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oitentaeoitosim

24
Abr15

Contos de fados (XI)

Jorge

Josefino sempre se conheceu como indivíduo muito dedicado às causas ecológicas de massas; quando se arrimou ao poder pôs seus propósitos a render.

-Proíba-se a distribuição de sacos de plástico leves com alça!

(A proliferação de sacos com alça está a desgraçar o planeta, qualquer dia vão-se até os alces!)

Lojas de vizinhança, lojas pop-up, lojas outlet, lojas flasgship, mercados, minimercados, supermercados, hipermercados, casas ditas de restauração, de tatuagens, de limpezas, funerárias e animais de companhia deixam de oferecer sacos ou saquitéis à borla, nas caixas ou ao balcão (nas maçónicas não se sabe).

Muitos íncolas da parvónia não acham piada à decisão, pois já basta o que basta, os preços estão pela hora da morte, olha-me para eles armados em proibidores de oferta livre de saquinhos que tanta jeito fazem lá em casa, ainda por cima doados de boa vontade, é demais esta lixiviação dos bons sentimentos! Deveria ser proibido proibir...

Os protestos sobem de tom nas conversas de café, nas conversas de circunstância e nos serões familiares, passados à volta da tevê domesticada a que todos têm direito. E não passam daí, pode ser que algum mais destravado se passe dos carretos…

Josefino sempre se conheceu como indivíduo muito dedicado às causas ecológicas de massas; quando se arrimou ao poder pôs seus propósitos a render.

- Que toda a gente passe a pagar um preço pelos sacos de plástico leves com alça!

(Já que não se pode exterminar os sacos de plástico leves com alça, que contribuam, ao menos, para o esforço patriótico de libertação do jugo financeiro!)

Lojas de bairro, lojas de conveniência, lojecas, lojas pop-up, lojas outlet, lojas flasgship, as bancas de vendas em feiras ocasionais, em feiras de bagageiras, em feiras internacionais (supõe-se) juntam-se às lojas de mercado a retalho acima referidas e todas passam a cobrar a derrama estipulada, dá-los à socapa é a alternativa (mas não diga que vai daqui!), para manter certa a freguesia.

Muitos íncolas da parvónia passam a fazer-se acompanhar de sacos de plástico leves com alça – nunca se sabe quando surge o impulso de fazer compras -, na mão, na mala, no saco a tiracolo, nas bagageiras, chegam a levar o trólei de compras, o que é uma chatice à moda antiga. Consta que se dá um aumento em roubos de carrinhos de compras e acentuação na difusão de doenças propaladas por vírus e bactérias incrustados em tais artefactos semoventes.

Isto é tanga, não nos venham com cantigas, qual preservação do ambiente, qual carapuça, já chega de atirar areia aos olhos do Zé, isto é mais um imposto disfarçado, os plutocratas que paguem a crise! Saem outros mimos dos moldes donde saíram estes para a mesa do canto… Mas, o povo é sereno, a maioria silenciosa, até ao dia em que algum meco tome a iniciativa de dar o primeiro passo na ocupação das artérias públicas, aí haverá choro e ranger de dentes, verão!...

Josefino sempre se conheceu como indivíduo muito dedicado às causas ecológicas de massas; quando se arrimou ao poder pôs seus propósitos a render.

- Aumente-se o preço da água do litoral!

(A água é bem escasso, no poupar está o ganho, está baratinha, por isso merece participar no esforço de empobrecimento generalizado!)

Tudo o que é loja, lojeca e lojona começa a elucubrar promoções diretas ou em cartão, com descontos manhosos, ou que trazem água na boca. Uns empresários de nova fornada, empreendedores até dizer basta, congeminam trazer água do interior, à la carte, a preços mais convidativos, seja destilada, básica ou ácida, para gostos e necessidades. Santa paciência, não há maneira de fazer entrar nesta dança as águas minerais e as tónicas, por questões de delimitação de marcas.

