(Porque os outros vão à sombra dos abrigos E tu vais de mãos dadas com os perigos )a
Tinham sido apanhados os 2 amigos à má fila - crias implumes – por uma matula de cães de fila (dos que ferram e não largam a presa), a mando de grotas muito ciosos de propriedades e quitandas protegidas. Tinham-se tomado ambos das dores dos coevos, vizinhos, familiares, concidadãos e de todos os cosmopolitas. Tinham-se posto a jeito, de peito à corrente, nas tintas para remoinhos, correntes de retorno, borrascas, tornados ou quejandos. Tinham dado o peito às balas e os torcionários não se fizeram rogados. Entanguidos, questionados e seviciados, não transigem com os ideais de justiça, de liberdade e de democracia para todos, tendo em vista que a exploração do homem pelo homem é inadmissível. Gente esquisita esta: oferecer o outro lado da face, em acometida consentida, vai-que-não-vai; agora oferecer os 2 lados da face por procuração, como o faziam estes 2 indefessos anjos da paz, já custa mais a engolir!
(Porque os outros têm medo mas tu não) a
As cadeias albergam amigos de bens ou vidas alheias, em parte ou no seu todo. O refugo da sociedade encontra algum refrigério na choça, assim mandam os manuais e estamos conversados. Os calabouços também recebem mecos creófagos, dispostos a comer o coração, figadeira e fressuras dos imigos à primeira oportunidade, desacerto ditado por ambição desmedida e crónica de mando. Encarcerar sonhos é mais difícil, mas é a via restante, em longas noites de jugo fascista. A talhe de foice se adita que, em tempos de cerejas, de pouco valem a solitude imposta, o degredo vexante dos aljubes de má fama, a busca das arcas encouradas, porque as flores estão sempre dispostas a nascer, nem que tenha por único arrimo o solo pedregoso. Os esbirros adestrados no uso e amolação dos machados de cortar pensamentos e propósitos pela raiz, mais tarde ou mais cedo acabam vítimas de layoff.
(Porque os outros se mascaram mas tu não )a
Cá fora os charlatões espalham a cizânia, que tinham impedido uma invasão de bichos-papões, homens-do-saco e associados, dispostos a dar «injeções atrás das orelhas» dos seniores incautos, a degustar «criancinhas ao pequeno- almoço», que roubam tudo e não deixam nada, que são ateus, graças a deus. Pregava-se que ascendiam a Drácula, ou ao dragão que S. Jorge arrumou em 2 tempos, que rescendiam ao porco sujo e que eram inimigos da pátria «de Minho a Timor», de deus e da aparecida e igualmente das famílias «com pão e vinho sobre a mesa. Só a justiça de Fafe, de Rio Maior, ou da Inquisição os traria de volta ao seu perfeito juízo. De caminho, distribuíam papas e bolos.
(Para comprar o que não tem perdão Porque os outros usam a virtude)a
A blandícia solta-se do verbo que, no princípio, acalenta e nunca arrefenta. Voz que recusa a ignomínia, porque usada ou entesourada ao serviço das liberdades amplas, no passado e no presente. Meu deus, estas 2 almas jovens censuradas levaram que contar, conheceram enxovalhos aos molhos e da sua boca nem uma queixa! Nenhum deles reivindica loas, medalhas, prebendas, estatuarias (ou são ou fazem-se!) Quiseram dar-lhes uma pensão, mas contentaram-se com um «registo criminal» limpo, porque basta o que basta e porque sim. Se a animadversão não mora ali, o orgulho pelo pundonor cívico pede meças. Uma nação perde em credibilidade, quando não se desbarreta perante estes e outros personagens determinantes que a pouparam a mais e maiores tormentos de tântalo.
(Porque os outros se compram e se vendem E os seus gestos dão sempre dividendo)a
In illo tempore, o enxovalho de estar na pildra ou ir a juízo, com ou sem culpa formada cobria de desdouro o visado e os próximos. Fazer o jogo do inimigo, atamancado na estranja, mas que forrava as portas de conspiradores era o cúmulo da abjeção. Vade retro!
Conspiradores de trazer por casa, emissários de lesa-pátria estavam mesmo a pedi-las, séjana com eles! que fossem para lá pentear macacos, pintar, fazer lavores, aprender filigrana, obrar e trabalhar para os bispos, preparar fugas, mas que desamparassem a nossa loja, que não contaminassem os ares e propósitos puros, à puridade. Se recebiam tratamentos de polé, bem os mereciam; se os esperava os remos da balsa de Caronte, ali para as bandas de Hades, era bem feito!
Casmurros duma figa: aqueles embezerraram, não quebraram, para espanto de muitos. Convidados a trocar a geena pela conversão disseram não, que quem se rende recebe mais do que vale. Orgulho e água benta!... Fizessem como a maioria, não tugir, nem mugir, assim se vai longe (com um latido frio nas tripas, que importa?) Os indiferentes ainda cá estão e alvitram: a revolução de que eram os apoderados esboroou-se e eles já nem têm o muro de Berlim para consolo, só umas pedrinhas de coleção. De muito lhes valeu!
O tempora o mores!
(Porque os outros se calam mas tu não)a
Há quem cante até que a voz lhe doa; para raros, as melopeias saem mais acordadas com a voz muito dorida. Há quem cante de galo, de clérigo, para marcar um ponto. Há quem cante para sentir, ou para explicar. E há quem encante com a voz embargada: eu vi um grupo de pessoas, de choro contido, preso das palavras de ex-prisioneiros políticos de voz presa. Há quem diga que foi a rememoração do gangarreão (corpo inchado, orelhas em fogo, pés em brasa, olhos ressequidos do sono surripiado) que os pôs naquele estado. Que não – opinam outros -, antes teriam lobrigado os rostos impostores, as refeições e cheiros abjetos, as conversas escutadas, a safadeza de gestos e decisões longas horas de resistência à delação. E eles inconcussos! Julguei que já não havia declarações de amor assim…
(Porque os outros são os túmulos caiados Onde germina calada a podridão) a
Pode estar por perto nova cruzada. A ditadura, agora dita financeira, mas sempre ditada pela economia, para desdita do povo a quem se prometeu mundos e fundos, após luminosa alvorada, volta a saquear a parcela de felicidade a que concorre toda e qualquer pessoa, porque se vive em tempos (mais uma vez!) de forte incivilidade. A exploração sob a capa do sacrifício, o diletantismo que inferniza os dias, a justiça com destinatário certo, lembra a murraça da velha senhora. E estamos para aqui só para encher o ar de soquetes?
( Porque os outros calculam mas tu não Porque os outros são hábeis mas tu não)a
Atenção que este duo não se rende! Ambos os dois sonham com o reviralho, aos descamisados a vida está a correr mal e eles não refutam a sua causa. Têm-se por jovens e tementes ao povo e continuam a dar tudo pela revolução, até as camisas. Um dia destes ainda voltam às barricadas, que de burricadas estão fartos. Isto vai, meus amigos, isto vai!
Estão a perceber?
a Versos de Sophia de Mello Breyner