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oitentaeoitosim

19
Nov12

Violências que induzem violência

Jorge

As coisas sórdidas rebaixam o homem, desmoralizam-no.

Rodrigues Miguéis

 

1 – Do cais do Sodré parte a ala de manifestantes (poucas centenas) ligados a 4/5 movimentos sociais, convictos que têm uma palavra que deve ser escutada, em tempos de bulcão, em que se contorce o rincão. O percurso levá-los-ia à praça do Rossio da capital, para se integrarem na manifestação convocada pela CGTP, em dia de greve geral, uma raridade. Cada palavra-de-ordem liberta uma alfinetada à conjuntura e aos homens do leme. Por acaso sente-se no ar eflúvios de pirotecnia. Há uma cena de «chega-te para lá», breves arrufos na praça do Comércio, na presença de muitas testemunhas postados em volta de «níveas».

2 – Na praça do Rossio junta-se outro agrupamento menor, vindo das imediações da praça do marquês que cá fazia falta mais uma vez, pelo que se confirma que a reincarnação tem os seus quês. Percebe-se que não há boleia do grosso da coluna que já pôs pés a caminho, em melhor companhia, presumivelmente, a CGTP já não mora ali.

3 – Dá-se início à caminhada para o anónimo largo fronteiro ao parlamento, através do Chiado. Há poucos agentes de forças de segurança, por perto, mais pessoal da organização. De caminho, cá vai mais uns petardos para a viagem e uma caixa multibanco fica esfacelada. Dos autores da proeza não reza a história e não ficaram lá especados à espera de serem algemados… Muitos olhares de soslaio se cruzam e encolheres de ombros também. Estes cromos não fazem parte do filme, pois não? Ninguém os catrafila ou afasta?

4 – O grupo saído do cais do Sodré alcança o seu destino, a tempo de ouvir o discurso de Arménio Carlos, um ás em recriminações piedosas. Fica bem claro que a greve teve larga participação – 85% de adesão à greve – e isto não é anomia social. Chama-se a isto fazer das tripas coração e que se cuidem os manda-chuvas que a sobrevivência está em perigo, portanto nada de brincadeiras com o fogo. Esgotada a oratória, o secretário-geral da CGTP dobra a manta e aqui me vou eu. Na altura, abala um número significativo de pessoas vindas ao protesto, mas muitas permanecem ali, a ver em que param as modas. No dizer de uma plumitiva - respaldada no braço protetor da autoridade - gente que aprovou a violência, porque a consentiu (sabe tão bem ter aconchego no regaço da moral dominante).

5 - Depois as coisas vão acontecendo, como num ensaio já feito anteriormente: a retirada de barreiras de proteção, lançamento de objetos (pedras, garrafas e petardos, para o caso) dirigidos à linha da frente da força de intervenção ali estacionada. Os balões de tinta mais ou menos indelével são a novidade, sujam e embaciam os escudos. Dessa ação se encarregam sobretudo jovens, alguns de rosto tapado, outros de máscara mal afivelada. Muitas das pedras são arrancadas nas barbas de guardas azuis, presuntivos praticantes de homens-estátuas (contudo, deve haver por ali gente com problemas de visão e – já agora - de audição). Há quem fale línguas estrangeiras e, sabendo-se das desconfianças com malta desta, alguns demonstrantes voltam a olhar de esguelha, a reprimenda contida, apesar dos desmandos dos putos rabinos, não vão esses estrategos da conspiração global deixá-los de cara à banda, com um braço ao peito ou um olho à banda (a quem incumbia a missão de afastar elementos indesejáveis, à polícia ou à organização? O horário do protesto estava esgotado?) Voltam as palavras de ordem que se resumem a isto: este governo tem de saltar, pelas pragas que tem atraído ao país, porque está de cócoras, porque é pau mandado. Muita gente continua a olhar, a ver no que isto vai dar; até sentado se pode dizer que se está contra a parolice, contra a embriaguez do poder, ou contra as velhacarias, etc…  Valeu?

6 - Os zelotes ensaiam movimentações estranhas, operacionais sobem (numa ocasião, há um escudo retirado com o inscrição «povo»), outros descem, num arremedo de manobra ensaiada. Parece que alguém intima o pessoal a desamparar a loja, através de um megafone. A ordem é abafada por um coro de assobios e parece destinada ao sector donde partem aos arremessos (sem instalação sonora à maneira, como quer esta gente fazer-se entender no meio da algaraviada que por aqui vai?). Desconfia-se que no extremo da praça ninguém se dá conta do aviso à navegação. Ninguém arreda pé. Nova advertência, a mensagem soa sibilina, aliada aos mesmos achaques de sonorização. Não tarda que os agentes, desembestados, surjam, de escantilhão, a malhar a torto e a direito em tudo o que corre ou mexe. Confesso que não tenho estofo de herói e bazei, desarvorei de pés a bater no rabo, impotente, atazanado, mortificado, mas não atagantado. Pelo andar do andor, qualquer um dos circunstantes poderia ir bater com os costados a uma padiola ou ao chilindró, confinado à acusação de desobediência civil, ou outro mimo qualquer do lingujar judicatório, uma encantação para exegetas de uma das profissões mais antigas do mundo (a propósito, os putos rabinos de comportamentos desviantes terão sido detidos?). Tento compor os trejeitos e meneios de morador do bairro, mas não há tempo para poses. Desconfio que os polícias quiseram aderir à greve e que, por motivos patrióticos, amouxaram e lá foram molhar a sopa, arriar a giga, cumprindo uma transferência inelutável da mágoa absentista. E fizeram sangue.

7 – Diálogo:

- Não deem cabo disso! - uma senhora idosa, à janela, repreende um moço que tenta pegar lume a um contentor de lixo.

- Por que não, estamos a defender-nos, porque aí vem a polícia disposta a bater! – resposta do moço, de cara descoberta.

- Vão dar cabo do que é vosso! – replica a entradote senhora.

- A gente está também a lutar por si! – responde o jovem entradote.

(De um lado fecha-se com estrondo uma janela, doutro solta-se um palavrão de ressonâncias náuticas).

8 – Nos noticiários principais a greve fica para segundo plano, bruxo! «Há que dar prioridade» ao jornalismo «de faca e alguidar», uma forma de atrair incautos insetos às teias peganhentas entretecidas pelo império. No caso vertente, de uma penada, matam-se 3 coelhos (salvo seja!): é a greve atirada para 2º plano, tenta-se fazer crer que afinal os comunas são gajos afetados geneticamente pela violência e dá-se a entender que há mais donde veio esta dose.

9 – Veio o chanceler (promoção de fresca data) e revela que não tinha visto as imagens (coisa estranha no primeiro oficial da corporação, está-se nas tintas ou já sabia que haveria molho)); nada diz também sobre a austeridade, a causa primeira dos protestos (deve estar para lavar e durar, com equanimidade). O comandante supremo da soldadesca falou e disse do alto da sua premência de cabotino: com a tropa não se manga! Ainda não tinha visto imagens, mas pareceu-lhe bem a bordoada, coisa de trinque. À boca cheia ainda se pavoneou de ter trabalhado no dia em que muitos dos seus concidadãos tinham feito gazeta (cambada de malandros, como pode o país andar para a frente!) O chefe das polícias disse que as cenas tinham o patrocínio de meia dúzia de profissionais do agitprop e que polícia agiu dentro dos cânones e usou 3 substantivos de marca: profissionalismo, serenidade e firmeza. O porta-voz militar dos cívicos lamentou os incidentes; falou na má ação de dezenas de indivíduos (é feio incomodar-se com meia-dúzia de maltrapilhos, dezenas tem mais impacto!) e para caraterizar o seu procedimento de cauterização dos desacatos usou 2 adjetivos de marca -  seletivo e ajustado -  e 4 substantivos, de região demarcada: oportunidade, proporcionalidade, adequação e seletividade. Enquanto chorava azeite por um olho e vinagre por outro, avançou com a estatística oficial: 21 agentes tinham ficado feridos (que raio de bicho os terá mordido?! Crise de raiva? Morderam a língua?), num total de 48. Também se deram algumas detenções, mas só de um dos lados. Apenas 3 ou 4 formações de menor calibre e peso social recriminaram o comportamento dos guardas azuis. Eu também acho que a autoridade tem destas coisas: uma boa chapada faz mais pela personalidade de um tipo que 100 ordens por cumprir, às vezes. Eu, por exemplo, estou farto de malhar em ferro frio: por falta duma estratégia paralela a esta, é que as escolas funcionam a pé coxinho.

10 - Era necessária esta malhação e destruição toda, por conta de meia dúzia de pategos já monitorizados? Prendam-nos, institucionalizem, transfiram os moçoilos, caso contrário eles vão persistir no direito à indignação que acham que têm, por linhas tortas!... Depois, vou ter de arranjar um explicador que me tire as dúvidas sobre formas bondosas e maldosas de violência. Vou então querer saber se a violação, a violentação sistemáticas de direitos conquistados não são paridas pela violência, (não ignoro que bastam 2 assinaturas, para as erradicar, não custa nada!) e se não estarão sob alçada da lei. Agora, isto eu sei: expetativas de vida, sonhos de afirmação na vida, projetos familiares só estão ao alcance, em plenitude, dos predestinados (de condomínios fechados, proprietários, jet-set e correlativos). Também sei que, quando a desgraça se sucede a um estado de alguma graça, a dor ataca forte e feio. Os desbocados coordenadores da austeridade sem objetivos acham que os sonhos dos entes e valores queridos não devem ser caucionados; nada, nem ninguém deste mundo os fará demover de lutar da felicidade deles. Nessa via, vale tudo menos tirar olhos, isso entendi.