Os íncolas da parvónia litorânea dizem que isto passa das marcas e preparam-se para cortar nos banhos, nas idas à sentina, nas lavagens da roupa, nas lavaduras da louça, no regadio das plantas da marquise e das sacadas, na mudança da água das piscinas e na água que vai para os tachos. Pelo-sim-pelo-não, os mais sortudos mandam construir açoteias, eirados, cisternas e tanques.

Andam a ferver em pouca água, que não há direito, que no litoral há mais gente, é aí onde chega mais água, onde se leva com água de menor qualidade, aqueles sacanas do interior são tratados como doutores, não pode ser, isto é mais uma desfeita, vamos fazer e acontecer e não acontece nada, se ninguém se põe à cabeça do protesto, a família não deixa…

Josefino sempre se conheceu como indivíduo muito dedicado às causas ecológicas de massas; quando se arrimou ao poder pôs seus propósitos a render.

- Que seja eliminados da circulação das nossas artérias rodoviárias, ferroviárias, marítimas e aéreas todos os veículos a combustível fóssil!

(Poluem pra burro, os veículos a combustível fóssil andam a gasear o pessoal, qualquer dia estamos todos tramados; ora toda a gente merece viver para gozar da excelência da proteção que temos dado ao ambiente destas paróquias!)

Os íncolas da parvónia ficam siderados de espanto, de medo e de torpor. Isto é pior que uma greve selvagem, pior que o lay-off, pior que os incêndios fatídicos da época de verão, pior que um cataclismo, pior que uma série de cataclismos! Andar a pé, é o fim da picada!...

Aí tomam a iniciativa de ulular nas ruas senhoras e senhores representantes da produção de carros, carrinhos e carrões, comboios, barcos, aviões e drones. Como previsto, o povinho pôs-se à janela a ver em que paravam as modas, aquilo é entre eles, eles que se matam… Ninguém levanta um dedo a salvar o homem entretanto caído em desgraça.

Feita a folha, fazem a cama ao canastrão.

Josefino vai bugiar para as Selvagens e depois instalam-no como provador-mor de carvoadas e churrascadas das espeluncas da parte oriental do país, o que lhe exige degustações quotidianas e trabalho de campo diário, a que nunca mais poderá eximir-se, o cargo é vitalício.

 

 

17
Abr15

Ouvi ou li (X)

Jorge

(Quem te viu e quem tevê!)

i - Disseram que o senhor secretário-geral foi recebido pelo número dois da senhora que manda na Alemanha e na União Europeia toda. Naquele cenário muita gente viu a consagração de uma desfeita. Aquilo não se faz, nem à prima à qual mais se lhe arrima.

Entretanto a senhora que dá cartas como, onde e como quer, veio garantir que, da próxima visita, mandará o seu número um a receber o senhor secretário-geral…

ii - O senhor comentador criticou a mudança de estratégia daquela equipa de futebol, na última jornada do campeonato. Foi tão infeliz a opção que levaram que contar, a jogatana descambou numa goleada à moda antiga, bem feito!

O senhor comentador a muita gente terá dado a entender que a mudança tática foi premeditada. Eles abriram as pernas propositadamente, só para desfavorecer o clube concorrente mais próximo.

As palavras valem o que valem, para mim passam a vir de carrinho os senhores dirigentes, jogadores e treinadores e tutti quanti dispostos a garantir que as suas equipas entram em campo para ganhar…

Há mesmo gente capaz de tudo!...

iii - O telejornal lá da casa tinha dado a notícia logo na abertura. Tinha havido uma explosão, de origem desconhecida, provavelmente uma botija de gás teria deflagrado e daí resultaram ferimentos graves em várias pessoas.

(Estas coisas só são reveladas, quando acontecem em casas de gente anónima.)

No hospital, um médico esclarece que todos os sinistrados, envolvidos no infausto acontecimento, se encontram em estado grave.

A repórter, que sabia bem ao que vinha, adianta o microfone e pergunta:

- Portanto, essas pessoas encontram-se em perigo de vida?

