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oitentaeoitosim

29
Jul13

Pica

Jorge

Sousa segue viagem no metro, refastelado num lugar conquistado, por artes ensaiadas. Tranquilo, atira-se à leitura do pasquim grátis da empresa que explora aquela mobilidade, uma folha-de-alface de notícias parcas e muita publicidade que, de resto, paga as notícias (uma prática tornada eficaz e reconhecida, há muito). A composição aportaria a 10 estações, provavelmente a fervilhar de gente, a maioria migrantes de todos os dias, antes de arribar ao destino do Sousa. Lê-o de cabo-a-rabo, põe-no de parte, há sempre quem se pele por um naco de prosa à pala; aprecia, pelo rabo do olho, as poses e facécias de companheiros de viagem (que rica loura ali vai!), dá atenção a um diálogo sobre futebol e outro sobre política, desvia o olhar doutras mensagens estrategicamente derramadas na carruagem (basta o que basta!) e, a páginas tantas, está a olhar para dentro, vencido pela sonolência crónica.

Sousa sente que alguém lhe puxa a manga do casaco de brim - mandado fazer por medida, na alfaiataria de mestre Mendes Joaquim -, de forma atrabiliária, e não gosta. Fica possesso, quando o acordam daquela maneira e cobre de impropérios e de retaliações quem a tal se atreve. Quem assim agia, não o conhecia, nenhum seu conhecido ou amigo a tanto se atreveria.

Gorgoleja já uma saraivada de disparates, com algum vernáculo pelo meio e prepara o contra ataque, quando é interpelado:

«Porte-se à altura, caro senhor!»

«Sabe por acaso qual a minha altura?»

«Já é altura de me mostrar o seu título de transporte»

«E porquê?»

«Eu quero ver, sou fiscal»

«Pois vá fiscalizar para a sua aldeia que daqui não leva nada!»

Palavra puxa palavra, a altercação sobe de tom, fervem ameaças veladas, até que não há mais nada para dizer: Sousa amarra o burro, moita-carrasco, que a insistência é ateimar no erro, persistência é elaborar pela certa.

Ainda fechado em copas, acede à plataforma da estação de destino, onde o aguardam agentes policiais (tipo taçalhão), dispostos a lançar mão de toda a lábia apreendida em ações de formação específicas, que lhe travam o passo, a tentar demovê-lo, antes de passar à ação. Responde educadamente a todos os quesitos, mas teria de pagar a multazinha da praxe que titula os clandestinos. Que nada tinha feito de mal para ser abanado daquela maneira, já tinha muitos anos de viagens no metro, merecia mais respeito. Tudo certo, mas as instruções para contravenções semelhantes que temos são estas e para com elas estamos obrigados, então terá de pagar. Se for parar ao pretório, acrescem juros de mora e outras coimas. Até lá, vá em paz, não volte a repetir o que fez, respeite o trabalho dos outros se quer ser respeitado.

«E o fiscal fica impune?»

«O homem está repeso, lamenta o sucedido e possíveis estragos e pede desculpa.»

«Cometeu um falta imperdoável! Que não me apareça mais pela frente, eu tenho direitos consignados na Constituição e na DUDH*.»

«Descanse que nunca mais o terá à perna, vai ser transferido para uma linha de PBX, assim ficou combinado. Faça por esquecer, não guarde rancor, perdoar é próprio das almas generosas e o senhor tem pinta disso e, agora, vá pela sombra, vá!»

«Talvez, que hoje lá fora parece um forno!»

«E vocês, seus mirones, qual é o observatório que vos paga para cheiricar, estão a olhar para onde, para onteontem? Desandem, circulem, mexam-se, pela vossa saúde!»

O pequeno magote de curiosos encaixa a arenga com cara de poucos amigos (já chegámos à Madeira?!) e com vontade de dizer das boas. Na oportunidade alguém opina que o fiscal se portara mal, que uma farda ou um posto não tornam o usuário num ministro plenipotenciário. Outro não se fica e replica que diz que a autoridade tem sempre razão, se assim não fosse lidaríamos com o caos social (a teoria científica do caos ainda não saiu do limbo) e isso não importa seja a ricos, seja a pobres.

Terça-se mais argumentos de igual quilate, mas toda a gente destroça em boa ordem, para alívio do comandante da missão que já está pelos cabelos.

«Sr guarda, só mais uma palavrinha!» - era o Sousa.

«E você a dar-lhe!»

«Posso mostrar o passe, como vê está em dia».

«Só agora?»

«Nenhum de vocês mo pediu».

Levanta-se uma sarrafusca das antigas, resultando que o Sousa vai de cana, por desrespeito à autoridade. O raio do homem é um safadista militante, se a maioria das pessoas passa o tempo a ver passar o tempo, isso é la com eles, os cívicos é que não têm mãos a medir, que falta de respeito!

O juiz decidirá da cassação do passe ao Sousa (um enxurro de cassetete é que era!) e se o fiscal e a empresa são credores de indemnização bigoduda.

Dada a premência do caso, e porque só havia 1 magistrado disponível, foi adiado o julgamento do administrador de banco que se tinha locupletado com uns milhões.

*Declaração Universal dos Direitos do Homem

29
Jul13

Cenas do País Tetragonal (II)

Jorge

Panelinhas, arranjinhos e Ca., Lda.

No País Tetragonal o bando do mando foi reformulado, empossado e aumentado e quer continuar a massacrar quem não controla a sua vida e a riqueza que produz. Aumentado porquê? A «soberania compartilhada» (termo catita a novel terminologia sociopolítica!) não aconselharia a redução dos efetivos do comando operacional?

(Não será a altura de, ao invés, pedir vigílias prolongadas ao Senhor dos Aflitos?)

 

No País Tetragonal comentava-se à boca vazia e cheia o caso da senhora de cara comprida, sisuda, monacal (parece também ser intérprete de outro tabu, passada alargada e apressada). A senhora, de perfil militarista, terá aposto a sua assinatura num contrato de empréstimo leonino (para os unhas-de-fome que alinharam com o pecúlio), a uma empresa estatal, no valor de milhões variegados, em tempos de vacas magras (por causa destas, um ex-presidente de uma coletividade do pedibola está de bola no pé). Aos costumes nada disse nada e continua a bater o pé e as solas de todos os sapatos e tamancos que tem lá em casa e no escritório que não provou da poção mágica. Nunca, jamais, em tempo algum, meti prego ou estopa na arriosca, digo, no tacho dos druidas, nem de tal ouvi falar. Aqui me vou e passem muito bem (dava-lhes gozo porem-me de cana, sacanas!)

