Violências que induzem violência
As coisas sórdidas rebaixam o homem, desmoralizam-no.
Rodrigues Miguéis
1 – Do cais do Sodré parte a ala de manifestantes (poucas centenas) ligados a 4/5 movimentos sociais, convictos que têm uma palavra que deve ser escutada, em tempos de bulcão, em que se contorce o rincão. O percurso levá-los-ia à praça do Rossio da capital, para se integrarem na manifestação convocada pela CGTP, em dia de greve geral, uma raridade. Cada palavra-de-ordem liberta uma alfinetada à conjuntura e aos homens do leme. Por acaso sente-se no ar eflúvios de pirotecnia. Há uma cena de «chega-te para lá», breves arrufos na praça do Comércio, na presença de muitas testemunhas postados em volta de «níveas».
2 – Na praça do Rossio junta-se outro agrupamento menor, vindo das imediações da praça do marquês que cá fazia falta mais uma vez, pelo que se confirma que a reincarnação tem os seus quês. Percebe-se que não há boleia do grosso da coluna que já pôs pés a caminho, em melhor companhia, presumivelmente, a CGTP já não mora ali.
3 – Dá-se início à caminhada para o anónimo largo fronteiro ao parlamento, através do Chiado. Há poucos agentes de forças de segurança, por perto, mais pessoal da organização. De caminho, cá vai mais uns petardos para a viagem e uma caixa multibanco fica esfacelada. Dos autores da proeza não reza a história e não ficaram lá especados à espera de serem algemados… Muitos olhares de soslaio se cruzam e encolheres de ombros também. Estes cromos não fazem parte do filme, pois não? Ninguém os catrafila ou afasta?
4 – O grupo saído do cais do Sodré alcança o seu destino, a tempo de ouvir o discurso de Arménio Carlos, um ás em recriminações piedosas. Fica bem claro que a greve teve larga participação – 85% de adesão à greve – e isto não é anomia social. Chama-se a isto fazer das tripas coração e que se cuidem os manda-chuvas que a sobrevivência está em perigo, portanto nada de brincadeiras com o fogo. Esgotada a oratória, o secretário-geral da CGTP dobra a manta e aqui me vou eu. Na altura, abala um número significativo de pessoas vindas ao protesto, mas muitas permanecem ali, a ver em que param as modas. No dizer de uma plumitiva - respaldada no braço protetor da autoridade - gente que aprovou a violência, porque a consentiu (sabe tão bem ter aconchego no regaço da moral dominante).
5 - Depois as coisas vão acontecendo, como num ensaio já feito anteriormente: a retirada de barreiras de proteção, lançamento de objetos (pedras, garrafas e petardos, para o caso) dirigidos à linha da frente da força de intervenção ali estacionada. Os balões de tinta mais ou menos indelével são a novidade, sujam e embaciam os escudos. Dessa ação se encarregam sobretudo jovens, alguns de rosto tapado, outros de máscara mal afivelada. Muitas das pedras são arrancadas nas barbas de guardas azuis, presuntivos praticantes de homens-estátuas (contudo, deve haver por ali gente com problemas de visão e – já agora - de audição). Há quem fale línguas estrangeiras e, sabendo-se das desconfianças com malta desta, alguns demonstrantes voltam a olhar de esguelha, a reprimenda contida, apesar dos desmandos dos putos rabinos, não vão esses estrategos da conspiração global deixá-los de cara à banda, com um braço ao peito ou um olho à banda (a quem incumbia a missão de afastar elementos indesejáveis, à polícia ou à organização? O horário do protesto estava esgotado?) Voltam as palavras de ordem que se resumem a isto: este governo tem de saltar, pelas pragas que tem atraído ao país, porque está de cócoras, porque é pau mandado. Muita gente continua a olhar, a ver no que isto vai dar; até sentado se pode dizer que se está contra a parolice, contra a embriaguez do poder, ou contra as velhacarias, etc… Valeu?
6 - Os zelotes ensaiam movimentações estranhas, operacionais sobem (numa ocasião, há um escudo retirado com o inscrição «povo»), outros descem, num arremedo de manobra ensaiada. Parece que alguém intima o pessoal a desamparar a loja, através de um megafone. A ordem é abafada por um coro de assobios e parece destinada ao sector donde partem aos arremessos (sem instalação sonora à maneira, como quer esta gente fazer-se entender no meio da algaraviada que por aqui vai?). Desconfia-se que no extremo da praça ninguém se dá conta do aviso à navegação. Ninguém arreda pé. Nova advertência, a mensagem soa sibilina, aliada aos mesmos achaques de sonorização. Não tarda que os agentes, desembestados, surjam, de escantilhão, a malhar a torto e a direito em tudo o que corre ou mexe. Confesso que não tenho estofo de herói e bazei, desarvorei de pés a bater no rabo, impotente, atazanado, mortificado, mas não atagantado. Pelo andar do andor, qualquer um dos circunstantes poderia ir bater com os costados a uma padiola ou ao chilindró, confinado à acusação de desobediência civil, ou outro mimo qualquer do lingujar judicatório, uma encantação para exegetas de uma das profissões mais antigas do mundo (a propósito, os putos rabinos de comportamentos desviantes terão sido detidos?). Tento compor os trejeitos e meneios de morador do bairro, mas não há tempo para poses. Desconfio que os polícias quiseram aderir à greve e que, por motivos patrióticos, amouxaram e lá foram molhar a sopa, arriar a giga, cumprindo uma transferência inelutável da mágoa absentista. E fizeram sangue.