11 - Por estas e por outras é que vou passar a desfilar com a maioria silenciosa, quando ela se atrever a sair do armário. Dizem que há passeio, a viagem e viandas à borlix; os discursos suportam-se, mas, se calhar põem a cantar e a encantar um desses cantores romântico-popularuchos que «não fazem política». Assim, levaria muito que contar, que não para o tabaco. Esses são os bons desfiles, daqueles que não contribuem para o agravamento da dívida soberana de um país tratado como lixo pelas agências de ratingue e com os pés por governantes que não acertam uma, uns farristas empedernidos.

12 – Aprendizagens a retirar da situação: I – A violência faz parte do património de mandantes e mandatários do poder que sustêm a estrutura económica. II - Parte-se o coração à polícia e aos seus chefes, quando têm de despachar um par de estaladas, mas o que tem de ser tem muita força (mãos frias, mas coração quente). III – A nata do capital tem também muito amor para dar aos seus (contra ventos e tempestades), de preferência; a lei da selva não se compadece com pieguices. IV – O pessoal que não tem unhas para tocar guitarra, que se amole, que trabalhe o dia todo, que se esfalfe, tal é a obrigação imposta; não pode é ser emissário de violência, recetor ou controlador vai-que-não vai. Depois, sempre pode recorrer à caridadezinha… V – Há muitas maneiras de matar moscas.

13 – Promessa: prometo solenemente que, se for para o restabelecimento total da economia, nunca mais saio à rua.

12
Nov12

Croniqueta

Jorge

Junta-se a multidão à porta do estádio, para assistir a um jogo de futebol, um dérbi. Ali concorre muita gente, visitadas que foram a loja oficial e as carrinhas dos feirantes. Há polícia no ar, no mar e em terra, spotters, GOE, agentes à paisana, judiciária, polícias municipais, agentes da brigada cinegética, de choque, à paisana, fardados, em serviço normal ou extraordinário. Os espetadores confluem num ponto de controlo, onde meia dúzia de indivíduos conferem os bilhetes. Dizem das boas, aquilo é tortura pior que estar engarrafado na ponte. Depois vem o crivo das portas da entrada. Já mais aliviados e em larga superação dos adeptos do clube contrário, os apoiantes do clube da casa (c.c.) são presenteados com  uma bandeirinha do clube, de forma a garantir um ambiente mais feérico.

   Faz parte da praxe: em primeiro lugar, entram para o aquecimento os 2 guarda-redes do clube de fora (c. f.) que são imediatamente mimoseados com um coro de assobios (para uma melhor esquentação de ideias e orelhas) aquecimento. «Agora vêm os nossos!». Zás, irrompe uma revoada de aplausos, assobios de apoio (vá lá, façam-nos felizes, sff!) Salta uma farpa para o mister: «então sicrano nem no banco fica, ele que é o melhor guardião da gente! Ouvi dizer que não vai à bola com o míster, ou então dá-se o contrário!». Para começo de hostilidades, nada mau…

   O speaker atira umas larachas, publicidade ao kit de sócios (um associado de longa data diz ser do tempo em que não se dava kilts a ninguém, modernices), atira palavras de ordem grandiloquentes - estilo «somos os maiores», «somos campeões» - numa tentativa, bem-sucedida, de despertar estados de alma estentóreos nos simpatizantes do peão, da tribuna, dos camarotes, das bancadas. Assim por esta ordem, todo o estádio dá testemunho do seu fervor clubístico e da fezada que percorre as hostes do c.c. neste jogo, nesta temporada e para a eternidade.

    Entram os restantes jogadores inscritos na folha do jogo, a dar toques, sobejando uma vez mais as ovações para os visitados, as vaias para os visitantes, mas destas feita acrescenta-se arruaças aos álvidros (a coprolalia afeta muito as moles de recintos desportivos), esconjura-se o poder maléfico daqueles homens de negro e amarelo, mortinhos por inventar cartões, livres, penáltis e foras-de-jogo inexistentes, a favor do adversário presente e do ausente, o tal que mais morde os calcantes do c.c. «Vai haver frutinha à sobremesa?», «Olha, vê lé se não desmaias como aquele espantalho boche». É que o chavelhudo não dorme.

    Quando se solta o hino oficioso do c.c. (música expressiva, letra gongórica), a devoção já é arrasadora e alguns adeptos cedem às lágrimas, mão direita sobre o coração, voz gorgolejante e alma pletórica de devoção clubista, por vezes confundida com alienação rasteira (o c.f. não tem direito a hino, o que abastarda o espírito de desportivismo que deve presidir a estes eventos).

    A anunciação dos nomes das 4 dezenas segue o mesmo padrão: pateada para os do c.f., salvas de palmas intermináveis para os do c.c. e assobiada monstruosa para os homens do apito.

   Os stewards, impávidos e serenos, estão à coca. Voltam o rabo ao campo do jogo e dedicam primordial atenção a potenciais espetadores predispostos a malfeitorias de cabo da esquadra. O acinte demove desacatos, já assim pensava a velha senhora. Muitos dos presentes prefeririam que aquelas criaturas fossem devolvidas à sua missão de controlo de assentos, de guias dos bons costumes, de amigos de ocasião. Há quem diga que uma boa provocação tura lustro à alienação…

   Dois dias antes da refrega, peroram os atletas de ambas as equipas e trejuram a pés juntos que só a vitória os move (alguém, disse que o contrário seria o óbvio?) As derrotas não os abaterão, mas, os do c.c. teimam que há contas por ajustar, isso é que há: o c.f. é um osso, há muito, atravessado na garganta, uma espécie de «besta negra». O c.f. pode estar abaixo da linha de água, mas os seus jogadores embicam para ali e, volta não volta, pregam uma partida de mau gosto ao c.c. O máximo aconteceu, há 2 temporadas, em que os visitantes impediram a consagração máxima dos visitados.

   Na véspera do encontro, o treinador do c.c. afiança que desta feita não haveria pai para o seu emblema, tinha a tática e a estratégia certas para quebrar o enguiço, do empate nem quer ouvir falar. «Ou vai ou racha!». O treinador do c.f. assume-se como seguidor das boas tradições: em equipa que ganha não se mexe, pelo que jogariam os mesmos atletas do ano anterior, fora os transferidos (5, «vendidos», segundo o calão do milieu) e os 6 de baixa. «Estamos aqui para as curvas, mesmo não sendo favoritos, queremos os 3 pontos em disputa». Todos me querem, eu quero a um… Há manos tão difíceis de corrigir  quanto as damas de espavento (por acaso estavam ali umas quantas)

   No dia da jogatina, o presidente do c.c. intima à lisura de processos; o presidente da SAD do c.c. (por acaso, o mesmo) afinou por outro diapasão, que os jogadores, caso fosse necessário, comeriam a relva. A afirmação valeu-lhe uma reverencial chamada de atenção dos seus correligionários, os quais o alertaram para a altura desmesurada dos pés de relva. «Os pequenos já não têm medo dos grandes, pelo menos no futebol, a vida real é outra dança, outro compasso» - atira o presidente do c.f. O presidente da SAD do c.f. disse que esperava que o tapete verde sintético não fosse regado antes do jogo. Também catalogou de «brincadeira de mau gosto» a inoportuna nomeação de um árbitro que tem o mesmo nome de um dirigente do c.c.

   Os mind games quedaram-se por aqui, mas consta que os árbitros nomeados não acharam graça nenhuma aquela tirada. O chefe de equipa, irá mudar o seu nome artístico, por causa das moscas, na próxima semana. «Esta malta embirra com tudo, qualquer dia até implicam com a tonalidade do apito, dos calções, ou a qualidade da brilhantina, safa!»

     Ambos os místeres escalonam os seus jogadores rumo à vitória («é disto que o meu povo gosta»!). Faz-se a troca de galhardetes, a escolha de campo, tiram-se as fotografias da praxe e dá-se o pontapé de saída. Está o estádio cheio que nem um ovo. A bola anda em bolandas, à flor da relva, poucas vezes, aos repelões, muitas vezes (pontapés para a frente, pontapés mal medidos, charutadas, biqueiradas a esmo). O c.f. assenhoreia-se mais da bola, não perdem um ressalto, calcorreia mais quilómetros, o keeper quase leva ao paroxismo os simpatizantes da casa, por sistemática retenção da bola (ouve nomes que envergonham a mãezinha dele), fizeram mais faltas e levaram mais perigo à baliza do c.c. (2 ameixas aos paus da baliza e 5 ao lado, após jogadas de envolvimento). Destarte, fazem 15 jogadas de perigo relativo, outras tantas de perigo iminente e mais umas quantas de perigo nenhum. Os atletas do c.c., confiantes na boa estrela e na superioridade do fator casa (são favas contadas na 2ª parte, guardado está o bocado!) ficam-se aquém dos adversários em todos os itens, metem os pés a medo, parecem estar a jogar com esférico quadrado, não dão uma para a caixa.