Réplica do médico:

- É isso que significa estar em «estado grave»…

(Mazinha!... Mauzinho!...)

 iv - Andam descontentes depositantes de um ex-banco que, por obra e graça do espírito santo, gerou 2 bancos, o bom e o mau; o primeiro chama-se novo e o segundo não se chama nada, pela simples razão que ainda não abriu portas. Ultimamente têm andado à grita pelas ruas, coisa que alguns deles nunca imaginaram que acontecesse, nem em sonhos, mas a rua já deu muitas vitórias a quem nela enfrenta os que sitiaram o poder (não somos por uma oclocracia, longe vá o mau-agoiro, ó Abreu dá cá o meu!)

A jornalista de serviço aquela manife pergunta por perguntar:

- Até onde pensam levar a luta?

A resposta tem o seu quê de banal: vamos esticar a corda toda.

Um dos manifestantes destoa:

- Cuidado que eu sou um ex-combatente, cuidado que posso fazer e acontecer; se não me agarram, sou capaz de armar quengada!

Desde então o homem tem sido solicitado por mercadores de armas, agarrados, antigos rebeldes da praça e afins. Não sabe para onde se voltar!

 

 

17
Abr15

Contos de fados (X)

Jorge

Zé Antôino fumava cigarros de tabaco com filtro, a um ritmo impressionante, chegava a despachar diariamente 2 maços, um pacote de 5 em 5 dias. Cigarrava por gosto, gostava de saborear o fumo nas profundas da alma. O corpo pedia, a cabeça pedia e ele cedia à tentação. Apreciava a vertigem do primeiro paivante do dia, dava-lhe a volta, prazer até, o rais-parta do fumo, não fora isso e talvez cedesse aos nervos, à má catadura, ao mau temperamento. Se podia excomungar o estresse assim, com aqueles movimentados compassados do braço, a levar à labiadura o cigarro em fase minguante, mas sem boquilhas, bem dispensava as passeatas, as pírulas, as compaixões…

Zé Antôino achava anelante a cena do cigarrito a consumir-se à frente dos olhos, também fumava por mor disso. Depois, gostava de atirar beatas ao chão, evitando os cinzeiros estrategicamente dispostos em todas as esquinas, aquilo dava fulgor à sua faceta anticlerical, o seu desafio à ordem estabelecida.

Zé Antôino não conseguia encaixar o anátema diatribe do sistema que repelia os fumadores ao estilo dos leprosos de épocas medievais, coitados parecem doidinhos, sempre prontos a engolir e a deitar fora baforadas... Ao invés, as empresas que se prestam a pôr cá fora os maços e os pacotes essas são toleradas. Dão largo contributo ao peditório dos impostos, é isso! Os carros também matam e besuntam o ar, mas nem por isso são proibidos, antes pelo contrário, os cidadãos automobilizados têm a cidade a seus pés, um país, 2 sistemas, ora abóboras!...

Zé Antôino teme pelo dia em que os fumadores sejam atirados às masmorras ou às catacumbas, oxalá fosse no dia do Juízo Final, assim poupava-se esforços. Para já aturam palavras-de-ordem macabras nos maços, é para bem deles… Enquanto não forem tratados como terroristas!... As doenças matam, os transportes matam, as armas matam, mas ninguém as erradica, estão voltados para ali os cruzados! E isto acontece nos países do 1º e 2º mundos, que nos outros mundos, o 3º e o 4º nomeadamente, o tabagismo não faz mal algum, não risca…

Zé Antôino fumava do que viesse à rede, deixou-se de esquisitices, há muito, tudo o que fosse cigarro capaz de ser queimado à frente dos olhos servia. Era assim a modos do género de quem, perguntado sobre a marca de vinho preferido, sempre respondia que gostava muito. Mas tinha catarro, pieira e roncava como deus manda.

Zé Antôino mantém-se fiel ao cigarrinho, nada de cigarros de palha, de charutos, de cigarrilhas, de cachimbos ou narguilés. Punha-se a deitar fumo pelos olhos, quando lhe falavam em cigarros de enrolar, ficava lívido, tinha nascido com uma fobia a mortalhas. Tivesse ele nascido mais para trás e talvez mascasse tabaco, como os cobóis insolentes, ou talvez optasse pelo rapé.