7 – Diálogo:
- Não deem cabo disso! - uma senhora idosa, à janela, repreende um moço que tenta pegar lume a um contentor de lixo.
- Por que não, estamos a defender-nos, porque aí vem a polícia disposta a bater! – resposta do moço, de cara descoberta.
- Vão dar cabo do que é vosso! – replica a entradote senhora.
- A gente está também a lutar por si! – responde o jovem entradote.
(De um lado fecha-se com estrondo uma janela, doutro solta-se um palavrão de ressonâncias náuticas).
8 – Nos noticiários principais a greve fica para segundo plano, bruxo! «Há que dar prioridade» ao jornalismo «de faca e alguidar», uma forma de atrair incautos insetos às teias peganhentas entretecidas pelo império. No caso vertente, de uma penada, matam-se 3 coelhos (salvo seja!): é a greve atirada para 2º plano, tenta-se fazer crer que afinal os comunas são gajos afetados geneticamente pela violência e dá-se a entender que há mais donde veio esta dose.
9 – Veio o chanceler (promoção de fresca data) e revela que não tinha visto as imagens (coisa estranha no primeiro oficial da corporação, está-se nas tintas ou já sabia que haveria molho)); nada diz também sobre a austeridade, a causa primeira dos protestos (deve estar para lavar e durar, com equanimidade). O comandante supremo da soldadesca falou e disse do alto da sua premência de cabotino: com a tropa não se manga! Ainda não tinha visto imagens, mas pareceu-lhe bem a bordoada, coisa de trinque. À boca cheia ainda se pavoneou de ter trabalhado no dia em que muitos dos seus concidadãos tinham feito gazeta (cambada de malandros, como pode o país andar para a frente!) O chefe das polícias disse que as cenas tinham o patrocínio de meia dúzia de profissionais do agitprop e que polícia agiu dentro dos cânones e usou 3 substantivos de marca: profissionalismo, serenidade e firmeza. O porta-voz militar dos cívicos lamentou os incidentes; falou na má ação de dezenas de indivíduos (é feio incomodar-se com meia-dúzia de maltrapilhos, dezenas tem mais impacto!) e para caraterizar o seu procedimento de cauterização dos desacatos usou 2 adjetivos de marca - seletivo e ajustado - e 4 substantivos, de região demarcada: oportunidade, proporcionalidade, adequação e seletividade. Enquanto chorava azeite por um olho e vinagre por outro, avançou com a estatística oficial: 21 agentes tinham ficado feridos (que raio de bicho os terá mordido?! Crise de raiva? Morderam a língua?), num total de 48. Também se deram algumas detenções, mas só de um dos lados. Apenas 3 ou 4 formações de menor calibre e peso social recriminaram o comportamento dos guardas azuis. Eu também acho que a autoridade tem destas coisas: uma boa chapada faz mais pela personalidade de um tipo que 100 ordens por cumprir, às vezes. Eu, por exemplo, estou farto de malhar em ferro frio: por falta duma estratégia paralela a esta, é que as escolas funcionam a pé coxinho.
10 - Era necessária esta malhação e destruição toda, por conta de meia dúzia de pategos já monitorizados? Prendam-nos, institucionalizem, transfiram os moçoilos, caso contrário eles vão persistir no direito à indignação que acham que têm, por linhas tortas!... Depois, vou ter de arranjar um explicador que me tire as dúvidas sobre formas bondosas e maldosas de violência. Vou então querer saber se a violação, a violentação sistemáticas de direitos conquistados não são paridas pela violência, (não ignoro que bastam 2 assinaturas, para as erradicar, não custa nada!) e se não estarão sob alçada da lei. Agora, isto eu sei: expetativas de vida, sonhos de afirmação na vida, projetos familiares só estão ao alcance, em plenitude, dos predestinados (de condomínios fechados, proprietários, jet-set e correlativos). Também sei que, quando a desgraça se sucede a um estado de alguma graça, a dor ataca forte e feio. Os desbocados coordenadores da austeridade sem objetivos acham que os sonhos dos entes e valores queridos não devem ser caucionados; nada, nem ninguém deste mundo os fará demover de lutar da felicidade deles. Nessa via, vale tudo menos tirar olhos, isso entendi.
11 - Por estas e por outras é que vou passar a desfilar com a maioria silenciosa, quando ela se atrever a sair do armário. Dizem que há passeio, a viagem e viandas à borlix; os discursos suportam-se, mas, se calhar põem a cantar e a encantar um desses cantores romântico-popularuchos que «não fazem política». Assim, levaria muito que contar, que não para o tabaco. Esses são os bons desfiles, daqueles que não contribuem para o agravamento da dívida soberana de um país tratado como lixo pelas agências de ratingue e com os pés por governantes que não acertam uma, uns farristas empedernidos.
12 – Aprendizagens a retirar da situação: I – A violência faz parte do património de mandantes e mandatários do poder que sustêm a estrutura económica. II - Parte-se o coração à polícia e aos seus chefes, quando têm de despachar um par de estaladas, mas o que tem de ser tem muita força (mãos frias, mas coração quente). III – A nata do capital tem também muito amor para dar aos seus (contra ventos e tempestades), de preferência; a lei da selva não se compadece com pieguices. IV – O pessoal que não tem unhas para tocar guitarra, que se amole, que trabalhe o dia todo, que se esfalfe, tal é a obrigação imposta; não pode é ser emissário de violência, recetor ou controlador vai-que-não vai. Depois, sempre pode recorrer à caridadezinha… V – Há muitas maneiras de matar moscas.
13 – Promessa: prometo solenemente que, se for para o restabelecimento total da economia, nunca mais saio à rua.