   Ao intervalo, vai tudo corrido a assobios (os árbitros espantam-se e depois compõem um risinho sardónico): roupeiros, o treinador, assessores, manager, delegado ao jogo, médico, fisioterapeuta, apanha-bolas e jogadores do c.c. ficam de orelhas a arder. «Parecem meninas prendadas», «Vocês estão cheios de caruncho», «Se não mudam de vida, acabam a jogar matrecos», «Já perdi metade do espetáculo, vejam lá se afinam as botas, na 2ª», «A minha sogra (que deus a tenha) jogava mais que vocês, suas alimárias». Só os incondicionais, animados por fumos e bombos, gritam incentivos.

    Há maior entrosamento entre sectores, com melhor sortido de passes certeiros na horizontal, na diagonal e na vertical, os atletas do c.c. espraiam-se mais pelo terreno de jogo. Os forasteiros acomodam-se aos novos parâmetros, criam 2 blocos baixos e usam e abusam da contraofensiva, cuja eficácia fica medida num golo obtido, por turbação de um defesa do c.c. recém-empossado no posto. É um duro golpe, contra a corrente, todavia «quem não marca arrisca-se a sofrer golos». Mas, em 10 minutos, o marcador vai de remonta, 2-1 para o c.c. Festeja-se sem parcimónia, beija-se o vizinho do lado, saem os cânticos de fervor e as bandeiras desfraldam-se a todo o vapor. «Agora é preciso aguentar até ao fim, sem cometer deslizes infantis!) Palavras não eram ditas e o mesmo jogador adaptado mete água pela segunda vez, olha que o diabo tece-as. Cai mais água gelada que impropérios, o que é verdade é que «o caramelo do treinador inventou». Como a esperança é a última a morrer, ouve-se alguns incentivos: «Ainda há tempo, seus paspalhos!», «Força nas canetas, até os comemos vivos!», «Somos campeões da terra e do mar!». Não há mais golos para ninguém. O c.f. dá o que tem e não tem, todos rilham os dentes, borram-se, sofrem de cãibras, mas não atiram a toalha ao chão. As jogadas de insistência, os múltiplos cantos e lances de bola parada, os dribles, as simulações, as triangulações do c.c. não conseguem demover o «autocarro» do c.f. «Vale tudo menos tirar olhos!», «ó sôr árbitro, não vê que foi penalti!» (o lance da possível falta ocorreu a 5 metros da pequena área), «expulse esse gajo, é a quinta vez que dá nas canelas!» Implora-se ao céu uma graça divina, mas os do outro lado fazem o mesmo, empate, portanto, divisão dos pontos. «Mesmo que insistissem a noite toda e outro galo não cantaria, isto como malhar em ferro frio, não dá!»

  De monco caído, o pessoal maioritariamente vestindo as cores da casa, desarvora, a caminho de casa, a butes, em transporte público ou em popó, ruminando a tragédia que está a alevantar-se no horizonte do seu emblema. Uma minoria dirige-se ao stand mais próximo, a afogar meia-mágoa, batendo-se com cervejolas, panachês e imperiais e sandes de couratos que amparem a queda das loirinhas. Os couratos têm travo a moedas e o cervejame está requentado, um fim de festa a condizer! «Ó amigo, abra mais 2 para a viagem»

12
Nov12

Conto (taoísta)

Jorge

    Era uma vez um velho camponês que perdeu um dos seus cavalos. O bicho viu a porta da cavalariça aberta e zarpou para verdes prados. Os vizinhos logo vieram confortá-lo. O ancião agradeceu e comentou: «Se calhar, tive sorte!»

   Os vizinhos voltaram para casa confundidos, mas abstiveram-se de questionar o ancião.

   Algum tempo depois, o mesmo cavalo regressou, à estrebaria, na companhia de uma égua. Desta vez, os vizinhos bateram-lhe à porta, para lhe dar os parabéns. O ancião agradeceu e disse-lhes: «Se calhar, tive azar!»

   Os vizinhos entreolharam-se, atónitos e, muito baralhados, voltaram a suas casas, sem levantarem questões.

   Uns dias depois, o filho decidiu montar o cavalo. Deu um longo passeio, durante o qual foi atirado ao chão. Como resultado da queda, o jovem partiu uma perna. Quando soube do caso, a vizinhança lamentou a pouca sorte do rapaz e do ancião e transmitiu-lhe toda a solidariedade. O velho camponês agradeceu e falou assim: «Se calhar, tive sorte!»

   Os vizinhos voltaram para casa mais confundidos que o costume, mas não fizeram mais ondas.

   Duas semanas depois é declarada guerra ao Estado vizinho. Todos os jovens maiores de 18 anos foram chamados à vida militar. O filho do velho camponês ficou isento. Mais uma vez, os vizinhos se reuniram em sua casa, para lhe dar os parabéns. O velhote agradeceu e disse: «Se calhar, tive azar!»

    Desta feita um vizinho não resistiu e perguntou por que razão era otimista, em momentos de menor sorte e pessimista em momentos bons. A resposta não teve tardança: «Há malefícios que vêm por bem e benefícios que acabam mal»

12
Nov12

Casos de denominador comum

Jorge

Primeiro – Um rapaz holandês, jogador de futebol avançado, ambicioso de todos os dias, vive uma época de seca. A equipa não calibra bem, os lances não saem à maneira, os centros são feitos com conta, mas pouca medida, assim fatura pouco. Os simpatizantes do emblema que representa desesperam e vaiam a torto-e-a-direito. Nem sempre o azar está atrás da porta, pelo que um dia o ponta-de-lança faz um tento de cabeça e ele, moita-carrasco, não festeja com a exuberância doutras vezes. Mesmo assim, levanta os braços e sai-lhe um xibolete como mandam as regras da pouca educação. Que não! Nada fez de reprovável, aquilo que as fotos exibem é apenas um momento breve dum gesto de maior amplitude e significância, nada contra quem o xingou. Não chegava pedir desculpa?

Segundo – A senhora presidenta do BA, uma instituição de referência e reverência social, é convidada para uma charla num canal televisivo. Até aqui nada de especial, não era a primeira, nem será a última vez que a senhora opina nos média. Vem a pobreza à baila e os modos de a contornar. A páginas tantas sai-se com esta tirada: «Se não temos dinheiro para comer bifes todos os dias, não podemos comer bifes todos os dias». Nada de mais atilado. Só que esta frase traduz uma receita requentada, patenteada, há muito, por quem nunca teve dificuldades de subsistência. Quem se habituou a driblar a sorte fartou-se de ouvi-la (e até de repeti-la, sem comprazimento, diga-se), no tempo em que se comia o pão que o diabo amassava. Ter que suportar outra vez o aguilhão da reprimenda, da mofa (involuntária) de antanho, dói. As suas explicações e pedido de desculpas, minha senhora, falham o alvo.   

Terceiro – O ministro persiste na receita da austeridade, equânime nos sacrifícios, para os mansos com fome de justiça. Não há outro caminho a trilhar, paciência, ó Abreu, dá cá o teu! Outras mulheres e outros homens aconselham-no: «Não vá por aí!» Mas, ele vai, contrariando tudo o que havia dito, quando se propôs ao lugar. Dizia ele, na oportunidade, que mais aumento de impostos não, que retirar rendimentos às pessoas não, que iria promover o desenvolvimento sim. Não soube contornar dificuldades, (tais eram os escolhos) ou não lhe deixaram alternativa: a coisa pública continua a navegar à vista desarmada e ao sabor dos ventos dominantes. O tempo volta para trás, a indigência está cada vez mais próxima. O espantoso da questão é que o senhor ministro não peça desculpa, não por aquilo que está a fazer, mas pelo que prometeu e não consegue levar avante. Até pode ser que esteja no caminho certo e que, depois dele, só o dilúvio...

 

10
Nov12

Homem infausto que pôs o pobre a dar ao farto

Jorge

    Nasce em berço d’oiro, de nalgas voltadas à Lua, o enlevo dos ascendentes. Diz papá e mamã, aos 6 meses, recita o abecedário aos 2 anos, fala Francês aos 3 e dedilha o piano aos 4. A partir daí, é sempre a aviar, primeiros lugares no quadro de honra  de alunos de mérito das escolas que frequenta, todas elas constantes dos primeiros lugares dos rankings. Na universidade é mais do mesmo: coleciona 4 licenciaturas, 3 mestrados e 2 doutoramentos – à custa do suor do rosto dele e dos doutos ensinamentos doutrem -, sem que alguém lhe faça sombra. Acresce ainda à peculiaridade de aluno modelar e modular, acrescenta o título de cidadão impoluto, desportista amador exímio em desportos radicais, frequentador compulsivo da noite e marialva dos 4 costados, sem manchas, quanto a consumos espúrios.