Zé Antôino sabe que tem os pulmões inquinados, a circulação destrambelhada, já foi avisado por médicos e médicas que se tem amor à vida que se deixe de cenas e figuras tristes, que ponha a cigarreira e os isqueiros de parte. Que sim, um dia…

Ultimamente não tem sido visto a deitar fumo pela boca, a não ser nos dias frios. Desempregado, com poucos copeques nos bolsos, deixou-se arrastar para debaixo de uma ponte.

Diz-se que morreu de privação.

16
Abr15

Contos de fados (IX)

Jorge

Passa, há uma série de dias, por aquela rua, de nariz devidamente acondicionado numa máscara protetora. Desconhecem quem seja, mas apelidaram-no de Narigueta.

São inseparáveis aqueles 5 amigos e castiços também.

- Ele foi operado recentemente. Aposto!

- Não me parece, eu acho que a patroa lhe foi às fuças. Vou a jogo, aposto!

- Nada-nadais, ele estendeu-se ao comprido, após bezana brutal. Também aposto!

- Pois eu acho que ele tem a doença das aves. Tou nessa, aposto!

- O gajo anda a treinar para palhaço. Contem com mais um, aposto!

Dois dos amigos contribuíram para o bolo com o carrinho utilitário prezado por ambos; outros 2 engordaram a pula com os seus iates de estimação; o último entrou com a roulotte querida. Ao que disseram…

O Jacinto, um elemento neutro, recebe a procuração dos apostadores para tirar a coisa a limpo: segue o Narigueta, por todo o lado.

Uma semana depois, no mesmo local, apresenta o relatório que vale por sentença em julgado:

- O Narigueta não foi operado, a mulher não lhe foi aos fagotes, não se meteu nos púcaros, não tem qualquer doença esquisita, tão pouco anda a treinar para palhaço. Antes aderiu a um grupo de maduros que se recusa a respirar o ar das cidades sem mais aquelas, por ser veículo de contaminação potencial. 

Safaram-se de boa, os marmanjos apostadores! Nenhum deles era já dono de carro, de iate ou de roulotte. Esteve à vista um valente trinta-e-um, senão mais…

Aqueles 5 amigos do peito, depois de ajuramentados pelo Jacinto, nunca mais se desfizeram da máscara protetora igualzinha à do Narigueta, até que a morte os separou.

09
Abr15

Ladinices 9

Jorge

- Zé, vai à janela e diz-me que vês.

- Pouca gente nas ruas, chefe…

- É um bom sinal dos tempos, Zé! O pessoal está ocupado, boa!

- Lá fora está um griso do camandro, chefe, com sua licença. E o frio toca consoante a roupa, mas mais a quem tem pouca…

- Cuida dessa linguagem, Zé, quem não te conhece como eu de ginjeira, dás ar de quem aderiu às forças de bloqueio.

- Longe de mim tal tentação, chefe, quero continuar a contribuir para que a sua mensagem chegue cristalina a todos os nossos concidadãos coevos. Toda a gente já sabe que a confraria e os padres são pobres, que é a dar ao serrote que o país endireita…

- Tal e qual, digo-te à puridade, Zé, uma vida de sacrifícios é o cume supremo da arte!

- Mas, quem pena espera pela merecida compensação, a lei da oferta e da procura obriga, chefe…

- Chegas a confundir-me, Zé, mais uma vez a dar uma no cravo e outra na ferradura! A verdade é só uma: este país tinha dado à casca; eu tomei disposições e deus dispôs a contento. Nenhum parto se faz sem dor.

- Olhe que não, olhe que não, chefe! Mas, claro que todas as ajudas são bem-vindas, em busca do fim perseguido…

- É que não duvides, Zé! Vou fazer-te uma confidência, não fosse eu um devoto aturado de Sta. Edwiges e Sto. Expedito e não sei se teria alento para tanto…

- Até o frio tem dado a sua colaboração, chefe, é que apetece afanar, para a gelividade evitar! E depois, quem vai às compras com este briol? que seja bem-vindo!