O «nosso primeiro» veio a terreiro e disse que tirassem o cavalinho da chuva os detratores da senhora, que ela continuaria a mandar, enquanto lhe desse na real gana. São sempre os mesmos caramelos a apostar em cavalos de Troia, a conspurcar o bom nome das pessoas, querem é gamela farta. Numa senhora prendada não se bate nem com uma couve-flor.

«Eu próprio fui obrigado a mentir, por causa desses trafulhas que me antecederam e aqui me têm, a dar o peito às balas e pronto a defender a minha dama. Uma mentirinha para arranjo da vidinha de todos nós, deve ser considerada impune.»

(Não pagar a bolada está fora de questão!)

 

O «nosso primeiro» disse que precisamos de dinheiro para pagar ordenados (há 2 anos, as pensões entravam na lista). Dito de outra forma: o país está teso. Das 3, uma: ou o disco está riscado, ou anda moira na costa, ou a riqueza foi pelo cano abaixo. Precisamente há um par de anos, o estribilho, era igual, sem tirar nem pôr. Daí que o bornal da gente terá de emagrecer, mais taéis serão apresados e voltamos à cena de estender de novo a mão à palmatória, digo, ao óbolo.

(Isto está a compor-se, está!)

 

No País Tetragonal saiu pela porta pequena um comandante da coisa pública que tinha estado envolvido na gestão de um banco a quem os deuses decidiram pôr a mão por baixo. Aquando da sua admissão, deu-se uma bronca de todo o tamanho, mas o homem aguentou-se a ela, impávido e sereno; ela limitara os estragos do meliante, digo, das más práticas bancárias e evitara males maiores ao erário público.

Acaba de entrar pela porta grande um mestraço, voltado às lides da coisa pública, ligado ele também também ao mesmo banco protegido pelas deidades. Já foram ensaiados os primeiros acordes da marcha contestatária. Desconfia-se que um dia sairá pela porta dos fundos, se a podridão por lá acumulada lho consentir.

(Pelo andar da procissão, terá chegado a hora de requisitar pessoal do mando aos conventos de oblatos e oblatas de clausura.) 

21
Jul13

Axiónimos*

Jorge

I - Alguns cumprimentos charmosos

- Querida mãe, querido pai, então que tal? – Um formato que não serve apenas para dar música, ou encanto às letras, mas favorece a inteligência emotiva e os laços de parentesco. Já se imaginaram a usar as fórmulas alternativas, caro pai, cara mãe? Então na velhice fica feio para burro, não acham?

- Bom dia (consulte-se o relógio, com antecedência, a saudação termina às 12 h legais), minha senhora, gostou do nosso serviço? – Uma formalidade para clientes bons, aquele possessivo indicando que «nunca te veja a comprar na concorrência». A resposta afirmativa é dos cânones, impõe-se em 88,5% dos casos, esteja descansado que não lhe largo a porta. A versão máscula «meu senhor», cai em desuso, a partir do momento em que os suseranos arrumaram as botas, se armaram em benfazejos auxiliares do regular funcionamento da máquina social (excelência, meritíssimo, dom e doutor são alternativas mais aceitáveis).

- Tem passado bem, vizinho(a)? – Praxe a utilizar só em caso de comprovada vicinidade que pode ser demonstrada pelo comprovativo para estacionamento de moradores. Não deve ser usado, caso nunca se tenha visto mais gordo o destinatário da saudação. «Bem, obrigado (a), é a resposta recomendada pelos sãos princípios de convivência; alternativamente use-se a variante «bem, graças a Deus!», que as deidades rebolam-se de empáfia. Respostas estilo «vai-se indo!», «isto está mal, mas é preciso aguentar, que remédio!», «um dia fraco, outro forte!» e «vai-se vivendo um dia de cada vez» têm o seu cabimento, mas, cuidado, nem aos vizinhos se deve dar muita cúnfia, que os há muito quadrilheiros, sempre a cheiricar (bufos à moda antiga, assim é), sempre na disposição de levar e trazer e de nos deixar mal aos olhos dos outros.

- Diga lá, menina, em que lhe posso ser útil? – A etiqueta assim ordena, se não conhece a moça, a rapariga, a senhora de lado algum, cative, assim fica bem. Mesmo que já não seja menina e moça, mesmo que não queira flirtar, mesmo que a pessoa esteja a caminhar para o lado serôdio da vida, dá bons resultados puxar o brilho, dourar a pílula. Todavia, meça sempre bem as palavras, não está livre de encontrar mulheres sensivas, que não gostam que se lance a mínima suspeita sobre os dotes de atração polínica e aí entorna-se o caldo. Vá pela advertência: a açorda faz a mulher gorda e a menina formosa. A versão varonil caiu em desuso e desconfie se ela lhe é dirigida.

- Quantas camisas deseja, patrão? – Um formalismo que cai quem ginjas, enche as medidas, se dito em frente a uma assistência bem composta, mas cuidado não se abuse muita deste formato, em tempos conturbados, pode ser a expressão errada no lugar errado. Depois pode dar-se o caso do visado estar de candeias às avessas com a entidade patronal e assim não cativa, repele e neste processo dialético você perde. Navegar é que é preciso, cantar a canção do bandido, só na dose certa. A versão feminil não se recomenda, mesmo em tempo em que os géneros se aproximam como as miragens do real.

 

II - Outros cumprimentos, insinuantes, igualmente charmosos  

- O que toma, mestre João? - A fórmula ressuma a resquícios de medievalismo, mas soa bem aos ouvidos de um senior, reformado de preferência e na quietude dos seus dias e/ou profissão. Não são de bom-tom as versões femininas, embora houvesse mestras de catequese e escolares e até maestrinas, mas não soam bem a ouvidos mais sensíveis ou sensibilizados ou sensibilizadores.

- Como tem passado, dona Remígia? – Esqueça o medievalismo da atenção, chama-se a isto jogar pela certa, nenhuma mulher adulta (pelos padrões das formações políticas) desdenha o epíteto. Ter posses é donairoso, ser detentor d’algo dá estatuto social, mesmo que, na prática, não se seja dono de um tostão. Destarte, a prática desaconselha este tratamento formal a quem não seja dona da sua sombra e mesmo assim não fica mal. A versão varonil pode pressupor a posse de um título nobiliárquico, mas tem pouco impacto, pois em regime machista todo o homem é dono de qualquer coisinha.

- Gostou da prendinha, a minha princesa? (morgadinha não quadra tão bem e rainha pode ficar a matar, o que é de evitar) - Gentileza mágica que lhe pode garantir o acesso aos mais profundos recessos do paraíso ou para as imediações do mesmo, desde que a pronúncia e o tom soem com naturalidade e generosidade. Se alguma coisa falhar, adeus minhas encomendas, embarque noutra. Príncipe (mesmo real) é devaneio de horas concupiscentes, de cetro desembainhado, cuidado com os baixos golpes no seu estado.