   Dá-lhe na veneta de sobraçar o cargo de administrador-mor do burgo. A análise comparada permite uma conclusão muito lhana: bastar-lhe-ia corrigir pequenos destrambelhos e adquirir mais algumas valências, nem que seja à custa de uns pozinhos de perlimpimpim. Em dia meditabundo, dá um pontapé numa pedra e debaixo dela salta o mafarrico (sempre alerta) que lhe perscruta a «excruciante mágoa». Desata a namorá-lo e dá a entender que está em condições de concretizar os seus desideratos, em menos tempo que leva um fósforo a consumir-se, enquanto ele esfrega um olho. «Teu será o poderio, e tomarás conta do navio. Em troca de quê? De coisa pouca, da tua alma de chicharro (este último comentário foi produzido em intensidade pianíssimo e em dialeto do abisso, não fosse a transação às malvas). Assinas aqui um trato e não se fala mais no assunto. Por acaso, até aqui tenho um acabadinho de sair do forno». De afogadilho, (ainda tem tempo para pensar 2 vezes) o ícaro concorda, a troco de um caderno reivindicativo, da qual consta, inter alia, a indexação de toda a lábia e parafernália do príncipe maquiavélico e a indexação impreterível dos mimos, a seguir discriminados (indispensáveis à nobre arte de cavalgar toda a sela):

. Filosofia liberal (na versão neo, ultra ou clássica), radicada em farta experiência de vida;

. Conhecimento e desprendimento do meio;

. Sageza e voz de comando na liderança;

. Sensatez, agilidade e racionalidade nas decisões;

. Adaptabilidade às rédeas do poder;

. Sentido de oportunidade e sentido prático nas decisões;

. Capacidade negociadora e adaptação à mudança;

. Sabedoria em correr riscos calculados;

. Ambição de conquista e poder de iniciativa;

. Recusa de guerras sem sentido;

. Intuição na escolha acertada e confiante dos colaboradores;

. Promoção do alargamento de horizontes;

. Confiança na máxima «o segredo é a alma do negócio»;

. Ductilidade perante novas situações;

. Confiança e promoção do bem-estar dos colaboradores;

 . Perceção que o ataque é a melhor defesa e vice-versa;

. Poder de atacar as tibiezas dos adversários;

. Coragem de manter o rumo traçado;

. Justeza na apreciação das temáticas todas;  

. Caráter na apreciação das medidas equitativas, progressivas e retroativas.

   «De pouco te valerão, mas, se assim queres, assim terás: tu genufletes, eu aperto o nariz e ficas possesso à maneira. Terás ainda direito a mais uns extras saídos da verve de outros grandes vultos da história e de renomadas instituições internacionais especializadas em arrastos, arrestos e arrochos» - garante-lhe satanás. Meu dito, meu feito. Redigido a vermelho ígneo, com imensas alíneas escritas a letra miudinha, cor cinza, o contrato é logo ali rubricado (o beneficiário compromete-se a que nunca o exorcizará), perante o silêncio recalcado dos imortais e um recital de esconjuros, imprecações e rituais mágicos. Apenso a tudo aquilo, o maligno entrega-lhe um receituário, um preceituário e um certificado de garantia. Dão-se as mãos e cada um vai à sua.

   Esfrega as mãos o carismático pretendente, melhor que isto, nem no supermercado, a vida é bela, os homens é que dão cabo dela. Já se imagina a vencer todas as pugnas, em todos os conciliábulos, a levar tudo à sua frente, elaborando códigos, códices e codicilos irrefutáveis. As medicinas provam ser eficazes, embora lhe tenham sobrevindo uns muito secundários efeitos de brotoeja e sarampelho, disfarçados de coceira fortuita.

    «O homem mudou, está mais maduro, mais senhor do seu nariz, mais seguro (lagarto, lagarto!) dos seus passos. Esperam-no grandes feitos!». A vida dá muitas voltas e numa delas obtém a medalha de ouro do mandarinato, pelo que é expelido fumo cinzento da chaminé do senáculo. Impante do seu poderio, é ungido e entronizado, no imediato e na presença de reverenciadores suseranos das 7 partidas do mundo.

   No início as rosas atapetam os caminhos do novel administrador-mor, doces fragrâncias criam uma ambiência de caranço e torpor, tudo na maior. Pôs má cara às primeiras gemedeiras de súbditos menos bafejados pelas sortes do destino. Os seus eméritos méritos estão a render dividendos a uma minoria reclinada à mesa do orçamento, mas foi esse o legado que tem de preservar e contra isso, batatas! O reinante confessa: «houve um ligeiro desvio de percurso, mas é este o caminho por excelência». Pelo sim, pelo não, obriga o capeta a materializar-se, em noite de lua nova e pede-lhe um juízo dos seus atos. «Não te amofines, não foste escolhido para desviar o curso dos rios, mas para trilhar a via dolorosa (lagarto, lagarto!) para alguns, os tais que só se sentem bem a mandar vir. É assim que vos gosto de ver!». Aproveita a oportunidade para lhe entregar em mão fotocópia autenticada do contrato e, no regaço, um punhado de ducados, alguns dobrões e 50 marreis de mel coado, que podem obviar a agruras, penúrias e torturas (o mandante sonega os donativos com sofreguidão, não vá satanás arrepender-se, coisa nunca vista, mas um seu familiar nunca tinha visto porcos a voar, mas, um dia, deu-se conta disso, quando passeava pelas bandas da Pateira de Fermentelos).  

    Numa segunda revista às tropas, depois de muitas festas com feiticeiras apaniguadas e bruxas curtidonas, o chifrudo apercebe-se do tom nacarado, olhos ligeiramente papudos do mandarete que se desfaz em vénias, dobrado até ao chão. «Afinal o meco dá conta do recado com recato, as alcatruzes da nora continuam bem oleadas - desabafa o demo, em intensidade pianíssimo e em dialeto do abisso para a sua entourage, enquanto perpassa o unhame cobiçoso pela bossa untuosa.

   O enfarruscado imperador dos infernos abrevia uma terceira vinda ao burgo, pois lhe tinha constado que o coração do seu cliente se amolancava. Notou-o menos entusiasmado, com menos cabelos no toutiço (ficou de lhe arranjar um champô menos abrasivo), um tom ligeiramente anil de tez e incapacitado de efetuar vénias de meio arco, mas nada que não se compusesse. «Mestre, pode ficar descansado que não vou queimar etapas, muita gente já está chamuscada, mas contra isso, batatas!» Aí está a prova provada que tudo ficará como dantes, quartel-general em Abrantes! Pelo sim, pelo não, deixa um aviso à navegação: «Prá frente é que é Lisboa! Aos arrependidos, aplico a chapa 1: Trabalho a dobrar na seção do alcatrão, sem direito a folgas, nem feriados, nem horas extraordinárias e à míngua de salário».

    À quarta visita, o mafarrico encontra o administrador-mor mais encurvado, um ligeiro tom esverdeado de pele e mal das cruzes (tarrenego!) Faz-lhe o obséquio de reconhecer que ele é a pessoa certa no lugar certo. Cortes nisto, cortes naquilo, cortes à esquerda, cortes à direita, pessoal a espumar pelos cantos da boca, isto é a canção do bandido levada à prática, a ação psicológica a dar resultados. Faz questão de deixar uns trocados no porquinho, para que o protegido acorra despesas mais prementes.

    Da quinta vez o fute assiste in loco a despedimentos, à entrega de casas aos bancos, à devolução de carros, de máquinas nespresso, de computadores, de serviços de louça oriental. Há casas de prego a deitar por fora, lojas de ouro em barda, feiras-da-ladra em alta, muita mais confusão nas ruas, rostos fechados, mãos desanimadas. «Num destes dias, passas a integrar o quadro dos meus educandários» - sussurra o kaiser das barregãs ao ouvido do seu valido que lhe parece mais depauperado de saúde e siso, mais recurvo, mais calvo («não tarda, tás no papo!») Na mesa de despacho deixa-lhe 2 reis de mel coado e bate as asas negras de fumo, a caminho do protetorado seguinte.

    À sexta visita, o dianho, encontra o administrador-mor a definhar-se a olhos vistos, olhos sapudos, capachinho e pele macilenta; são cada vez mais frequentes as crises de figadeira, de gota e até da próstata (e de safadeza igualmente). O médico da privada sugere que vá a banhos, caso não queira sair de casa com os pés para a frente, antes da data prevista. Tenta renegociar com o chavelhudo os prazos previstos no pacto original. «Ó pra ele, assinaste de bom grado e livre alvedrio, não me venhas com canções de embalar. Continuas a pôr o pessoal a dançar o malhão, ou, em alternativa, entregas já a alminha, em 2 tempos, seu danadinho!» - ri-se-lhe nas bochechas o ex-arcanjo endemoninhado, à beira de um ataque de riso incontido. Deu-lhe 30 copeques para umas buchas e ala que se faz tarde, que a vozearia dos desprotegidos da sorte (que pejam as ruas) também lhe fere os tímpanos.

    Está a definhar-se o aio, saltando ais lancinantes a cada 2 passos, mas arrima-se à sina (morra quem se arrenega!), não há outra saída, senão a desbunda. Em desespero de causa, o apoderado faz o diabo-a-quatro: proclama o estado de exceção no pino do Inverno, o de sítio na Primavera, o de guerra no Verão. No Outono, esfuma-se, o desalmado. Dele perdura a alembrança e a lambança numa casa assombrada.