- E tu a dares-lhe, Zé! Já ouviste esta verdade vezes sem conta da minha boca: o país precisa de temperaturas altas para a época, só assim podermos transacionar sol, areia, mar à fartazana e empresas ao desbarato, o resto é cantigas!

- Aí está, quando os seus contraditores insinuam que o chefe sofre de anosmia e analgesia social, são de uma crueldade obscena…

- É preciso sermos compreensivos, com esses pobres de espírito. Essa cambada deveria beijar o terreno que piso. Vejamos, Zé, qual o órgão mais sensível do corpo humano? O bolso naturalmente!... Eu fui direto ao bolso da patuleia, sem falsos pruridos, cortei a bom cortar, assim se eliminam tumores sobretudo os malignos. Viver acima das capacidades intrínsecas fere a idiossincrasia do nosso povo que se compraz em ser pobretanas, ser rico é só para quem sabe ganhar vantagens, felizmente poucos, ou tínhamos o caldo entornado...

- Na mouche! Já para não falar na dinâmica conferida pelas políticas do chefe a novas atividades, como aquela modalidade social nova, um misto de turismo e footing, em que o pessoal é posto a cirandar sem destino nos centros comerciais, ou essoutra dita chapa-ganha-chapa-gasta…

- Zé, quem sabe, sabe, conhece bem, com é gostoso gostar de alguém (cantam ambos)! Como bem sabes sou um sentimentalão…

- Todos os dias brindo ao êxito das suas reformas que mudaram a face da terra, chefe. Há dias até abusei e apanhei cá um pifo que nem lhe digo, nem lhe conto!

- Não caçoes com coisas sérias, Zé! Agora, mexe-te a compor a cábula que costumas produzir sempre que vou a debates quinzenais e vê se lá pões tudo, não gosto de ser mofado pela malta do contra sempre que não estou a par de um pormenor, por mais ínfimo que seja. A propósito, desvenda-me essa intriga toda da lista vipe e o sketch dos cofres cheios.

- Vou esmerar-me, mas negue sempre, como o fez no caso do jeco à Caixa, do qual se saiu tão airosamente. E ria muito na cara dos infiéis, é remédio santo!

- Assim será, dou-te a minha palavra de honra pós-eleitoral, Zé.

- Ora aí está, os patrícios passavam a vida a coçar teimosamente as partes pudendas, na boa-vai-ela, armados em marqueses, como se o mundo estivesse a seus pés. O chefe teve que lhes cortar as vazas, claro, foi preciso rasgar compromissos dantes assumidos, para bem de todos. Aí o povo viu de que massa é feito o novo marquês de Pombal (ao outro que deus o tenha!).

- Palavras sábias, sabes apurar o meu ego, Zé, bendita a hora em que te escolhi para assessor! Está decidido, hoje tens direito a rancho melhorado: em vez das sandes baratuchas, vais ali ao tasco da esquina onde o prato do dia é cozido à portuguesa, de comer e desejar por mais. De caminho, chama o Serapião.

- Ele também vai alinhar no cozido, chefe?

- Não está autorizado, quero ter com ele uma sabatina sobre o jantar a que vou logo em homenagem à embaixadora da Cochinchina.

- O chefe tem tido uns dias muitos cansativos ainda ontem homenageou o ministro plenipotenciário do Cosovo…

- Zé, a vida é 2 dias!... Desconfio que lagosta au champagne, caviar de esturjão pálido, carpaccio de bacalhau, lombinhos de cherne au azeite de oliva, trufas pretas, cordeiro assado com cogumelos e supremos de galinha, por exemplo, não vá sobrar para além dos anos de poleiro.

- Pessoalmente, chefe, não nada substitui uma boa chanfana, umas boas tripas à moda do Porto, um bom arroz de cabidela, umas gambas à Guilho, uma feijoada que não se recomenda à sua função.