- Vossa Senhoria, perdoar-me-á, mas é uma pena que abandone o cargo. V. Excelência deu o que tinha e o que não tinha para nos salvar do báratro, mas Vossa Reverência pôs e as circunstâncias dispuseram - Se a pessoa que distingue com a chapelada não fica melindrada, repita a dose sempre que puder, até que largue o cargo e a toga, se você divisa uma  sinecura, para cura dos seus pecados, desmandos, ou sacrifícios. Lembre-se que, na hora em que o corvo se pavoneou e cantou, a raposa ficou com o queijo e a faca na mão. Faça constar que as crises, sejam elas de lágrimas, de nervos, de valores, de emprego ou coisa que o valha, podem ser ultrapassadas com uma procuração acertada, ponha-se a jeito. Seja você a vender os lenços.

- A madame deseja que embrulhe? - Não, não vale a pena disfarçar, o seu cartão de crédito tem pinta, fosse o multibanco roscofe e nada disto se passaria. Pode aspirar ao jet set, se ainda não participou na cerimónia de iniciação. Aproveite, vista logo a roupinha que provou e procure, nas páginas classificadas, o local do chá dançante de beneficência mais próximo, o futuro é promissor. A versão masculina não consta que seja usada para cumprimento de pessoas sensíveis.

- O senhor comendador toma a bica com um travozinho, como só o faz em dias de comemoração? – Você recebeu uma comenda e o empregado do restaurante fino sabe-o. E também sabe que você carrega nos aperitivos, na vinhaça e nos digestivos, mas não lhe põe a calva à mostra, à frente de tantos patrícios, alguns deles pouco recomendáveis. Ele não o alcunhou de bêbado, nem coisa parecida, só está a recordar-lhe que agora tem outras responsabilidades e que as gorjetas terão de subir como os juros da dívida soberana.

 

III - Algumas saudações-padrão

- Senhoras e senhores deputados, senhores membros do governo, senhora presidente, minhas senhoras e meus senhores – Ninguém sabe donde vêm ou para onde vão; não prestam contas aos eleitores das suas circunscrições e são danados por contos do vigário, ou governam como lhes dá na bolha. Não conseguem fugir do mesmo pecadilho mortal, lá para as bandas do capital, por isso cada um à sua maneira interpreta uma parte da mesma liturgia. Depois vem a senhora presidenta e diz: «A proposta foi aprovada com os votos de todos os deputados do partido X, os votos contra do partido W e as abstenções dos deputados do partido Z. Haja pachorra!

- Obrigado pela nota que me deu, setor! – O profe fica de cara à banda, só deu a nota que o aluno merecia. O aluno não estaria à espera? Afinal deu-lhe positiva ou negativa? Não se recorda, não é, eles são tantos…É nestas alturas que convém olhar para a cara do aluno, para perceber se ele está a usar aquele tratamento de gozo, se em atitude de estima. Ou então fica à espera que termine o prazo para apresentação de recursos da avaliação.

 - Como está, senhor doutor? - Adereço equívoco, mas consagrado na gíria das feiras de vaidades e pode percorrer todo o arco das profissões liberais e a todos os cursos politécnicos, universitários, ou mesmo inexistentes. Em qualquer altura pode o genérico ser substituído pelo título a que tem direito a pessoa visada (engenheiro, arquiteto, jornalista, apresentador, etc.). Até que não fica mal tratar uma senhora por doutora.

- O senhor doutor mandou-me tomar estas pastilhas – Aqui não há dúvida, esta é a reserva dos médicos de profissão, a bem portuguesa e seu uso por estrangeiros. Dirigir-se a qualquer portador de licenciatura nestes termos pode ser uma tentativa de os engrandecer o senhor ou a senhora coisa e tal, mas vai contra os bons princípios da preservação da língua e sua divulgação por entre os estrangeiros. Cada vez está mais divulgado o correspondente feminista, tal a supremacia que se adivinha no ofício de Esculápio por parte do «sexo fraco».

- A lição vai ser dada pelo senhor professor doutor Álvaro Tiradentes  – O professor doutor chegou-se ao micro e propôs que o tratassem por Álvaro, que lá fora é assim. Fica mal, amigo, à tribuna vão os titulados, nessa não alinho, tenha paciência! Caso contrário, qualquer dia ninguém distingue um licenciado ou um mestre de um tipo com o 4º, o 9º, ou 12º anos e seria o fim da coesão social. O valor a quem o tem, pelas alminhas! (Cá se fazem cá se pagam, o senhor vai perder o tacho, é o que acontece aos sociais-alérgicos). A versão feminina continua em discussão, parece soar bem, tem musicalidade o epíteto de professora doutora, mas vai demorar muito em ser levada à prática, como o acordo ortográfico e pelas mesmas razões.

 

(Que aconteceria, caso inopinadamente todos desatassem a tratar-se pelo nome próprio, apelido ou cognome bom? Ali vai o Henrique, o Luís, ali vai O Fernandes, o Silva Teresa, ali vai o intelectual, o artista .... Seríamos obrigados ao uso de uma placa identificadora, ao peito?)

 

* Chulismos, catixas, neologismos, tribalismos e estrangeirismos aparte

 

 

 

 

 

20
Jul13

Notas de rodapé (I)

Jorge

. A polícia malhou que se fartou. No fim, houve apenas um ferido: um polícia. Cambada de malandros estes manifestantes!

. Um novo país adere à EU e já ascendeu ao 3º lugar do ranking da taxa de desemprego, um caso notável de sucesso na adaptação ao meio.

. O homem foi escolhido para ministro de um governo de um país do sul. Ficou boquiaberto, pois nunca se tinha lembrado de votar no partido que o convidou.

. Aquele clube tinha por mascote um leopardo e decidiu em assembleia magna de sócios que em todos os jogos fosse feita uma demonstração dos dotes do bicho, no início das jogatanas.

. Salustiniano amava aquele clube de bairro chique, só que não lhe viessem com essa de os jogadores alinharem de verde, que ele não enfiava barretes. Curado da deuteranopia, fez constar que tinha sido raptado e mudou-se para Marte.

. Sebastião Come-Tudo disse que os sofrimentos impostos ao povo o traziam inconsolável; tirou uns dias e foi participar nas cerimónias de flagelação de rua, nas Filipinas. De regresso a casa, pôs todos a pão-e-água, remédio santo.

. Venha o primeiro burgesso que se atreva a condenar os sacrifícios impostos à maioria, que lhes perguntarei se acham mal que nas guerras pereça mais soldadesca que comitres.

. Um carrasco vira-se para a amásia e sussurra ternamente ao ouvido: «Faz-me feliz!». A amásia solícita, empanturrou-o por 3 dias e 3 noites, até que rebentou.