 

10
Nov12

Florilégios - Pérolas (mais ou menos fidedignas), à pala do OE 2013, com comentários

Jorge

 1º cônsul

. Não se pode inventar um contexto internacional mirífico (mas há povos miríficos…);

. Não nos interessa fugas para a frente (para os lados, ou para trás, ainda vá que não vá!)

. Um governo responsável não embarca em aventuras (a passagem da dívida pública de 90 e tal do PIB para 117% ou coisa que o valha é exceção);

. A solução dos problemas não passa pelo abandono da União e do euro, a maioria não quer (não sai quem quer, só se houver alguém a empurrar, como no sumo…)

. O OE 2013 pede imensos sacrifícios (os melhores povos, por vezes, são masoquistas, força!)

   Falou em maturidades mais longas (a) e nas grandes performances das finanças domésticas (b), sendo que a e b se destinam a impressionar impróvidos.

. É preciso pensar na reforma estrutural do Estado, na refundação do programa de ajustamento. O Estado que temos é o melhor? Não! (refundição soaria melhor e não era tão ofensivo para Afonso Henriques);

. Vamos combater a evasão fiscal (neste século?)

. Nenhum membro do governo é insensível às dificuldades (são muitas as lágrimas de crocodilo vertidas diariamente nos gabinetes ministeriais, consta);

. Queremos solidariedade dos países europeus, mas temos de arrumar a nossa casa antes (arrumar o quê, vassouras, baldes, mochos, panos, sapatos? Para tanto basta uma arrecadação…)

 1º tribuno

. O senhor (1º cônsul) falhou em toda a linha (mas deu o seu melhor);

. O senhor e o seu governo seguem por um caminho sem futuro para todos nós (então a solução passa por reparações nos caminhos, no governo, ou no país, verdade?)

. Não conte com uma revisão constitucional que derrube o Estado Social (há «n» maneiras de matar moscas)

2º tribuno

. O país está em crise, por causa da bancada do lado (afinal, os responsáveis estão identificados e não se põem a ferros?)

. O despesismo é pai da austeridade (a facilidade de acesso ao crédito, ou os subsídios a fundo perdido, qual deles terá sido a mãe?)

. As medidas que propomos, para contornar as presentes dificuldades baseiam-se na equidade e na justiça social (e no amor ao próximo e na promoção da paz no mundo).

3º tribuno

. A popularidade em política é efémera (é lindo, quando a alma lhes trasborda!)

4º tribuno

. Esta proposta de OE é uma afronta a quem vive do trabalho (será o trabalho uma afronta?);

. O seu governo (1º cônsul) prossegue uma política de terra queimada (já tinha cheirado a isso, a guerra; os capitães limitam-se a obedecer às ordens…)

. Qual reavaliação, qual carapuça! (este nível de linguagem só pode vir de alguém de fora do arco da governabilidade).

5º tribuno

. O senhor veio despachar o OE 2013, não discuti-lo (é apenas suspeita, ou, na 4ª à tarde, não vai haver prolongamento da discussão?)

. A Banca financia-se a juros de 0,75% junto do BCE e compra dívida pública da gente a juros altíssimos (os amigos são para as ocasiões);

. O governo tem um plano B e já negoceia um 2º resgate (premonição e divinação ficam bem a quem o poder detém; já fervilham boatos sobre os futuros planos C e D e os 3º e 4º resgates!)

6º tribuno

. O melhor povo do mundo merecia um melhor OE 2013 (não se pode ter tudo);

. O aumento do IVA na restauração trouxe mais desemprego, mais encerramentos e menos cobrança de impostos (e preços mais altos para os clientes, já agora!);

. Reformados roubados, desempregados e doentes vão contribuir para o reajustamento da Banca (mas ficam com lugar marcada no céu, não vão ter que passar pelo buraco de uma agulha qualquer).

1º cônsul

. Nós estamos a cumprir com o plano de reajustamento, tal qual foi assinado pelo seu partido, senhor chefe da oposição, (ora venha lá o primeiro que me diga que «quem conta um conto acrescenta um ponto»…)

. A reforma do Estado é necessária e espero que o senhor se junte a nós (o menino dança?)

. Não é verdade que seja minha preocupação primeira salvar a Banca, mas há um Fundo que só pode ser usado pelos bancos, por determinação de quem de direito (que sorte a da Banca, ela pode dar-se ao luxo de ver preservados os seus direitos adquiridos!)

1º tribuno

. Os cidadãos cumpriram com a sua parte, o senhor não, a sua receita falhou (pois, pois, bem me pareceu que a receita falava em lume brando, não lume máximo);

. É preciso dar prioridade ao investimento (não seria melhor pôr cobro, em primeiro lugar às práticas de branqueamento?);

. Este governo não tem solução possível, nós saberemos assumir as nossas responsabilidades (ó senhor doutor, parece que eles não querem sair, só daqui a 2 anos e picos…)

7º tribuno

. A troika sempre fez avaliações positivas (observações destas elevam a autoestima dum povo, mesmo o melhor do mundo!)

. Este orçamento é amigo das empresas e do euro (e do ambiente e da onça também).

8º tribuno

. O Estado fica melhor servido com o ensino privado (ao estado que o ensino público chegou!).

9º tribuno

. Este é o OE do caos (a teoria do mesmo nome atualmente merece muito respeito da comunidade científica);

. As previsões da recessão e da inflação para o próximo ano não batem certo (ora bate, bate cantava o grilinho no seu buraquinho, cri, cri!)

10º tribuno

. O Estado não está gordo, a dívida sim (não vale fazer remoques a uma dama de tão provecta idade…).

. O senhor não tem legitimidade para dar cabo do Estado Social (tem para o reduzir à expressão mais simples, ou não?)

1ª tribuna

. Refundação não, o que o senhor (1º cônsul) deseja é a liquidação (pelo caminho que isto leva, o pessoal fica refundido de todo!)

1º cônsul

. O governo não quer um 2º resgate (para quem não quer há muito);

. Ó senhor (10º tribuno), então as dívidas não derivam das despesas? (correligionários riem a bandeiras despregadas, o que faz prova provada que nem sempre muito riso seja indicativo de pouco siso);

. Se não pagar, o país desce a um estatuto de menoridade (ele já é tão pequenino!)

. A escola pública pode fazer melhor (querem ver que o homem se prepara para acabar com os conselhos gerais, com a avaliação docente indecente, com as turmas de 28 alunos, com os mega agrupamentos, com as intromissões abusivas, com o desemprego?!…)

. Se for preciso acorrer as despesas não previstas, vou recorrer a medidas suplementares (fica-lhe bem a coerência, Catilina!)

11º tribuno

. Era desejável que o fundo de recapitalização dos bancos tivesse outros usos (alto aí, cada galo no seu poleiro!…)

12º tribuno

Xingou que se fartou a bancada do lado (mas pediu batatinhas).

. Não está prevista a criação de um banco de investimento? (Um apenas?)

13º tribuno

. Este governo só trouxe fome e miséria (mas é praticante sério das obras de caridade, assim salva-se!)

. A greve geral vos mostrará como têm andado errados (desta feita será por tempo indeterminado?).

2ª tribuna

. O senhor (1º cônsul) não gerou o problema, piorou-o (pra melhor está bem, está bem, pra pior já bastava assim…)

. O senhor (idem) não tem pinga de vergonha (tem cá uma lata!).

14º tribuno

. O país está a ficar com uma dívida à italiana, um desemprego à espanhola e uma crise social à grega (a ideia é um dia viver à grande e à francesa, ou à alemã).

15º tribuno

. O Este governo é reconhecido na Europa (assim podem fugir-lhe, quando está por perto).

16º tribuno

.  Agora o governo fala por fábulas, como a do carro usado e a do maratonista (esqueceu-se a da cigarra e da formiga);

. Vai o governo devolver fundos do QREN? (que remédio, se Bruxelas e Berlim exigirem de volta o vil metal!)

. O IVA de caixa é uma fraude, porque foram redefinidas as «pequenas empresas» (isto serve para protelar a entrega do IVA para as calendas gregas?)

1º cônsul

. O senhor (11º tribuno) está equivocado, não posso desviar as verbas do fundo dos bancos, não mo deixam fazer (na melhor das hipóteses batem-me, na pior abatem-me!)

. A demagogia tem limites (desde quando o mundo é mundo, ela é inesgotável…)

. O governo não fugirá às suas responsabilidades (mas, quais responsabilidades, a culpa não é toda da bancada do lado?)

. Temos credibilidade na Europa (não será antes cadastro?);

. Vamos pedir sacrifícios, mas é para bem de todos (já viram que vamos gastar menos tempo a comer, a ir às compras, ao cinema, é só poupança e nela está o ganho!)

 Há aqui um lapso quanto a uma intervenção de fundo do 1º tribuno que parece ter declarado, entre outras coisas, que o 1º cônsul costuma entrar mudo e sair calado nas reuniões por essa Europa fora, o que provocou um mal-entendido com a defesa da honra do 1º cônsul.

3º tribuno

. O sufoco social é culpa da bancada aqui do lado, que está sempre do lado do problema (a culpa continua a morrer solteira, chamem a polícia);

. Este OE tem sensibilidade social (ora bem, se não a tivesse haveria muita mais famílias insolventes, não é verdade?)

