Intolerância (ar sujo)
Pé ante pé, zarpa de um casita que a havia albergado – e a outras 10 almas – durante anos, razoavelmente bem passados. De conluio com o recato da lua, põe-se a milhas, em 2 tempos. A rapariga – gemebunda, apesar de tudo - galga terreno a olhos vistos, sem que qualquer restolhada a denunciasse, leva asas nos pés descalços, é o que é. Numa esquina mal enjorcada, porta de entrada para um beco de má respiração, é esperada pelo homem da sua vida, pronto a abraçá-la, sem que haja alguém a presenciar. Vão juntar as trouxas, onde jazem que meia-dúzia de haveres reunidos a trouxe-mouxe, filhos da pressa e da excitação. Tornam às juras de amor eterno, sem grandes planos para o futuro, a não ser aquela vontade avassaladora, totalitária de ficarem lado a lado, para o-que-der-e-vier.
Desembarcam numa dependência de um casebre, mal servida das condições mínimas de sobrevivência, onde se acotovelam muitas pessoas que fazem pela vida, ocorrendo às tarefas mais primárias das comunidades das redondezas. Nos dias imediatos juntam-se à maldição de ter de amealhar para eles e para um rebento que vem a caminho. Não há semanas inglesas, pouca comida, não há matinés, nem soirés, nem folgas, nem assistência médica gratuita, trabalho só trabalho, de sol a sol. Para o caso daquele casal de pombinhos pouco conta a aridez da vida, pois que se têm um ao outro. Os dois ambicionam apenas que os deixem em paz, entregues aos seus delíquios, à contemplação um do outro, que respeitem o direito à diferença, que esqueçam que eles existem.
Também pela calada da noite, chega uma caleche, semanas mais tarde. Ninguém liga pevide, é apenas mais uma. Só que esta pára muito de mansinho nas proximidades do local onde dorme o casal. Pé ante pé, sai uma senhora cuja indumentária destoa das pessoas ali presentes que automaticamente sustêm a respiração , só inspiram e expiram, depois dela. A seu lado 2 homens peitudos abrem alas até ao ninho dos pombinhos. Ali mesmo crivam a moça de mil pancadas e a deixam exânime. Limparam as mãos à parede e voltam atrás sobre as suas passadas, outro tanto fez a matrona. Que era mãe, a mãe da rapariga que tanto se havia esmifrado num casamento arranjado com alguém da sua laia. Não há chamadas para as emergências, nem para a polícia, nem julgamentos, nem reprovações dos congéneres (a sua coragem, pelo contrário, é glosada pela mazania). Sobram, ainda assim, muitas escarretas de desdém para a rapariga que acaba de entregar a alma ao criador. O rapaz, escorraçado, é mandado para terras pagãs, sitas no cu de Judas; caso volte, espera-o uma corrida singular, ao longo da linha férrea de via única, sempre em frente.