. A senhora chamou carrascos a vítimas de carrascos, quando estava ao espelho. Pesarosa, pôs-se a retiro na sua pensão senhorial. Decorou com afinco novas sentenças judiciosas, pois era a 4ª vez que atirava a mesma bojarda aos inimigos da sua paz de espírito.

. Ele era um homem azarado: quando se propôs organizar briefings on e briefings off, teve um problema nas cordas vocais e ficou afónico.

. Aquele mandarim queixou-se, entredentes, que os seus antecedentes só tinham feito borrada, por isso ainda não tinha acertado uma. Seria ele do mesmo calibre? Amargurado, passou a dedicar-se à recuperação da frota pesqueira.

. O emérito capitalista, do alto de uma cátedra de pau-brasil, afirmou taxativamente que não tinha entendido o papiro encontrado nas ruínas do antigo aljube real. Não entendeu, mas não gostou. Toda a gente ficou a pensar que o futre ilustre não tinha gostado de não ter entendido.

. O eminente gestor, laureado com uma das condecorações mais famosas, por ser emérito condutor de orquestra, recebeu das mãos do líder do país a caminho do pântano o pergaminho e as notas. Ali mesmo lhe pediu um amigo jornalista que lhe indicasse a razão do prémio: liderança, disse ele. Grande cachola!

. Um tribuno pé chato volta-se para um tribuno pé-fresco, a desancá-lo. O visado refila a plenos pulmões, gesticula freneticamente, mas não se faz ouvir, à falta de um microfone operacional. «Está nervoso, doutor?!» O tribuno pé descalço, já em pé de guerra, espuma, esperneia, tira as medidas às fuças (sic) do intrigante e hoje por hoje, ainda não se recompôs da aleivosia.

. Tobias era um CEO que demitia a esmo, dava ordens a torto-e-a-direito, geria a seu talante as vidas de muitos zés-cuecas (sic). Quando chegou a hora de ser demitido, chorou baba e ranho, arrepelou cabelos, teve um ataque de caspa, bateu com os pés no chão, não com a porta. Assim ficou demonstrada a incompetência de Tobias.

. Os mercados reproduzem o deus castigador. Pecaste? Confessa-te, pede perdão e vai lá cumprir uma penitência (na razão direta da massa dos pecados). E precata-te, se reincides, tens o inferno à porta. Não tem que saber, o laico copia o sacro (ou será o contrário?)

. Aleixo poderia ter tido: se a poluição contamina muito, a corrupção contamina muito mais.

. O chefe da tribo impôs negociações entre os feiticeiros das 3 principais etnias e disse que tinha fé que haveria paz. No dia seguinte virou agnóstico.

. Lúcia, gestora da Alcatruzes da Nora e arconte em regime de comissão de serviço, faz constar que não mentia. Católica confessa, foi chamada ao ralete do confessionário, onde leva um ralhete de todo o tamanho, sendo avisada que deveria evitar más companhias, ou teria de acompanhar, pela net, todas as visitas papais a serem realizadas nos próximos 10 anos. Nesse mesmo dia, soube-se doutra demissão na governança do burgo.

 

19
Jul13

É pró menino e prá menina!

Jorge

 

Morituri te saluant!

    Instituições de crédito e sociedades financeiras exibem a fímbria e a fibra de que são feitas no manuseio pericial e especioso  de pecúlios, divisas, cartões, títulos, créditos, ações (das boas), na demanda de rendimentos pingues e chorudos réditos. Diversificar para reinar, são poucas a operar.

    Uma bataria de leis e profissionais especializados, põem-nas (quase) sempre a salvo do maralhal ignaro e desprotegido: coios de iluminados e entronizados, a lidar com cóios desentendidos da matéria.

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   ( Longe não vão os tempos em que só as elites se deslocavam ao banco; agora qualquer zé-quitólis acede a dinheiro fácil. Por isso, quando as coisas dão para o torto o campo de batalha enche-se de cadávares.)

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   Um pobre de Cristo põs pés a caminho do «seu banco», a saber dos reais ali armazenados, quando se dá conta das filas de outros veneráveis cidadãos, cara-de-poucos-amigos, estilo apresentação novo-acordo-da-coligação-governamental-em-exercício. Fumaçam e saem de mãos a abanar. Queda-se a ver em que param as modas e fica a olhar para o boneco, até ontem.

   Hoje aquele templo de agiotagem institucionalizada cedeu, transcorridos que foram os trâmites, as praxes e as liturgias regulamentares (uma questão de ritos), já fraco das canetas, rendeu-se. Os retornos dos depositantes? Logo se vê!... A seu tempo chegarão os  dobrões da Fazenda. Um pilha-galinhas e grande depenador da praça, sem quotiliquês, acaba de afirmar que um banco roto não é um banco morto, oferece muitas possibilidades de sucesso a quem sabe tocar guitarra. Ouve-se pranto e ranger de dentes, por aí.

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    Adozinda, depois de declarada insolvente, virou inimputável do ramo financeiro (o amor, quando nasce, é para todos), diz que nunca foi o centro de tantas atenções no café, no minimercado, no salão de cabeleireiro, no clube... Cumulam-na de atenções e fatura.

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    (Um famoso dos 4 costados, que levou o seu banco à glória, perguntado se lhe pesava algo na consciência, asseverou que não dispunha de báscula aferida. O ramboeiro, pelo-sim-pelo-não, estava pronto para outras venturas).

 

Exautoração

    Aquele jogador de soccer marca 2 golos e fez outras tantas assistências. É elevado aos píncaros, nas parangonas dos media. Na ocasião também é levado em ombros. Da vez seguinte, marca mais 2 golos e fez outras 2 assistências. As letras garrafais dos media do dia seguinte dizem que ele não merecia ter saído da competição, embora não tenha sido levado em ombros. (Os treinadores de grilos, deixam-nos ao alcance dos calcantes dos apostadores, após a primeira derrota).

   Por essas e por outras é que, nalgumas áreas do planeta, há quem jure e trejure que o pontapé na chincha seja um desporto individual, pelo menos, pouco coletivo.

 

Lapsus linguae

    O político calejado - comentador e conselheiro nas horas vagas – fazia o seu discurso à maioria silenciosa que estava na feira, para esquecer tristezas. Uma crise para ser resolvida tem de contar com a adesão de todos, só os tarados é que se regozijam com as perdas das bolsas, no regresso aos mercados (já experimentaram comprar peixe nos últimos tempos?) está a salvação das nossas almas, os bancos têm de ser protegidos, para bem dos sacrifícios de todos (da maioria desprotegida). «Nós precisamos de um governo do arco-da-velha» - saiu-lhe a tirada sem querer, borrou a pintura de fresco. Com tantos arcos por onde escolher (do cego, da governação, do baúlhe, abatido, voltaico, íris), fugiu-lhe a boca para a verdade.