. Vamos cumprir a nossa missão (nem os kamikazes eram tão pintados!)

17º tribuno

. Os senhores (do governo) estão sempre a dizer mal da bancada do lado, mas viabilizaram os orçamentos dela (quando se trata de defender interesses de classe, não há abébias!)

18º tribuno

. Felicito-o (3º tribuno), mas na especialidade pode haver alterações, não é verdade? (lá fora a chuva cai novamente sobre um chão já empapado).

19º tribuno

. Gostava de ser esclarecido quanto ao contributo do montante da taxação do património e dos aforros, posto que os trabalhadores vão ter que arcar com a totalidade da importância a ser cobrada em 2013 (o homem é chato, é zero, claro…).

2º cônsul

. Queremos construir um país com igualdade de oportunidades, numa sociedade aberta e coesa (para uns os condomínios fechados, para outros a penitência aberta);

. O país está numa encruzilhada (atenção aos pactos com o diabo, é nas encruzilhadas que se fazem!)

. A recuperação no emprego chegará em 2014 (de promessas está o inferno cheio, não é?)

. Queremos que este país seja um caso de sucesso (querem ver que as Novas Oportunidades estão de volta?!)

  Vieram 2 tribunos, de sangue na guelra e desancaram o 2º cônsul, um deles apelidou-o de salazarento. Apiedado veio um outro, do mesmo lado da barricada, disse ser o 2º cônsul o maior, afirmação que deixou o visado nas nuvens, tendo baixado à terra minutos depois.

9º tribuno

. O senhor (2º cônsul) leu um manifesto contra o 25/4 e a constituição (a reação não passará!)

20º tribuno

  Falou, falou, galanteios para a direita e para o centro e também pediu qualquer alteracãozinha para o OE 2013, na especialidade (é sempre mais do mesmo com estes ajudantes).

2º cônsul

. A utilização do termo «salazarento» parece-me insultuosa (ora vejam a virgem ofendida!)

. 1976 foi o ano da aprovação da primeira constituição; de 1974 a 1976 houve totalitarismo (afinal ele gosta de cassetes, não de casse-têtes).

21º tribuno

. Mantenho o termo salazarento que usei (é de homem!)

     Uma terceira tribuna – recentemente chamada à ribalta -  bateu forte fortemente, mas ainda como quem não sabe bater, sem deixar mossa aparente no 2º cônsul e no OE 2013. Seguiram-se outros tribunos, alguns repetentes, do pró e do contra. O entronizado 2º cônsul passou ao lado dos reparos, eriçou as penas, compôs trinos e gorjeios crocitantes e foram todos às suas vidas.

   Na manhã seguinte, perante muitos lugares vazios, houve mais do mesmo ritual.

22º tribuno

. A bancada aqui do lado, faz-me lembrar aquele dito juvenil: «para evitar a ressaca que se continue a beber» (este rapaz parece falar com conhecimento de causa…)

23º tribuno

. O atual governo quer diminuir a pobreza (os trabalhos estavam chatos, era preciso pôr a malta a desopilar o fígado);

24º tribuno

. A coligação sofre de má-fé ou de esquizofrenia política, querem-nos a negociar, mas depois agridem-nos verbalmente (vocês têm é inveja do conforto dos nossos novos popós, tomem!)

25º tribuno

. O senhor (24º tribuno) é um deputado a fingir, num parlamento sério (o homem disse isto sem se desmanchar a rir).

24º tribuno

. Os senhores usam o tempo como vazio (tempos houve em que se afirmava que a natureza tinha horror ao vácuo, mas não há verdades imorredoiras, pelos vistos).

26º tribuno

. Um estadista não foge ao passado (com o olhar, tenta-se lobrigar um estadista nos passos perdidos).

3º cônsul

  Falou estremunhado e com ar de enfado das mil e uma maravilhas do seu magistério.O seu ego arrasta a própria sombra.

. O governo não esquece os que constroem a sociedade (e parece que se referia aos trabalhadores);

. Tivemos que negociar com os credores (então o chefe recusa-se a fazer o mesmo com os credores do país, este negoceia com os dele e não é corrido?).

4ª tribuna

. As pessoas não contam, o senhor (3º cônsul) cortou até dizer basta (quebrou a monotonia, pois o senhor é considerado um ás, não se faz!)

3º cônsul

. Os cuidados de saúde do país são do melhor que há no mundo (a humildade é apanágio dos humílimos)

   Houve mais intervenções ilustrativas e elucidativas. E depois o golpe de teatro: a senhora presidenta acha que há tempo para as declarações finais, ainda no período da manhã. Põe à votação se os trabalhos prosseguem ali mesmo, se na parte da tarde; ganha a primeira. Consciência pesada, sensibilidade aos gritos, receio de queda do poder nas ruas? A lição estava bem estudada e as voltas foram trocadas a protestos e protestantes (para grande gáudio, pretensamente esconso de bastantes. Tramas que o poder tece!) Nas considerações finais, um tribuno inflamado de fervor classista debita: seria antipatriótico não pedir sacrifícios aos trabalhadores, quando sabemos que muitos empresários estão aflitos; a classe média ficaria pior se o OE 2013 não fosse o que é. Na mouche! Outro, só para chatear, desfecha: «esta decisão envergonha esta casa, é degradante». Referia-se provavelmente à anulação da sessão da tarde («meramente indicativa», no dizer da presidenta). Ilustrativo! Dito!

 

10
Nov12

O bom e o bonito! (2)

Jorge

A - O deão acaba de fumar o primeiro cigarro do dia, à revelia dos conselhos do físico da sua congregação e em contradita com o seu propósito -  velho e relho de 10 anos -  de não ceder à tentação da nicotina. Ele sabe também que a acroleína é mal tolerada por confessos e dignatários com quem lida amiúde. Lança mão de alternativas: cigarros a fingir, tratamento de choque, cigarros de enrolar, trabalho numa mina de carvão, aquisição de um chaço expedidor de fumaça por todos os lados. Sem efeitos práticos! Chamado à pedra pelo seu superior hierático e hierárquico, leva que contar, por conta daquelas modernices. No seu registo eclesiástico fica a mancha: admoestação por cedência ao popularucho, ao pimba, à borra-botice. «Missão é vocação, conhaque é bebida!».

    Tenta libertar-se apressadamente da prisca, quando se apercebe que um grupo de devotos estuga o passo, a envolvê-lo numa calorosa receção. Topam-lhe o pivete e a beata na mão e solta-se o remoque: «Então, anda a dar pouca atenção à saúde!» - comenta Tânia Jacqueline, a mais fervorosa. «Os justos pecam 7 vezes num minuto, eu peco 8, paciência», motejou o presbítero. «Vamos às confissões que hoje tenho 7 liturgias».

   Instalado no confessionário, ouve a última penitente:

- Ontem cometi um pecado mortal, reverência - denuncia-se a Faustina Segismunda.

- Deus dá o pau, o pão e o perdão, não temas – diz o deão pachorrentamente.

- Fui a uma manife, excelência – confessa, a olhar para os pés Faustina Segismunda.

- Contra o divórcio, contra o aborto, ou a favor da isenção concordatária de tenças? – pergunta o deão, seguro da resposta.

- Não daquelas para derribar a governação, eminência – desembucha, acalorada a confessa.

- Isso é pecado mortal! A rua serve para andar, não para reclamar. Já agora, tens mais pecados para relatar, idas à praia, borgas, comportamentos sexuais desviantes? - persiste o confessor, com cara de poucos amigos.

- Não, eu limito-me a ver a banda passar, eminência e excelência reverendíssima – assenta Faustina Segismunda.

- Absolvo-te, mas como penitência, terás de cumprir todos os dias uma marcha de 3 km, durante um período experimental de ano, faça sol, nevoeiro ou chuva! Em caso de reincidência, passas a fazer o dobro da caminhada. Imita os anacoretas e aprende a resistir às tentações do danado cornúpeto (desarvora o clérigo com cara de poucos amigos) e atira-se a uma cigarrilha, por conta de uma crise de nervos acabadinha de germinar.

   Faustina Segismunda suspira profundamente. Acometida de má circulação, há 2 lustros atrás, não tem pedalada para tanta andança. Não vá a barca do paraíso deixá-la apeada, ali mesmo decide investir os seus parcos dividendos na compra de um motociclo. Foi o bom e o bonito!

 

B – É dia de manife. Dalila faz as abluções matinais, elimina penugens incómodas, disfarça as cãs, maquilha-se a propósito, toma o pequeno-almoço de derivados de soja, lava os dentes, põe-se garrida e ala que se faz tarde! Contas redondas, todas aquelas demandas tomam-lhe 2 horas do seu tempo. Nos dias de folga, dá férias a relógios, despertadores e outros artefactos controladores do seu tempo.

   Enquanto tenta localizar a carripana, deixada não sabe bem onde (as carraspanas têm o dom de fazer perder o norte), Dalila medita: «Já esteve mais longe o retorno ao horário de trabalho superior a 12 horas de todos os dias da semana». Há dias, um especialista já se atrevera a tal propor. Retirou o proposto, quando uma botifarra do representante do grémio lá do sítio se materializou sobre os seu calo de estimação, durante uma conferência de imprensa, sem direito a perguntas. Que súcia!