- Umas calças rotas e sujas não têm cabimento num carro de luxo… Vai lá enfartar-te, logo voltas amanhã ao teu posto aqui a meu lado, uma vez cumprida a digestão, passar bem!

(O chefe sai solto, com bonomia e logo se põe a trautear a berceuse a que a ama o habituara, ia com uns anitos. A caminho da sua secretária de estimação, vem-lhe à memória o comunicado da rapaziada dum governo regional, aquando do falecimento do bardo maior dos últimos tempos e retorce-se todo, numa tentativa de suster o xixi no seu devido lugar, tal a necessidade de arreganhar a pregagem. Com todo o gosto, atira-se a umas papas de sarrabulho, ali deixadas como-quem-não-quer-a-coisa pela atenta assistente Lausinira que tão bem lhe conhecia o hábito de descarregar frustrações com pratos (à conta disso estava a ficar calvo!).

 

08
Abr15

Ouvi ou li (IX)

Jorge

1 – Uma equipe de futebol da terra defronta outra e leva que contar, uma tareia à moda antiga. A equipe derrotada era da casa e jogou na condição de visitante; a equipe ganhadora era da estranja e jogou em casa, como visitada. O resultado foi um rotundo 5-0, para pena de muito boa gente.
Num jornal (ou terá sido num site?) um bravio patrioteiro escreve que foi um jogo muito disputado, que os derrotados não viraram a cara à luta e deram que fazer aos vencedores. Só fala dizer que os golos marcados tinham caído de roldão pelo céu abaixo.
Outros agentes do ramo, enternecidos, fazem eco do comentário enternecedor.
Fosse 1-0 o resultado final então sim teria sido um jogo desequilibrado!...

2 – Um ministro discorre sobre a boa obra feita pelo seu governo, o desemprego a mirrar a olhos vistos, postos de trabalho em multiplicação, as exportações imparáveis, o crescimento a impor-se. Uma jornalista, de rabo calejado, traz à colação um relatório de peritos de uma instituição que assentou arraiais cá na terra, a cagar sentenças e depois se baldou lá para fora, aonde continua a mandar. Diz o relambório, preto no branco, que muitos empresários indígenas pouco percebem do governo das suas empresas (das suas moradias também, talvez aí resida a pecha). Felino e aquilino, o ministro reage e espanta. Olhe, não se vá sem resposta, a gente está a vender empresas aos estrangeiros exatamente por causa disso, eles são peritos na matéria, não vêm cá para ver passar os cortejos ou as bandas e sempre ensinam qualquer coisinha.
(De cara à banda ficam nacionalistas, associações de empresários disto e daquilo, mais um número considerável de fundações e observatórios.)
Nesse mesmo dia, muito dinheiro de empresários de cá passa lá para fora.
Bem caçado!
3 – O inquiridor sugere a um banqueiro um pedido de desculpa às vítimas dos seus descuidos. Vá lá não custa nada, a mim já me aconteceu esbarrar na rua com uma pessoa, a culpa foi minha e logo apresentei o meu pedido de desculpa. Chama-se a isto falar ao coração (sem se dar conta do empedernido que tem pela frente). Não se ficou sem resposta o devassante: ficam-lhe bem esses sentimentos, meu caro senhor, mas não para mim que já tenho cabelos brancos a dar com um pau, sempre cultivei as boas regras de ética e fiz muito bem a muita boa gente; apure lá esses ouvidos, eu não tive culpa, eu seguia o meu rumo, chega-se um transeunte no sentido contrário que, por acaso é o patrão do banco central, esbarriga comigo e eu esbandalho-me. Quem era merecedor de um pedido de desculpas?
Juiz que um dia delinquiu, raramente perdoa…
4 – O atual chefe supremo da igreja católica, apostólica e romana é um praticante genuíno. Tem um olhar que não engana ninguém, carregado de convicção e lhaneza. Transporta no peito a resiliência e a pertinácia dos simples que são os mais sábios. Acontece que os simples são também ingénuos, dá-lhes para mudar o mundo, mas há valores que não há volta a dar-lhes, diz-se. O senhor pediu aos mafiosos de uma cidade que se deixassem converter. Não sei se algum mafioso seguiu o conselho, só que se ouve dizer que eles são crentes, que se encomendam a santos, são homens de uma palavra só, o que até pode ser um disfarce malévolo do rei das profundas. Nem todos os que batem no peito estão dispostos a abdicar de pecados grossos, grosseiros ou grosseirões, armados em arrependidos, para melhor se safarem de complicações futuras.
Ora, converter-se significa mudar de vida.
Deixar os bancos ao deus-dará não seria mais pecaminoso?
5 – Partiu desta para melhor um dos ícones do cinema caseiro que durou mais de um século, o que é obra. Por ter deixado obra, o senhor recebeu elogios de todos os quadrantes, com exceção dos que não o conheciam de parte alguma. Foi enternecedor apurar tal unanimidade, apenas alcançável em dias soalheiros em que toda a gente diz que o tempo está bom, com exceção dos que acham que não só para contrariar.
Quem é conhecido sujeita-se a isto, o que me faz um certa impressão, porque compartilhei parte da vida com uma pessoa que comparecia sistematicamente aos funerais dos seus conterrâneos, fossem graduados, fossem trolhas, togados, ou purpurados, ia tudo raso.
Foi por ocasião de tão triste episódio que se chegou à frente o chefe da governança e opinou, mais ou menos assim, que tinha a certeza que todos sentiam um aperto muito grande pela partida daquele senhor para o além.
Falar, aperto libro, dá nisto.
O senhor centenário que partia terá tido tempo para franzir o sobrolho…
Ao chefe da governação fugiu a boca para a verdade por si criada. Faltou o ato de contrição, o que teria tornado mais agradável a viagem do venerável que seguia para a eternidade e por tal aliviaria as penas dos que ficam entregues às manápulas da governança.
No aperto, no perigo e na tristeza descobre-se o amigo (o da onça, também)…