 

Narrativas

    Eu ouvi o xarife esfalfado junto à credência: os colaboradores têm de trabalhar, declarar greve às greves, pagar e não miar, dar o litro sempre, não cuspir na sopa que lhes é dada, beijar o anel de quem oferece dinheiro para pagar salários. Alternativa: a campa fria, a trincheira ensanguentada trincheira, a vala comum, a campa rasa, o inferno. Solução: mais sacrifícios (e nem diz obrigado, o morcão), mais doses de azorrague, pancada de criar bicho (os inimigos são uns chatos, andam a angustiar o pessoal), menos cuidados de saúde, menos paparoca, que não há tempo a perder: Isto vai, companheiros, isto vai (o tintol, os festivais, os beijinhos televisionados ajudam), somos uma nação de homens do melhor que há nos antípodas, de barba rija (e as mulheres?), até à pirambeira final. Abaixo os niquentos velhustros do Restelo que andam ao arrepio dos tempos. Perorou, perorou…

   Estava-se nestes entreténs, quando um séquito de figuras humanas cobertas de chagas purulentas e farrapos maltrapilhos se faz ouvir: «Quanto mais me bates mais gosto de ti!» Ato contínuo puseram-se a pregar a autoflagelação, a solução para a salvação de corpos e almas.

   Assim, já não houve tempo para que o xarife lesse a parte da discursata em que, em 2 linhas, verberava os corruptos, os candongueiros, os deslocadores de empresas, os trânsfugas aos impostos, os praticantes do lay-off, os banqueiros aguenta-aguenta, os harpagões das sombras e tutti quanti fogem com o cú à seringa, ou comem bifes 2 vezes ao dia e promovem o capital a honras de altar.

 

 

15
Jul13

Assessorias (I)

Jorge

- Vai à janela e diz-me que vês, Zé.

- O povo está sereno, mas as elites andam desaforadas, chefe.

- Como assim, o mundo já gira ao contrário? Será isto magia ou encanto meu, Zé?

- As elites andam preocupadas com os direitos de autor e de propriedade. Nem de propósito, olhe quem vem lançado à maçaneta da porta do seu gabinete, o seu sócio!!!

- Vais tu mailo primeiro assessor ao seu encontro, eu não vos acompanho.

   (4 horas mais tarde)

- Pronto, chefe, missão cumprida, o homem veio armar-se ao pingarelho, disse que pretendia sobraçar a maioria das pastas, pôr os mercados à nora e continuar a tramar nas necessidades, que ele pôs cara de herege.

- E fizeste tu muito bem, querem lá ver que ele queria meter foice (lagarto, lagarto!) em seara alheia?! Queria tosquiar, sai tosquiado e é muito bem feito.

- Olhe, vem direito à sua porta o chefe da oposição piedosa.

- Vais tu mailo último assessor ao seu encontro, eu não vos acompanho.

  (3 horas mais tarde)

- Pronto, chefe, já está, o homem aceitou ir um dia destes a uma pescaria à linha, para discutir o plano de implantação de fábricas e estaleiros em estado latente, o que será feito em caso de necessidade extrema, mas o chefe leva o material.

- Boa negociata, Zé, que insondáveis são os caminhos da refundação com que sonho desde menino e moço. Assim ficarei nos anais da história pós-moderna.

- Olhe, chefe, quem aí vem direito à porta do seu gabinete, o seu chefe espiritual, em carne e osso.

- Vais tu lá recebê-lo, que mais vale só que mal acompanhado, pois não te acompanho. Leva estes pastéis da terra dele e que peço a sua bênção para a cruzada que temos em vista.

  (2 horas mais tarde)

- Pronto, chefe, ele veio discutir o plano de intervenção rápida nas Selvagens, para suprimento de artigos de primeira necessidade. O resto fica adiado para as calendas gregas.

- Estou nessa, o paizinho guru precisa de férias. Pode até lá pernoitar por muitos e bons meses, anda um bocado zonzo, Zé.

- Vem aí o sr Harpagão, o dono da massa, do arroz e das viandas. Vem com dedo em riste e com ares de o querer estrafegar.

- Eu não te acompanho, diz-lhe que fui fazer as minhas necessidades e que já volto.

(Demorou a recompor-se, para cima de 1 hora, tal era o desatino intestinal. Como aquilo não era música para os ouvidos dele, pirou-se o somítico, pois pairava no ar acre cheiro a esturro e a pivete de cozido mal digerido. Da próxima caçá-lo-ia de calças na mão, que ele não podia ser tratado como um vulgar cheira-bufas. Vejam a inusual falta de respeito!)

 

11
Jul13

Matolinho

Jorge

Matolinho

   Era um gaiato reguila, com resposta na ponta da língua, espevitado. Devotado qb às brincadeiras da sua geração e do seu meio, também era tido por especulador nato. Nunca chegaria a descobrir as causas do seu medo desmesurado por cães.

    Gostava de estórias, uma por noite, de preferência inventadas na ocasião. Dispensava heróis, sobre ou infra humanos, fadas, duendes, génios ou coisa que o valha. Se nascessem de uma situação corriqueira, de um momento de tensão, de uma simples elocução, tanto melhor, contadas em tom chocarreiro, era o máximo. Alguém se atreveu a alvitrar que talvez fosse possuído de capacidades cognitivas ímpares, mas disso nunca se certificaria.

    A pieira da asma era useira e vezeira em pregar-lhe partidas e rasteiras que bem dispensava, mas ele já sabia que não se podia ter tudo. Aflito, pela calada da noite, lá vinha o pedido de SOS: «Os fuminhos, mãe» - pedia. Para se tirar de aflições, a mãe lá arrastava o pai para o carro dela, a rabujar, a caminho das urgências do hospital mais próximo, com o pirralho pendurado de todos os cuidados, em busca do oxigénio regenerador. Gostava muito de legos, puzzles e também estava calhado para de jogos com cartas, como confirmaria em convívio com familiares mais velhos.

   Um dia vai à varanda do apartamento e boquiaberto, dá de caras com uma luzinha ali a bruxulear no escuro. Pirilampo? Estrela? Um pirilampo é menor, uma estrela é maior e não lucilizia assim. Seria antes um raio laser, um ti-noi-nim mudo e perdido? Estica o braço, pronto para a acolher no recôncavo da mãozinha, convicto que ela lhe mediu e vai retribuir o gesto, mas nada, tímido, o lampejo mantém-se à distância. Ouviu, um dia, que a luz se apaga mais depressa do que se acende (afinal, quantos milhares de anos foram precisos para acender as estrelas?), porém ainda no seu alforje razões suficientes para dar crédito a tal.