   As busca do pópó prossegue, bem como as suas elucubrações intelectuais e existencialistas: «Trabalhar dá saúde e faz crescer, diz-se. Mas, agora poucos investem em bens de valor acumulado, transacionáveis. O que está a dar é mesmo a roleta, russa, vermelha, americana, europeia, qualquer uma serve, para não falar no el gordo, no euro-milhões, no totoloto, nas apostas de cavalos, de grilos, no bacará, etc… Cambada!» Pronto, está ali o carro, 5 quarteirões abaixo de casa.

     Grita-se, escreve-se, canta-se: «Fora com a trinca!», «Fora, fora maiorais, não perdem pela demora!», «Vão gamar para a Conchinchina, seus moinantes!», «Abaixo a cáfila de amigos do alheio!», «Mandadores, vão vergar a mola!», «Não há lã que aguente tanta tosquia!», «Vão chatear o Camões!», «Abaixo a ditadura que nos tortura!» «Serventuários de gatunos, meliantes a dobrar são!», «A sociedade civil é quem mais é ordenhada!», «Os que se abarbataram com os subsídios são nossos conhecidos!», «Vão pregar aos peixes e deixem de nos pregar na cruz!», «Quem muito se abaixa, o fio dental mostra!» Ela própria compõe uma mensagem, em cartolina desmaiada: «Beija-me, gosto de beijos, quando me fazem!». Tinha barbas o dichote, mas mesmo assim foi parar à boca e aos olhos de meio -mundo, dada a serena entoação prestada à tirada e pelos xiboletes e manguitos associados, mais tarde milhares de vezes vistos e revistos na net. A coisa promete!

   Dalila, no meio da mole humana hiperativa, vibra a plenos pulmões com canções de escárnio e maldizer, cantigas de intervenção, baladas dos tempos da velha senhora e hinos à liberdade de todos (não só daquela que rima com propriedade). Por um palco improvisado, mas nem tanto, passam cantores, cantadores, cantautores, recitadores, versejadores, poetas de raiz popular, (pimbas excluídos), palradores e entertainers a gosto da intelligentsia. Que comoção!

   De volta a casa, Dalila revê o episódio 1143 duma telenovela em que é cabeça de cartaz, uma saga intensiva, extensível, mas ostensível, arrulhos, pilhéria, bordoada e venturas q.b., interpretada au ralenti, por alguns cromos lídimos na arte de bem representar à custa de muitos rictos, muitos cruzares de braços e muito jogo de cadeiras. Consola-se com uma ceia de salmão fumado e ovas de esturjão, regada capitosamente por 1 ginjinha, 1 garrafa de um reserva maduro tinto e 1 bagaço. Ainda se dá conta que os noticiários a tiveram debaixo d’olho, na manifestação. Que emoção!

   Quando o noticiarista inicia uma peça sobre as repercussões de um ataque suicida levado a cabo por uma família obrigada a devolver a casa ao banco, por incumprimento das últimas prestações, Dalila, emotivamente esgotada, ferra o galho. As câmaras dão conta de desestabilização da ordem pública, noite dentro. E foi o bom e o bonito!

 

10
Nov12

O bom e o bonito! (1)

Jorge

I – As finanças e a economia estão submetidas a tratamentos de polé, em período induzido de vacas magras. Mandantes encomendam estudos sobre estudos, fervilham pareceres, comentadores debitam parlendas, possidentes querem soluções, (nota-se um indisfarçável restolhar de mãos à sorrelfa, como quem manda valores acumulados, para parte incerta, onde estarão a precato e a recato). O povão braceja, abnega-se, reforça diques e muralhas, enquanto reza, dado o hastear do sinal 10 de borrasca. Neste salve-se-quem-puder, de forte travo a realidade oculta, o contrato social dispõe que as passas do algarve sejam deglutidas pelo peixe miúdo, pelo Zé Mexilhão, a contas com maior trabuco, menor manduco e viva ó velho!

   «Eu não quero saber de política. Temos uma vida a viver» - a tirada de filosofia barata dantes repetido à exaustão, em conversas de compadres e comadres, parece ter as horas contadas. Em tempo de vacas gordas é da praxe olhar para o lado, fazer vista grossa a quem tem mão baixa, ou canta a palinódia, ou coleciona xénios, ou dá cobertura a lóbies, desde que chegue para todos. Agora que «a pátria está de calças nas mãos estendidas», a maioria do silêncio, em transe se der sacrificada na pira sacrificial, começa a querer sacudir a muita água que se agarra teimosamente ao capote.

    «Alguém tem vindo a comer as papas na cabeça da gente, sem-dizer-água-vai» - proclama-se. A boa-fé no pacto social já não é um facto adquirido: «são todos iguais, uns capiangos, uns Metralhas de trazer por casa, vão para o poleiro, para se encher». Abrenúncio! Os líderes visados agarram-se de unhas e dentes ao capachinho, não vá ficar a careca à mostra; quedam-se especados, siderados, olhos vidrados e coração esfriado. Já não há respeito (tão bonito que o magano é) aos que se sacrificam pela coisa pública!

   «Vamos às urnas, bora daí!...» - é convocado, a trouxe-mouxe, novo sufrágio, ao qual concorrem 15 partidos e 5 coligações (a do Povo Invencível ensaia o enlace de uma dúzia, numa plataforma de união minimal, sem sucesso). A Aliança do Cupido (A.C.), comanditada por homens bons e mulheres boas - do arco da governabilidade - promete a regeneração. O receituário cinge-se à reciclagem do maná do deserto, das especiarias do Oriente, das delícias dos haréns arabescos, do eldorado, do céu na terra. O ciclo virtuoso delineado pelos cupidíneos dá-lhes as maiorias todas - absoluta, qualificada, simples, aferidas pelo método de Hondt, e o de Saint-Largue, apesar do montão de votos em branco e de abstenções.

    Já ao comando dos destinos do burgo, a A.C. intenta a recuperação, com passos de dança e toques de magia. Todavia, o panorama gera mais do mesmo: crédito mal parado, juros da dívida impostos por somíticos rapaces, abate de mercados internos, procura curta, investimento magro, entre outros. O ciclo de prosperidade prometido converte-se em miragem. Anjos, arcanjos, querubins e serafins (em greve, por tempo indeterminado), não se dão conta que um ciclo vicioso dá o golpe do baú e se alapa, de armas e bagagens, ao cofre-forte do burgo.

    Da conjuntura, filha legítima da estrutura, só se emerge com sacrifícios equânimes aplicados ao povão (besta de carga, pagador sistémico, congénito e contumaz), é voz corrente. «O destino marca a hora pela vida fora, desde os primórdios da acumulação primitiva, que havemos de fazer?»

   Os conciliábulos enchem-se de carpideiras (os rios correm sempre para o mar, verdade?) e às ruas chegam acusações e lamentações, com maior acrimónia. Os novéis entronizados recolhem a penates, atafulham as portas com ferrolhos e resistem, sempre a dizer que não há alternativas para o mal e a caramunha. Agora dizem que, se os cafres defenestram os cofres, tal é a deriva da imperícia de governantes e governantas que os precederam. Por isso, só há exceções para bem-aventurados indigitados pelas divindades, o resto da malta fica entregue à trinca: tanga, pão-e-água-e laranjas e carro de S. Francisco.

   Enfadados, alguns cidadãos de alguma nomeada e que não tinham votado na coligação A.C. demandam os mandadores, em sede forense, com vista à reparação por perdas e danos. Na oportunidade, os julgadores supremos determinam que sejam esmifrados os que comprovadamente tenham contribuído com o seu voto para aquela vitória. Foi o bom e o bonito!

 

  II - Um comissionista da praça diz, de viva voz, que nada obsta a que os governantes deitem mão à racionalização de medicamentos destinados a doentes terminais. Há limites ao acesso às drogas mais caras, quando falta pouco tempo para deixar esta vida e ingressar na outra.

   Ouviu das boas o profeta da desgraça, nas tertúlias, nos cafés, nos postos de trabalho, nos corredores de acesso aos balneários e do poder, nos programas teledifundidos, nas liturgias, nas spas, nos eventos culturais, ai se ouviu!

   Maria, reformada encartada, classifica a tirada de repugnante e nela descobre contornos de eutanásia por receita e encomenda. João, desempregado de longa data, pretende saber se aos médicos já foi concedido o direito de dispor, a seu bel talante, da vida dos outros, em tempos de procela, situação que lhe é sonegada em tempos de paz. Francisco, afamado conselheiro da praça, é taxativo: racionalização e racionamento são como azeite e vinagre, exigindo sempre talento na separação das águas. António, outro comentador realista e lealista, reconhece que a solução já está em aplicação em gafarias, sifilocómios e lazaretos do país. Joaquim, microempresário, pergunta se terá sido publicado recentemente algum diploma legal que diferencie os doentes de primeira dos de segundo, terceiro e quarto escalão. Pedro, estudante universitário, diz que ninguém pode pôr em xeque a vida dos outros; guerras à parte, só deus. Paulina, paladina de causas sociais, apoda o comissionista de marrão torpe, varrão nazi e paparrotão lendeoso, assim por esta ordem. Bernardo, enfermeiro em vias de emigrar, admite, com ar comiserativo, que os mercados estão a deixar cair os velhos, os estropiados e portadores de deficiência, pelo lado da receita e da despesa.

