a rogo de João Semana. Os anciãos resistentes feneceram ou cederam às solicitações da terra prometida. O último a sair, desligou o interruptor.
Uma comunidade esotérica alienígena acaba de aterrar em Pardacenta. Dos objetivos para a próxima época consta a proclamação da independência.