    Lembrou-se então que tinha ali mesmo, à mão de semear, uma jarrinha chinesa, melhor eram várias numa só; com seus segredos e aprontos, talvez gostasse de ali ficar… Foi buscá-la a toda a brida, a excitação no máximo. Quando regressa ao balcão, a delusão, só a sua sombra se faz notar. Assombrado, ainda ali estaria, caso não o tivessem puxado para dentro de casa.

   Chorou banha e ranho, quando, taxativos, os cotas asseguram que a centelha provinha de um farolim rotativo, assente na carapaça de um carro de recolha do lixo, o popó ixo. Estavam a querer enfiar-lhe uma galga, ainda lhe vão dizer que não passa de um fanal, ou então de uma feiticeira … Aquela luz misteriosa há de ser sua! Onde já se viu uma carripana amarela, tartamuda, engasgada, gerar aquele luzeiro! Não terá sido antes uma ponta daqueles lumieiros do céu que se partiu e veio por ali a baixo à sua procura? E se usasse a rede do peixe peixe-vermelho-que-dá -sorte da sorte do  aquário da sua estimação? Se os peixinhos se deixam enredar nela, talvez que as luzes… Haveria de tentar amanhã. Tá bem, abelha, vou-me deitar, não precisas de repetir 10 vezes a mesma coisa, em estilo de ameaça.

    No dia seguinte lá estava ela, outra vez, a luzinha amarelada, tremeluzente, mais debilitada pela canseira, talvez. Ele parece que cresceu. Sacou da rede, uma tentativa, 2 tentativas, 3... e fica de mãos vazias. Pode lá ser?! Mas, espera aí, aquele é o pó-ixo, não é? Coincidência… Algum daqueles senhores se apaixonou também pela luz, às vezes deitam-se fora coisas preciosas. Deu-lhe para espreitar os movimentos da carripana e dos senhores, a medir os seus atos. De pequenino se torce a vontade de saber.

   Por isso, era frequente a vizinhança ouvir, ao início da madrugada, o grito do Ipiranga: «O pó-ixo!» Alguns dos vizinhos espreitavam pelas gelosias, seguiam-lhes os movimentos e só então seguiam para a deita e dormiam a sono solto. O puto dormiria de um fôlego só, despreocupado, mas desconfiado que muita gente da sua idade não dava importância às luz. Um dia, haveria de tentar saber por que razão candeia que vai à frente alumia 2 vezes.

   A observação durou meses, que ele não era de desistir; se tirassem o cavalinho da chuva os que o julgavam vergar. Chovessem picaretas, houvesse visitas em casa, lá estava o puto, à hora certa lá estava a espreitar. Um dia, o carro do lixo não apareceu. Uma desfeita para ele, que se queda desfeito em lágrimas. No dia seguinte a mesma coisa e no terceiro dia a seguir também. Os pais tentam consolá-lo: «talvez se tenha avariado», «houve mudança de horário», «algum dos senhores estará doente». Serviram aquelas palavras de fraca consolação; tristonho ia resistindo ao apelo das brincadeiras e da comida (tinha um travo amargo, não era). A luz já não gostava dele e lágrimas para que vos quero. Porém, como a esperança é a última a morrer, esperava tirar a coisa a limpo, resolvê-la a seu favor, não estava neste m mundo para outra coisa.

    Ao 4º dia, ei-lo de regresso, o «pó-ixo»! Não cabe em si de contente, voa até à varanda e atroa os ares com sentido grito de alegria, havia já vizinhos mal dormidos. Os senhores da recolha, que já o topavam de ginjeira, vão de rir gostosamente. Acenam-lhes, ele corresponde e dali não sai e goza até à última cintilação a atração pirilâmpica, uma gostosura. Nesse ínterim, ouve que falam em greve. «Pois, então é isso, os senhores fizeram greve» - esclarece a mãe. «É assim: os chefes dos senhores da recolha acharam de lhes baixar o soldo. Os senhores não gostaram e pararam o trabalho durante vários dias». «Que maus, esses chefes!» - atirou. Mais tarde veio a saber que uma greve e uma luz, cada qual à sua maneira, projetam luz, como já foi justamente investigado.

    Não vão acreditar, mas ele conseguiu capturar a centelha – ao que se diz um pedacinho da luz primeva -, com a ajuda inefável da rede do peixe e da jarra chinesa (ou oriental?) Consta que também lhe terão valido as borbulhadas indicações do peixe-vermelho-que-dá -sorte, os conselhos dos cotas. Sabe-se – isso sim -  que não foi suficientemente expedito, que deixou escapar um átimo luminoso. Uns dizem que por bem, outros dizem que por distração. Mais tarde, ele haveria de esmiuçar se a luz só se deixa captar a bem e se a vida é uma tocha ao vento, como lhe diziam e ele não entendia lá muito bem.

   Quando não viram o gaiato, por muitos dias seguidos, desconfiaram os senhores da viatura amarela que já estivesse noutra. Perguntaram por ele, que estava doente, que mudara de casa, que mudara de vida, pelo que tinha sido pouco visto nos últimos tempos. Ficaram tolhidos num desconforto só comparável à perda de um ente querido, da ausência da sua companhia benfazeja. Haveria de descobrir, lá mais para a frente, se, de facto, a sombra passa e a luz fica, ou vice-versa (talvez se quedasse pelo estudo do vice-versa).

    Atualmente, quem com ele lida jura e trejura que lhe vê a luz lhe está estampada todos os dias no rosto, tal a alegria; também há aquela centelha marota nos olhos e aquele riso travesso e resplandecente, facto raro nos tempos decorrentes, de reinstalada corrida ao ouro. Ele sabe que nem tudo o que luz é ouro, mas tenciona denunciar, lá mais para a frente, quem transformou a vida em pechisbeque.

    Nunca mais o farolim funcionou, mas não foi substituído, os senhores do pó-ixo a isso se opuseram, depois de terem notado que, todos os dias eram seguidos por um esteio luminoso que, dos céus os segue preclara e teimosamente.

 

PS -  Era uma vez uma cobra que começou a perseguir um pirilampo que só vivia para brilhar.
Ele fugia rápido com medo da feroz predadora e a cobra nem pensava em desistir.
Fugiu um dia e ela não desistia, dois dias e nada.
No terceiro dia, já sem forças, o pirilampo parou e disse à cobra:
-Posso fazer três perguntas ?
-Podes. Não costumo abrir esse precedente para ninguém mas já que te vou comer, podes perguntar.
-Pertenço à tua cadeia alimentar ?
-Não.
-Fiz-te alguma coisa ?
-Não.
-Então porque é que me queres comer ?
-Não suporto ver-te brilhar!

