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oitentaeoitosim

01
Mar13

Teurgias

Jorge

   Taumaturgos intervêm, motu proprio, no País Tetragonal. Cansados de esperar sentados em sólios etéreos, apiedam-se de tantos rogos e – a verdade é para ser dita - exibem mãos largas. É um ver-se-te-avias de miráculos, uma maravilha para os íncolas, crentes e incréus, que se deixam fotografar boquiabertos, extasiados, a esfregar as mãos de alto contentamento, por não se acharem merecedores de tantas graças. Aceitam-nas piamente, não vão as deidades perder a face. Se os santos da terra já pouco percebem da arte, é nobre que se criem condições para que outros, de naturalidade incógnita, obrem prodígios.

   Um tandem celestial 1 acrescenta ao seu currículo vasto (a crer apenas na versão oficial, useira em omissões piedosas), uma série de intervenções portentosas que pouparam felizmente muitas vidas, no meio de muita lata retorcida. Contam-se, pelo menos quatro intervenções miraculosas, em datas recentes, envolvendo meios de locomoção terrestres, em localizações distintas, intramuros. Os cuidados com a manutenção têm sido escassos, por falta de alcatrão.

    Em dolina fagueira e prazenteira de terras de Ourém, na segunda terça parte do mês de Maio, já se tornou corriqueira a experimentação de uma oura, em torno do Sol. Aqui, nem é preciso fazer muitos cálculos, nem dar voltas ao toutiço. O fenómeno traz a marca da Padroeira (com o beneplácito de S. Jorge, possivelmente), que, de resto, já conhece bem os cantos à casa.

   Que foi o recente regresso aos mercados, senão outra manifestação miraculosa? Houve muito peditório nas orações, a sugestionar novo oráculo. A graça terá sido da autoria de um tandem do olimpo que ainda está no segredo de muitos outros deuses (sobre S. Mateus e S. Onofre recaem muitos palpites). A fórmula mágica seduz cada vez mais povos e os justos de além-mundo não têm mãos a medir, que a fortuna não pode ser privilégio de poucos.

  Anda o País Tetragonal necessitado de novo milagre. Uma ala poderosa tenta contratar D. Sebastião e o Prestes João, para que ficasse a contabilidade da Fazenda em dia. Estariam eles dispostos a arrostar contra o Papão e o Homem-Do-Saco e em defesa da honra do Zé Pagode? Parece que sim, mas a operação poderia ser morosa. Outra ala, mais realista, promove rezos, procissões, ladainhas, liturgias e peregrinações, numa tentativa de demover o Céu a equilibrar as contas, sem mais aquelas.

    Estava-se nisto, quando, Deus-Pai  – ao-fim-e-ao-cabo o responsável último pelos milagres – se dá conta de descantes. «Alto e para o baile, que eu quero saber por que bulas devo contrariar o destino traçado desta gente.» - terá dito na sua infinita sabedoria, enquanto se ouvia um ruído de fundo vindo do País Tetragonal profundo.  «A gente aguenta!» - cantam de galo um coiro desafinado. «Não pagamos!», responsam outros coristas, na mesma moeda.

    É anulada a missão impossível, os santos, Jerónimo e Bárbara de sua graça, são liberados da missão e tomam em mãos uma sortida à Gronelândia, terra donde desaparece o gelo, mesmo em tempo de frieiras. As esperanças voltam-se para a descoberta de ouro negro na imensa área de jurisdição marítima do País Tetragonal que encha as medidas à trindade austera. Os submarinos já estão a postos.

 

1  S. Cristóvão e S. Amaro (soube-se por portas e travessas)

 

01
Mar13

Dizer e fazer não comem à mesma mesa.

Jorge

I - Diálogo entre Maria, a progenitora, e Filipa, a filha.

- Filha, come a sopa!

- Não vês que está muito quente?!…

- A sopa dá saúde e faz crescer e fria, nem uma coisa, nem outra.

- Isso é conversa de cotas…

- Então cá em casa passas a consumir tudo frio, que é para aprenderes!

- Vê lá se te acalmas, deitaste cebola e sabes que não gramo, dá mau hálito.

- Dou-te 5 minutos para limpares o prato, estás a gastar o meu rico tempo com birrinhas.

- Por que não te vais embora, eu já acabo…

- Despacha-te, o que tu queres é enfiar a sopa cano abaixo, mas eu topo-te!

- A suspeita, a teoria da conspiração ainda te põem tísica!

(Bastos minutos depois, Filipa traga a sopa, empurrada a goles de água básica. E leva que contar: 2 nalgadas e comida fria até ver).

II – Diálogo entre Maria, a progenitora e Filipa, afilha, 2 meses transcorridos.

- Come a sopa, filha. Já viste a minha paciência?! Sempre que há sopa, vira o disco e toca o mesmo!...

- És muito paciente, quando calha. Quando o teu chefe te faz a folha, temos sempre sopa e entornada, cá em casa...

- Não te metas nisso, não são contas do teu rosário, ouviste?! Come, sempre de seguida, que é para teu bem…

- A minha mãe diz que me mima, mas dá-me sopa fria!

- Chega de conversa fiada. Sabes que mais?! A partir de hoje ficas sem semanada, sem telélé e sem computador!...

- E tenho que me dar por satisfeita, não é?

(Muitos minutos depois, Filipa desfaz-se da sopa, empurrada a goles de água ácida. E leva ainda mais que contar: 2 nalgadas e novos castigos penosos).

III – Diálogo entre Maria, a progenitora e Filipa, afilha, 1 ano decorrido.

- Come a sopa, filha. É preciso ter paciência de Job contigo, sempre que há sopa na ementa!

- Tem muito sal, pouco azeite e está grosseirona.

