I
. Com a Fazenda esburacada, afinal o povo, o sócio maioritário, está a ser convidado a entrar com mais lecas (não se aceita tampas!) Se ele é quem mais ordena, que passe os cheques, assim ordenam os xeiques remendões. Aquela malta já experimentara choques elétricos, choques anafiláticos, choques de mentalidades e de automóveis, portanto, mais um menos um, tanto lhe fazia! Os «choques de expetativas» (goste-se ou não destas novas postas de pescada, os seus arrotadores são criativos, tarda já um galardão) são novos cá na praça e o pessoal ainda não sabe como se defender deles. Diz-se, à boca pequena, que mais uma guinada da tarraxa evitará mais um passo em falso. A malta do alto da pirâmide social assim o crê, imunizada que se sente, por não ir à faca. A malta dos baixios, a trancos-barrancos, treina a capacidade de resiliência e os costados. Deus perdoa, o capital (uma deriva) não!
. Para alijar preocupações espúrias, o circo desce à cidade com feirantes, troupes, charangas, leitores de sinas, doutores da magia, estátuas vivas, carros de choque, aleijões e quejandos. Com alto patrocínio de donos de galinhas de ovos de ouro.
. O palco está atafulhado de apresentadores-vedetas que fazem jus ao pão que comem, valem o seu peso em ouro de lei: movem-se com grande à vontade por entre piadas de salão e conversa fiada, sabem da poda os malandrins. Para dar música e ambiente uma horda de cantadores da corda; lidarão com a questão cultural uma plêiade de contadores de estórias; a impingir os produtos locais, está elencado um painel de lídimos comerciantes da praça (para quem é bacalhau basta!). Um sorteio do 760 e tal fechará o show com chave de ouro.
. Sai um cantor-pimba para a mesa do canto, vestido à-matador, olhos de carneiro mal morto, charme capiau, passes-de-dança frenéticos, 4 acompanhantes frustes e 3 gabirus estilo faz-que-tocas-mas-não-tocas e põem-se todos a saracotear. A melopeia esquenta almas, as palavras, escolhidas a dedo, prometem o céu na terra e vice-versa. O amor resolve tudo ( veja-se o caso daquele rapaz que tinha verrugas na ponta do dedo, curou-se a expensas do amor que arde sem se ver). A pinchar desta maneira, estas almas piedosas entram em êxtase, acho que, no fim, não vão achar piada ao facto de amanhã ser 2ª feira. O cantautor diz de sua justiça em 3 frases (ipsis verbis) lapidares: que era um prazer estar ali e que o triste fado dos gentios, quer-queira-quer-não-queira, irá às malvas (força no falo é que é preciso!)
(- Olhe, posso mandar beijinhos?
- Claro, não estamos aqui para outra coisa, estão à porta os tempos de terneza, de pão-e-vinho-sobre-a-mesa e da vida à-grande-e-à-francesa, pax-vóbis.
- Quero mandar 2 pares de chochos para os meus tios-avós que vivem na Furna.
- Boa tarde, Furna, nos Açores, isso está quentinho por aí, não é verdade? Qualquer dia contem comigo para uma sauna. Passem muito bem e agradeçam à insularidade por não estarem tão mal)!
Apresenta-se a primeira autoridade que fala da origem do topónimo, dos povos bravios, de antes-quebradiços-que-torciditos, que por ali passaram e muitas das vezes não deixaram pedra-sobre-pedra. Também agora ali vive gente tesa, que sobe o pau ensebado da vida a pulso; pode perder os anéis todos, mas anela pelo bem da pátria. - Não se esqueçam de telefonar, vão ver que o diabo não está sempre atrás da porta, hoje queremos fazer uma família feliz, temos uma pipa de massa para dourar a pílula e esqueçam-se da taxa que vão pagar ao Estado (seguem-se 10 minutos de tanga). As câmaras partem à desgarrada, atrevidas, mesmo a rasar corpos e almas que se confrangem ou comprazem com aquela animação tirada a saca-rolhas, mas infelizes por não assenhorearem de sonhos de grandeza, limitam-se a uns quantos tiques, sorrisos amarelos, risos forçados, ou estertores de compinchas bem regados. (Na nossa terra a gente diverte-se muito! Nada que se compare com as manifes, de tipos com caras fechadas e punhos erguidos e insulto na ponta da língua…)
. Outro porta-voz de Eros sai-se ataviado de harpa, tangida à tangente, uma vibração capaz de afugentar a harpia mais temerária, caso estivesse atenta. Canta, em dissonância total, uma letra que põe as pedras a chorar, enquanto, 3 garotas panorâmicas (é disto que o meu povo gosta!) e um garoto se meneiam, sem rei nem roque. Deixa a mensagem clarividente: pode faltar tudo na vida, mas que não faltem carapauzinhos fritos, sardinha assada na brasa, bacalhau com todos, pão, tintol, um cacho de uvas douradas e rosas do jardim sobre a mesa e a companhia de uma boa alma gémea. Curtam!
(- Olhe, posso mandar beijinhos?
- Claro, não se faça rogado, fale aqui para o microfone, não estamos aqui para outra coisa, haja paz e amor e algum para os melões, tremoços e pevides.
- Quero mandar beijos para os meus primos afastados que vivem no Furado.
- Boa tarde, vila do Furado, viram algum contabilista por aí? As contas públicas estão todas a sair daí, pelas amostras conhecidas. A gente passa aí um dia destes para acertar as contas, lol!) O especialista elenca as grandes realizações culturais, descreve as procissões e a vida do orago, as touradas, as associações mutualistas, o coletivismo daquela gente, melhor só de encomenda).
- Vá lá, peço pelas alminhas do nimbo e do purgatório, telefonem das 7 partilhas do mundo, nunca se viu um prémio como o que vamos dar depois nestas 10 horas de emissão, podem estar aí tempos de lambança. «A quem não dava jeito semelhante maquia? Não fosse eu um dos dinamizadores desta coisa e telefonava, a ver se me alambazava com a maçaroca e deixava de fazer estas figuras, nunca mais abria o bico» As câmaras partem de novo à desfilada, o povo está apinhado, não há clareiras como nas manifes, por um instante focam ao longe um casalinho por trás de umas moitas que fica em palpos de aranha, que os pais dele não querem aquela tipa a rondar-lhe o filho (chama-se isto assédio sexual). Vai ser o bom-e-o-bonito, quando chegar a casa.
(Não há festa como esta!)