11
Jul13

Cenas do País Tetragonal (I)

Jorge

Fraldário

    No País Tetragonal vivia-se à rasca, sujeito às flatulências típicas da incontinência estrutural macroeconómica que sopravam de bombordo. Nisto vem o harmosta número e diz: «Todos temos de fazer sacrifícios!» Na dele, iria obrigar os colaboradores a dar mais horas ao patrão e imporia a-torto-e-a-direito maiores coimas, dízimos e préstamos, que os onzeneiros rapaces estavam à porta e queriam cobrar, a bem ou a mal.

    Nisto, mandou proceder à coleta de tributos junto dos descamisados produtores de riqueza, deixando de fora ostensivamente os grandes detentores dos fatores de produção, de mais-valias e grossas maquias.

    Caiu mal ao burguesismo militante tal exclusão social - logo agora que eram cada vez mais, por conta da titilação dos bolsos, da Bolsa e da indústria do entretenimento - que não havia direito e veio para a rua mostrar o seu descontentamento, com grande aparato.

    Os cívicos das forças de segurança, a ramona, os 3 ramos das forças armadas não tiveram mãos e mocas a medir, tantas ou tão poucos foram os desacatos. Os manifestantes chegaram ao cúmulo de parar a construção de um novo porto para contentores, o levantamento de aeronaves e a circulação nas pontes e os banhos em praias fluviais não-vigiadas.

    A luta sobra por muitas luas. Os mais pintados fizeram questão de pôr os impostos em dia, outros pagaram as tenças que se venceriam nos 10 anos seguintes e os profissionais liberais apresentaram declarações tributárias condizentes com os rendimentos. Em cerimónia solene, presidida pelas autoridades eclesiásticas, na praça central, assinaram um compromisso solene de evitar os despedimentos coletivos, de não enviar para a estranja os pés-de-meia (em cofres de bancos, nos colchões seria aceitável), de aderir à taxa Tobin. Férias, só dentro de fronteiras e na ruralidade. Puseram-se a vestir como frades mendicantes, a comer que nem piscos, a usar o cilício da Opus Dei e tapar a cabeça com cinzas.

    O hájibe não esteve pelos ajustes, porrada para cima deles outra vez e ameaças de deportação! Quem se julgavam eles, para maquinar contra a segurança pública, contra os supremos interesses do Estado?! Iriam malhar com os ossos na pildra, a-pão-e-a-água, caso persistissem nas manobras contra a coesão social e a ordem pública.

    Eles perceberam «púbica» e desistiram.

 

Tá na cara

   No País Tetragonal as coisas iam mal. Com tanta coisa para pagar – água, luz, pão, bananas, rendas, medicamentos – muita gente não sabia para onde se voltar, nem como se coçar. Os áugures, valendo-se das penas de aves autóctones que de arribação (as autóctones corriam o risco de extinção) chegaram à conclusão que o país tinha-a arranjado bonita: uma trinca de Adamastores tinha-se outra vez plantado no cabo das Tormentas.

   E foi o cabo-dos-trabalhos tirar da ideia da cabeça a muitos dos habitantes do País Tetragonal que abdicassem de ir visitar o dito promontório. Num abrir e fechar de olhos esgotaram-se as marcações para aquelas imediações.

   A repórter bate à porta e surpreende uma reunião familiar, cujo ponto único da ordem de trabalhos era os para preparativos de férias:

- Vão de férias? – inquire a angélica figura.

- Estávamos a falar mesmo disso. Ainda vamos ter de pedir algum emprestado, mas tudo se conjuga para ir laurear a pevide. Apertámos bem os cintos, passámos fame e cortámos na roupinha, empenhámos o carro e o imposto de circulação, nos últimos meses, mas vamos de férias - esclarece o chefe da família.

- Vão revisitar o cabo das Tormentas?

- Isso não, que a gente tem medo de trincas, que não de adamastores.

- O país está a ficar deserto à conta...

- A sério? Nós vamos todos à Turquia, conhece? – responde o ancião.

- Eu nunca lá estive, ainda não passei do Marão – devolve, lesta, a iniciada jornalista.

- Aqui todos vergam a mola, mas para o essencial vai chegando.

- Vão de férias, por quanto tempo?

- Vamos e voltamos no mesmo dia, qua as manifes não permitem muitas aterragens.

- É a crise! – comenta a telerrepórter.

- Nem por isso! - dispara lampeiro o geronte.

 

Dá tanto jeito, o magano!

Reprodução de um diálogo registado numa escuta levada a cabo no País Tetragonal:

- Nós temos o direito de mandar.

- Porquê?

- Recebemos um mandato popular quando o maralhal foi às furnas, às urnas, digo.

- Mas, quando vocês foram às urnas, queriam 4 anos para endireitar o pau, perdão, a espinha?

- Acordos de cavaleiros, de cavalheiros e amazonas, digo, não são para defraudar.

- E disseram ao que vinham?

- Dissemos, mas os credores convenceram-nos, com bons modos, que fazer o contrário era o melhor, como dizia a Mariquinhas.

- Mas, fosse o partido opositor autor de tal guinada, merecia ficar 4 anos?

- Não sou bruxo, nem credor, só de paus-mandados percebo algo.

- Nunca vos passou pela cabeça arrumar a trouxa e zarpar?

- Não estamos de cócoras, mas queremos a salvação do nosso, do país, quer-se dizer… Os da oposição mal conhecem o kamasutra.

- Se vocês não ficam 4 anos os credores ficam abespinhados?

- Os logreiros são quem mais ordenha, ordena, perdão e de contas percebem eles.

- Afinal, quem logrou o mandato popular?

- Eles não vão nessa festa de escanções, digo, de eleições.

- É dinheiro em caixa, não acha?

 

11
Jul13

Cheirinhos kafkianos II

Jorge

 Em busca do elixir 

    A quinoa foi elevada à glória de superalimento, cada vez mais requerido e consumido nos países mais desenvolvidos, onde os preços são cada vez mais exacerbados. Os importadores e exportadores, seguidores especiosos dos ditames logicistas do capital, acumulam bagalhoça.

    Cayo, um habitante da região de origem, diz que os preços da quinoa aumentaram espetacularmente também na sua terra, que muitos dos pequenos produtores seus patrícios, useiros e vezeiros em remar cada um para seu lado, estarão na iminência de mandar às malvas o cultivo da espécie indígena, por fraca produção e fragilizada competição com os latifundiários convertidos à causa, detentores de alfaias topo de gama e pródigos contactos sociais, dentro e fora de portas. Fragilizados, muitos dos pequenos agricultores, numa atitude de sobrevivência, mudam-se de armas e bagagens para o arroz que não é um superalimento, mas para lá caminha.

