Pica
Sousa segue viagem no metro, refastelado num lugar conquistado, por artes ensaiadas. Tranquilo, atira-se à leitura do pasquim grátis da empresa que explora aquela mobilidade, uma folha-de-alface de notícias parcas e muita publicidade que, de resto, paga as notícias (uma prática tornada eficaz e reconhecida, há muito). A composição aportaria a 10 estações, provavelmente a fervilhar de gente, a maioria migrantes de todos os dias, antes de arribar ao destino do Sousa. Lê-o de cabo-a-rabo, põe-no de parte, há sempre quem se pele por um naco de prosa à pala; aprecia, pelo rabo do olho, as poses e facécias de companheiros de viagem (que rica loura ali vai!), dá atenção a um diálogo sobre futebol e outro sobre política, desvia o olhar doutras mensagens estrategicamente derramadas na carruagem (basta o que basta!) e, a páginas tantas, está a olhar para dentro, vencido pela sonolência crónica.
Sousa sente que alguém lhe puxa a manga do casaco de brim - mandado fazer por medida, na alfaiataria de mestre Mendes Joaquim -, de forma atrabiliária, e não gosta. Fica possesso, quando o acordam daquela maneira e cobre de impropérios e de retaliações quem a tal se atreve. Quem assim agia, não o conhecia, nenhum seu conhecido ou amigo a tanto se atreveria.
Gorgoleja já uma saraivada de disparates, com algum vernáculo pelo meio e prepara o contra ataque, quando é interpelado:
«Porte-se à altura, caro senhor!»
«Sabe por acaso qual a minha altura?»
«Já é altura de me mostrar o seu título de transporte»
«E porquê?»
«Eu quero ver, sou fiscal»
«Pois vá fiscalizar para a sua aldeia que daqui não leva nada!»
Palavra puxa palavra, a altercação sobe de tom, fervem ameaças veladas, até que não há mais nada para dizer: Sousa amarra o burro, moita-carrasco, que a insistência é ateimar no erro, persistência é elaborar pela certa.
Ainda fechado em copas, acede à plataforma da estação de destino, onde o aguardam agentes policiais (tipo taçalhão), dispostos a lançar mão de toda a lábia apreendida em ações de formação específicas, que lhe travam o passo, a tentar demovê-lo, antes de passar à ação. Responde educadamente a todos os quesitos, mas teria de pagar a multazinha da praxe que titula os clandestinos. Que nada tinha feito de mal para ser abanado daquela maneira, já tinha muitos anos de viagens no metro, merecia mais respeito. Tudo certo, mas as instruções para contravenções semelhantes que temos são estas e para com elas estamos obrigados, então terá de pagar. Se for parar ao pretório, acrescem juros de mora e outras coimas. Até lá, vá em paz, não volte a repetir o que fez, respeite o trabalho dos outros se quer ser respeitado.
«E o fiscal fica impune?»
«O homem está repeso, lamenta o sucedido e possíveis estragos e pede desculpa.»
«Cometeu um falta imperdoável! Que não me apareça mais pela frente, eu tenho direitos consignados na Constituição e na DUDH*.»
«Descanse que nunca mais o terá à perna, vai ser transferido para uma linha de PBX, assim ficou combinado. Faça por esquecer, não guarde rancor, perdoar é próprio das almas generosas e o senhor tem pinta disso e, agora, vá pela sombra, vá!»
«Talvez, que hoje lá fora parece um forno!»
«E vocês, seus mirones, qual é o observatório que vos paga para cheiricar, estão a olhar para onde, para onteontem? Desandem, circulem, mexam-se, pela vossa saúde!»
O pequeno magote de curiosos encaixa a arenga com cara de poucos amigos (já chegámos à Madeira?!) e com vontade de dizer das boas. Na oportunidade alguém opina que o fiscal se portara mal, que uma farda ou um posto não tornam o usuário num ministro plenipotenciário. Outro não se fica e replica que diz que a autoridade tem sempre razão, se assim não fosse lidaríamos com o caos social (a teoria científica do caos ainda não saiu do limbo) e isso não importa seja a ricos, seja a pobres.
Terça-se mais argumentos de igual quilate, mas toda a gente destroça em boa ordem, para alívio do comandante da missão que já está pelos cabelos.
«Sr guarda, só mais uma palavrinha!» - era o Sousa.
«E você a dar-lhe!»
«Posso mostrar o passe, como vê está em dia».
«Só agora?»
«Nenhum de vocês mo pediu».
Levanta-se uma sarrafusca das antigas, resultando que o Sousa vai de cana, por desrespeito à autoridade. O raio do homem é um safadista militante, se a maioria das pessoas passa o tempo a ver passar o tempo, isso é la com eles, os cívicos é que não têm mãos a medir, que falta de respeito!
O juiz decidirá da cassação do passe ao Sousa (um enxurro de cassetete é que era!) e se o fiscal e a empresa são credores de indemnização bigoduda.
Dada a premência do caso, e porque só havia 1 magistrado disponível, foi adiado o julgamento do administrador de banco que se tinha locupletado com uns milhões.
*Declaração Universal dos Direitos do Homem