Segundo uma sondagem levada a efeito pelo Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (IPEA), um organismo oficial, 65,1% das 3 810 pessoas dos 2 sexos interrogadas concordam com esta afirmação: «As mulheres que vestem roupas que deixam ver os seus corpos merecem ser violadas». Na oportunidade, 58% dos sondados consideram que «se as mulheres se comportassem melhor, haveria menos violações». A publicação desta sondagem provocou uma onda de protestos de cidadãos e ativistas que multiplicaram nas redes sociais a condenação da ideia de atribuir à mulher a responsabilidade de violências sexuais.
Nessa sondagem efetuada, no Brasil, mais de metade de cidadãos respondentes, parece achar que as mulheres ‘provocadoras’ ‘merecem’ corretivo.
Voltamos à velha estória: se não tens recato, põe-te a precato... Nada de novo na frente ocidental, portanto!
Numa época em que as mulheres já conquistaram à força de pulso e à luz do igualitarismo o acesso ao mercado do trabalho (algum ressentimento?), uma barbaridade destas dói...
Agora, uma sondagem vale o que vale, numa outra oportunidade, com outros respondentes, poderia deixar cair o labéu que recaiu sobre estes, o que retiraria peso ao escarcéu deblaterante erguido na comunicação e redes sociais.
Como pode ressaltar das seguintes observações:
Um-Terá sido a questão bem resolvida pelos respondentes (a iliteracia e o analfabetismo pregam cada uma!)?
Dois-Algumas respostas terão sido dadas ‘en passant’ («estou com pressa, mas pergunte»)?
Três-O inquérito não terá sido solucionado por um considerável número de machistas, moralistas das horas vagas, tipo mulheres feias e homens tesos, após um mau dia passado no local de trabalho, ou a caminho dele?
A sistematização do aleatório envolve riscos.
Por outro lado, na atualidade, em bastos países de firmados créditos religiosos e afeitos à festança rija, a amostragem parcial e pública de parcelas do corpo que o recato milenar mandaria tapar por completo não se encontra sob a alçada nem da moda, tão pouco do poder instituído.
Um certo atrevimento no trajar lembra uma modernidade reivindicada e até uma pós-modernidade assumida, que o crescimento económico não perdoa, traz sequelas e muda códigos.
Mais, a ‘provocação’, como a boa moeda, tem vários lados, sumariamente aqui evocados:
Primeiro-O exibicionismo no trajar e o voyeurismo suplementam-se. Por todo o lado é tido por certo que tanto peca quem opera como quem fica à coca e é justo que assim seja.
Segundo-Nem só de pão vive o homem e a mulher. A vista também como e pede-se-lhe que ande alegre, de preferência à custa do bom, barato e belo.
Terceiro-Nenhum estudo das ciências do comportamento aponta para uma relação de causalidade entre probidade e (in)tolerância ao voyeurismo (social ou normal).
À verdadeira tentação só cede o(a) ambicioso(a), o(a) vergonhoso(a) ou o (a) invejoso (a).
Assim, admite-se que os partidários da punição da ‘provocação’ e que não gostam de pecar para depois ir confessar, já terão sido confrontados com estes cenários:
I-A lapidação e penitência de rua - já excederam os respetivos prazos de validade (noutros credos, nestes tempos, ou com o atual credo, noutros tempos, a coisa piava mais fina).
II-Penitenciária - não se aplica a quem exibe escaninhos do corpo, aliás, um sinal de modernidade, ou de pós-modernidade (a exposição total não é para aqui chamada).
III-O reproche, o desfrute, ou a reincidência - sabem a pouco, mas é o que resta.
Aí então, os mais tersos puritanos, de sangue quente e costas largas e que detestam meias-tintas, podem achar que se está a cobrar pouco e, pela calada, não lhes desagradaria uma justiça feita por mãos (salvo seja!) justiceiras que bem poderiam ser as suas...
Logo, o estupro é um alçapão de moralismos de cavernícolas mirolhos, bem capazes de invocar o nome de um deus (em vão) e para quem nem todos os pecados têm perdão e uns são lavados em sangue.
Aqui está o labéu: a violação é uma infâmia aviltante. Não há que a servir a alguém seja por palavras, seja por obras, passíveis de traduzirem pensamentos de vindícia.
Aos prevaricadores, mentores e paus-mandados, o afastamento; ao protesto todo o cabimento.
Em jeito de acabamento:
i-Há perguntas de sondagens que trazem água no bico e há respostas de sondagens que deixam muito a desejar (a sugestão do estupro não lembra ao diabo). Às reações padronizadas conviria ter isto em conta.
ii-Fica demonstrado pela sondagem em questão que os botas-de-elásticos sobrevivem também em ambientes tropicais, não só nos temperados ou frios.
iii-Há linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas (tese que se tem convertido em papel de música, às mãos de reputados executantes de desígnios nacionais).
Os alemães, que estão na berra, dizem, com muita propriedade, que amor, dinheiro e sofrimento não se podem esconder.
De que sofres, Brasil?