- Uma desbocada me saíste tu, não te levantas, enquanto não embuchares o que tens na malga, sua melga!

- As minhas papilas gustativas e o meu cérebro atrofiam-se com os eflúvios emanados da sopa, que queres?!

- Brinca, brinca, que logo choras! Vê lá se te caiu um dentinho. Ficas a saber que passas a não sair aos fins-de-semana, não vais à natação, nem ao ténis, só recuperas a semanada e já vais com sorte!

- Mas que generosa tu estás, hoje! Descascas o abacaxi com medidas de escacha-pessegueiro e ainda gozas à brava!...

(Muitos minutos depois, Filipa engole a sopa, a goles de água neutra. E leva que contar à brava: e nalgadas e mais austeridade anacorética).

IV – Da vez seguinte, apresenta-se Filipa disposta a colaborar, sem escoicinhar. Está farta de amochar, de engolir sapos. Já deita sopa pelos olhos, mas quer liberar-se, de uma vez por todas, dos ralhos, da frieza desapiedada e da mão leve da mãe (por desvelo, dizia ela, é preciso ter lata!). Odiava com todo o ser as represálias emolientes, libidinosas. Passaria a alinhar, antes assim que é mal menor.

    Anunciam-lhe que já não havia dinheiro nem para sopa de cavalo cansado. Sem rebuço, queda-se por ali.

01
Mar13

Sempre que chove, é um dilúvio…

Jorge

 

Olha que a vida não é, nem deve ser
Como um castigo que tu terás que viver

 

António Variações

 

    Sujeito nasce aureolado de quotiliquês, de pernas e mãos atados pelo venial pecado que é de trabalhar para o mercado estruturado. Face aos decálogos de direitos & ca lda correlata, tem como certo o usufruto das 7 maravilhas do mundo, do país, da comuna e da aldeia, ali mesmo à mão de semear. Tem para si que ninguém ousará usurpar o quinhão de bem-estar, de felicidade, de ascensão social inatos à democracia, o sinapismo indicado para toda a peçonha. Começa em gaiato por acumular créditos, que é quando o pepino se deve pôr a torcer. Sem se saber ler nem escrever, atira-se, de alma-e-coração, ao percurso académico da praxe.

   Sujeito adulto, enfrenta decisão de monta: ou se integra num primeiro lote de indivíduos que casam precocemente, têm filhinhos e ganham para despesas, ou vai para um segundo lote, em que estão os que buscam voos mais largos, apontam ao topo, continuam a estudar até ao fim da linha e só acasalam, criam rebentos e se afadigam a fomentar a conta bancária, mais tarde. Mas, se os créditos forem muitos, pode aspirar ao terceiro lote, o dos salvadores da pátria, os quais arrebanham casamentos, filhos e vil metal, em prol da comunidade.

    Num dia de crise, teve que optar, para o que lhe é concedido um período probatório, luminosamente negociado pelo seu anjo da guarda com as potestades em que conseguiu. Não desmerece dos preceitos cristãos, pelo que começa pelo bom e pelo melhor, pelo 3º lote. Goza da liberdade dele e dos outros, encontra graças no desfrute da propriedade, compra quitandas, aposta em roletas e capitaliza réditos e créditos, que põe em descanso em cofre-forte.

   O estágio no 2º lote dá para experimentar as passas do Algarve (a bagaceira do medronhal, nem cheirá-la!), ora distribui conselhos aos poderosos com quem colabora a bom preço e de quem apara os golpes de bom grado, ora vê-se de bolsos rotos, sobraçando garrafa volumosa de ginjinha de Óbidos, ora vai de seca para meca a recibos verdes (dos verdadeiros e dos falsos), comendo por tabela. Quando se convence que os vampiros tinham chegado com a gripe A, põe-se a gritar ao vento que passa e quiseram, pelo que esteve na eminência de ir malhar com os costados ao frenocómio mais próximo. Safa-se por uma unha virtuosa de um arcanjo de serviço ao estaminé, em dia de féria do usual angélico protetor.

    Com os do 1º lote, sofre tormentos de Tântalo, enfrenta as 7 provas de Hércules, vê-se entregue à bicharada e quase termina os seus dias agarrado a um cobertor, debaixo de uma ponte, esquelético de esperança, com poucas forças para sacudir as moscas que o importunam. Um dia dá de caras com o sr. Tobin que, ato contínuo, lhe açula um rottweiller às gâmbias, numa troca de identidade comprometedora; mas que ele é possuído de feições e ademanes de Rockefeller, isso está comprovado. Safa-se, pela intervenção de um querubim, ocasional substituto do seu anjo da guarda (que passava pelas brasas).

     Fez coincidir a decisão final à do TC sobre a inconstitucionalidade do deve-haver pátrio e mátrio. Três hipóteses estão sobre a mesa: viver num bairro degradado e clandestino (estilo Mombai, com turistame, à coca), encafuar-se num convento de frades cartuxos, ou governar uma sucursal bancária, de grossas comissões à cabeça. 

   Acaba no deserto do Atacama, a cultivar peixinhos da horta e a investigar a influência da luz das estrelas na incipiência genética da árvore das patacas.

   No dia da abalada, decorre um congresso de banqueiros (falam grosso, atroando os ares com seus narizes-de-cera), um canal televisivo faz uma gala (de audiência superlativa e clangorosa), espraia-se uma marcha-ó-filambó (o rei desfila coberto pelo manto diáfano da Verdade) por avenidas ricas, outras pelintras, realiza-se um peditório nacional para as vítimas de um maremoto (o bem, como a pintura, de longe é que se procura, reza a publicitação do ato falhado) e capitalizam-se indulgências.

   O lodo prolonga-se por barras, cais e passadiços…

 

 

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