 

Remédio santo

   A senhora tinha sido detentora, vida fora, de bons empregos. Num deles, viu-se um pouco embaraçada, pois escasseava o dinheiro de caixa, o défice nominal e estrutural da empresa engordava a olhos vistos, as garantias para novos empréstimos tinham sido reduzidas à expressão mais simples, etc… Para que o barco não desse borda, vai de assinar contratos de empréstimos do baril, CEdB na vulgata escritural (nacional ou internacional) com banqueiros que comiam do bom e do melhor, finos que nem ratos, dados a grandes mocas. Pelo código de honra destas operações, quem estende a mão assume os prejuízos da operação, que o mutuário se reserva para si réditos de leão, por ter a faca e o queijo na mão.

    A senhora assinou CEdB em nome de interesses públicos e de interessados cidadãos - sem lhes dar cavaco, que o exercício do poder, mesmo por procuração dispensa minudências - que teriam de ser pagos pelo erário público, num futuro próximo, fosse a conjuntura favorável ou adversa. Na hora da entrega das livranças, alguém pagaria e não bufaria.

     Anos depois, um antigo procônsul faz constar que tinha avisado o atual chefe da madama (integrada no poder executivo da santa terrinha) sobre os perigos dos CEdB, aquando da passagem da pasta, uma cerimónia protocolar que remonta a tempos ancestrais. A madama diz que nada constava nos dossiês, mas o chefe dela disse que sim, que o antigo procônsul abordara o assunto, à mesa de lauto repasto, razão pela qual nem se lembrava da missa a metade, só quando lhe mandaram a conta calada é que ficou com os papos em pé.

    A vestal fica-se na dela. E manda pagar a 1ª tranche de todos o CEdB (o que tem de ser tem muita força), fossem bons, como os que assinara de cruz, fossem maus, aqueles a que aludia o procônsul balhelhas, exarados e firmados pela malta dele.

   Não tarda, vem a terreiro o patrão atual da inescrutável dama, a tirar castanhas do lume. Fá-la chefe da Fazenda e não se fala mais no assunto.

   Esfíngica, promete continuar a fazer das dela e das dele.

 

11
Jul13

Cheirinhos kafkianos I

Jorge

Avaliações

Serafim diz:

- A casa é minha, sou eu que lá vivo, com minha família.

Hermengarda retruca:

- A casa é minha, tenho aqui a escritura de compra e venda lavrada no tabelião.

Luana assevera mais tarde:

- Talvez a casa seja minha, tenho aqui uma procuração com todos os poderes da srª. Hermengarda, portanto, eu posso vender a quem der mais e depois logo se verá.

Ambrósio não se fica e, dias volvidos:

- Talvez a casa seja minha, tenho aqui uma promissória sobre ela, assinada pela srª Luana, na casa da mãe Joana.

Epaminondas António vem à colação e esclarece, mais tarde:

- Creio que, muito em breve, a casa será minha, tenho aqui umas letras assinadas pelo sr Ambrósio e que se vencem amanhã, no valor exato desta casa, obtido em recente avaliação.

Hermenegildo arrasa:

- A casa continua a ser minha, o meu banco fez um empréstimo à srª Hermengarda para compra de habitação própria e ainda não foi totalmente ressarcido. Ouçam a salvaguarda: até pagamento do último cêntimo, a casa pertence ao je, está escrito a letras pequenas, na retaguarda!

Enzo José desabafa:

- Desisto da minha quota-parte desta casa, sou advogado de todos vocês, mas não me entendo com este imbróglio. A bem do meu espólio, passem muito bem e esperem pela conta.

 

 Agrément

- Estou em greve! – confessa Juventino.

- E porquê? – pergunta a repórter neófita.

- Muita gente não tem emprego, por isso não pode trabalhar!

- O senhor não trabalha em dia de greve, para que outros tenham trabalho, é assim?

- Assim é! Toda a gente tem direito ao seu quinhão da felicidade global.

 

- Eu estou a trabalhar, não alinho em greves! – debita Fagundes.

- E porquê? –pergunta a repórter neófita.

- Gostava que muita mais gente tivesse emprego e pudesse fazer greve.

- O senhor trabalha em dia de greve, para que outros possam ter trabalho e fazer greve, é assim?

- Assim é! Toda a gente tem direito ao seu quinhão da felicidade global.

 

- Não tenho trabalho nenhum, nem subsídio! – admite Salustiniano.

- E porquê? – alarma-se a repórter neófita.

- Durante 5 anos, trabalhei para 10 patrões e todos fecharam as lojas.

- Os que fazem e os que não fazem greve são solidários consigo, é assim?

- Assim é! O que eu gostava mesmo era de trabalhar e de poder fazer greve, toda a gente tem direito ao seu quinhão da felicidade global.

 

- Vão, mas é trabalhar, seus malandros! – atira aos 4 ventos Jeremias.

- O senhor detesta quem não trabalha, por causa das greves, certo? - pergunta a repórter neófita.

- Especializei-me em requalificação, ponho a mexer muita gente, em nome da boa saúde (financeira) da nação e aqueles malandros de braços parados, feitos parvos, ao que isto chegou!

- O senhor acha que se deve trabalhar, que não se deve fazer greves, mas manda para o desemprego muita e boa gente, é assim?

- Assim é! Toda a gente tem direito ao seu quinhão da felicidade global, olarilolé!

 

Bizarraço

- Tás a ver como eles alinharam – diz o banqueiro 1 para o banqueiro 2.

- Caíram que nem patos! –  diz o banqueiro 2 para o banqueiro 1.

-  7 mil milhões já cá cantam!  - galhofa o banqueiro 1.

- Tiraste esse número do cú? - galhofa o banqueiro 2.

- Se fosse a pedir de entrada mais, levava sopa, tão certo como estar aqui!- 

- Topo essa, começas por um dedo, depois a mão, depois o braço.

- Se fosse a pedir mais, morria pela boca! – ri, agarrado à barriga, o banqueiro 1.

- O céu é o limite! - ri, agarrado à barriga, o banqueiro 2.

- Ganda sorte a minha ter nascido com o rabo voltado para a lua!

- E se a malta do governo não entra com mais?

- Vamos pelas canas dentro, mas arrastamos os mecos e o país – pressagia o banqueiro 1.

- Já pagaste as comissões? – atalha o banqueiro 2.

- A seu tempo se fará, 300 milhões bastam, eles são mais que muitos.

- Não te esqueças de mim, quando chegares ao paraíso!...

- E se o banco for nacionalizado? – arma-se em agoirento o banqueiro 1.

- É da maneira que mantemos os nossos empregos! – rompe em riso histérico o banqueiro 2.

(Ouve-se os primeiros compassos da canção guerreira «A Alemanha acima de tudo». Soube-se mais tarde que uma alemã sentiu picadas excruciantes nos tarsos e metatarsos esquerdinos, para descobrir que a tinham mordido.)

 

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