    (O debate público quase descamba para insultos, sopapos, caneladas, beliscões, esticões de cabelos, dentadas, ferimentos; se mais nada de gravoso acontece e mesmo tiros, tal se deve à suspeita que os tratamentos da saúde já não dão garantias, estarão pela hora da morte).

   «Alguém está a distorcer propositadamente a recomendação do meu grupo de missão. No balneário, o grupo defende a equidade, o progresso, o aumento da esperança de vida à nascença, à adolescência e à maturidade e a igualdade de condições. Só que, no campo, grandes opções não rimam com ilusões. Todos somos iguais perante a Lei, só que a Lei não admite ser igualitária para todos». Nem ele desmente a ingente e evidente urgência de poupar uns cobres, mesmo à pala de mais indigência.

   Nos dias seguintes, todos os doentes reais e potenciais esgotam o stock de canetas, no preenchimento do testamento vital. Todos declinam tratamentos de 2ª apanha, antes dos derradeiros suspiros. Foi o bom e o bonito!

08
Nov12

Comam sapateira!

Jorge

 

    Há quem diga que sim, outros que não. Terá sido a senhora Dona Maria Antonieta - que Deus a tenha na sua companhia – quem se armou ao pingarelho: «Não há pão? Comam brioches!». Não parece que os referidos produtos de esmerada confeitaria fossem mais populares e baratos que uma carcaça ou uma bolinha, nos idos do século XVIII. Todavia, no dia em que a coroada cabeça debitou o desabafo, havia grande oferta de brioches no mercado, por falta de procura, nos dias conturbados da revolução gaulesa, um ponto de viragem para a definição de novas estratégias do mando global. O povo - alevantado - estava mais que farto de monarquias mais ou menos ensolaradas e de cabeça noutros amanhãs, sem amos. Por isso não ligou peva à douta conselheira, foi-lhe antes no encalço, para lhe tratar do epitáfio.

   Foi preciso esperar pelo século XXI – já sobram poucas cabeças coroadas e há novos amos – para que surgisse uma émula da senhora dona Maria Antonieta, também em tempos de tresmalho, em que o povo andava de alevanto. Pessoa de alto carisma, bastas vezes trazida nas palmas das mãos dos seus concidadãos que cumulava de desvelos e primores a instituição filantrópica a que presidia, não se conteve, perante o diktat da crise, da austeridade, do empobrecimento forçado e explode: «já não se pode comer só bifes todos os dias!» Está ciente que muitos dos seus concidadãos andam de cinto apertado, a cortar na água, na luz, na roupa, na casa, na escola dos putos, nos transportes, nos trapinhos, no gasóleo, na gasolina, na saúde e que a compreenderão. «Se não há bifes, coma-se sapateira!» Por acaso o marisco, por aqueles dias, tinha andado escondido ou de aspeto enfermiço. Disso se ressentiu a demanda, à imagem e semelhança dos popós topo de gama. Apanhado de surpresa pela frigidez do conselho prodigalizado pela emuladora da aristocrata pacóvia de antanho, o povo (com mais olhos que barriga) nem mostrou os dentes, antes a remeteu à carapaça da sua insignificância.

 

04
Nov12

Cenas do quotidiano

Jorge

Cena 1 - «Vais levar essa camisa?» - a pergunta é desfechada, assim como quem não quer a coisa. Olhar tenso, mãos escorridas ao longo das ilhargas, ela não deixa escapar aquela desarmonia. O consorte, com os segundos contados para se apresentar a tempo e horas no emprego, dá-se conta que a combinação ensaiada não se adequa, de facto, aos padrões impostos ao seu status, que a bota não condiz com a perdigota, aquela camisa não rima com as calças, ou vice-versa. Quer armar-se em teso («usa-se agora assim!»), mas, caso saia naqueles preparos talvez faça figura de tanso, ela tem razão. Atira 2 calinadas para disfarçar o mau-humor e o amor-próprio ferido e, sem levantar ondas, busca outra camisa e escapula-se sem grandes alardes, sob o olhar matreiro dela, a seguir-lhe os movimentos, pelo rabo do olho. «Até logo, fica bem!». Raios!...

Cena 2 - «Não me digas que vais andar de pijama todo o dia!» - o reparo sai em tom despreocupado, mas cheio de subentendidos. A observação, feita aparentemente em tom cordato, escorre verrina. O consorte tem uma estima muito especial por aquele pijama de motivos orientais que o enlevam. Sente-se confortável naqueles preparos, para mais em dia feriado, em que folgou por conta da desvalorização do pago. «Incomoda-te?». Que sim, até se podia dar a circunstância de uma visita não anunciada, fica mal pois. Ele atira 2 palavrões sonoros, arma-se um ligeiro quiproquó, é o último a calar-se, o que o convence da retidão da sua postura, mas sai de rabo entre as pernas a pôr uma roupinha de trazer por casa. De regresso à sala, ela não diz nada, mas ri-se por dentro e para dentro. Ele não lhe dirige a palavra nos 60 minutos seguintes.

Cena 3 - «Andas em casa com esses calções?» -  a pergunta sai em tom anódino, mas mói. Cara de poucos amigos, mãos enclavinhadas em torno do espanador, pose de entendida, larga a bomba e retoma a ocupação iniciada, manhã cedo. «Não havia outros passados a ferro» - reage o consorte, sem sorte. «Não tens mãos?». Pronto a conversa acaba ali, cada uma vai para seu lado e ele lá desencanta outros calcões de trazer por casa. Fora comprar os jornais, entusiasmara-se com algumas notícias desportivas, enfurecera-se com outras (que desaforados, atrevem-se a falar em compras e vendas de atletas, porra!) e para ali ficara a remoê-las (haverá compras e vendas de repórteres, de jornaleiros, de colaboradores?). Sem perdão. Daí a pouco, ela passa a gozar de fininho. Ele não lhe aprecia os modos e ficam 2 horas sem trocar palavra.

Cena 4 - «Que faço outra vez para o jantar?» - o reparo é tão normal, como a sequência da noite e do dia. O consorte, que segue, relaxado, as peripécias de um jogo de futebol, fica incomodado. «É sempre a mesma cantiga, ao fim do dia». Segue-se as lamentações, eu é que faço tudo cá em casa e sua excelência de papo para o ar, numa de alienação. Até se incomoda em dar uma sugestão. A verdade é que a ela causa desconforto a prática desportiva de sofá, irrita-a as horas dedicadas a dar cabo da vista e perde as estribeiras, porque ele foge à partilha de tarefas. «Faz roupa-velha». DDá-se a coincidência de ter sugerido a mesma coisa no dia anterior, má-sorte a dele que tem de ouvir um chorrilho de impropérios, mas persiste na atividade iniciada, há 3 horas. Ao jantar, cada um dá cabo da sua posta de peixe, mas nem ele tuge, nem ela muge, até a manhã seguinte.

Cena 5 - «Vamos às compras?» - a pergunta fatal é sempre feita ao fim-de-semana, impreterivelmente. O consorte lê tudo nas entrelinhas: vamos ao supermercado e pagas tu, que remédio, o que o incomoda superiormente. «Quando será a tua vez de alinhares?». Aquilo é demais para os seus ouvidos, ela que paga uma série de contas, sobre as quais vão recair em breve mais aumentos. Apetece desfechar-lhe uma galheta, mandá-lo aquela parte, fazê-lo engolir a ignomínia, pô-lo porta fora. Mas, refreia os cavalos, esmifra os seus gastos que estão a ficar incomportáveis e diz-lhe que tenha juízo e maneiras. Ele diz que o graveto é cada vez menos, é preciso cortar nisto e naquilo. «Só me faltava passar fome, com os teus ademanes de forretão!» - desfecha à laia de ponto final daquela troca de impressões. Resmoneia, durante meia hora e ele moita-carrasco! A noite é ainda uma criança, quando o centro comercial mais próximo os acolhe nos seus braços. Mas, a cena contribui para que não se falassem, durante 1 dia.

Cena 6 - «Tantas dores que eu tenho!» - o reparo tem o tom do Ultimato Britânico. Ela agarra-se ao estômago, depois à barriga, faz caretas ao dar 2 passos, tosse, retosse e quase regurgita um extrato de panado ingerido ao jantar. Pronto, o consorte fica a perceber que não há nada para ninguém, ele que se tinha posto a jeito, na antevisão de uns minutos bem passados no bem bom. Nada feito, caraças e já lá se passaram 20 dia!... Se ainda fosse por ela estar num estado interessante, ou num dia proibitivo, ou por estar fragilizada por uma doença qualquer… Mas não, aquilo cheira-lhe a temperança desmedida, vai ficar a chuchar no dedo, é o que é. Agastado, passa pela cozinha a afogar as mágoas num copo de vinhaça, dá 2 socos na mesa, mata acintosamente 2 mosquitos com ar de terem contraído dengue e volta incomodado para o tálamo nupcial, onde a companheira já dorme a sono solto, julga ele. Nisto, ainda ouve uma voz entaramelada de sono: «Volta a cara para o outro lado, que me incomoda o cheiro do palheto!». Ficam 2 dias sem trocar uma palavra.

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