 

08
Abr15

Contos de fados (VIII)

Jorge

- Aquele é dos tais!
- Não estou a entender…
- Aquele deixa para amanhã o que pode seguir a despacho hoje.
- Nunca irá longe…
- Por acaso ele é muito viajado.
- Uma viagem longa começa por um passo, ora bem.
- Aquele é dos tais!
- Não estou a acompanhar-te.
- Não é capaz de dizer as coisas cara-a-cara.
- Nunca irá longe…
- Por acaso ele é um mochileiro renomado.
- Longas viagens, maiores mentiras.
- Aquele é dos tais!
- Essa passou-me ao lado.
- Era bom para ir buscar a morte, orienta as decisões de embigada. 
- Assim não vai longe.
- Por acaso já calcorreou meio mundo.
- Em dia de viagem não se sente cansaço.
- Aquele é dos tais!
- Mais uma vez, não estamos na mesma na onda.
- Só faz as coisas, quando apertado.
- Tem vistas curtas.
- Por acaso já andou por Seca e Meca.
- Ninguém viaja por viajar, mas para ter viajado.
- Aquele é dos tais!
- Mau, Maria, mais uma vez não topo patavina.
- Ele cuida-se muito, a ver se muito vive.
- Quem anda neste mundo muito tem de se precaver.
- Ele não é muito viajado.
- Sábio é quem conclama a morte à última da hora e faz o céu esperar.

 

08
Abr15

Dizem que és o maior!

Jorge

Um dia descobri que o senhor Herberto Helder (assim, sem acento?) tinha nascido na Madeira, mais precisamente no Funchal, a terra do funcho, espécie herbácea quase desaparecida do mapa e dos usos e costumes daquela cidade. Foi lá também que nasci…
Depois fiquei a saber que o senhor Herberto tinha deixado a ilha pelos 16 anos. Curioso, eu também abandonei a ilha, já com mais um par de aninhos em cima da giba…
Ouvi-o declamar 5 poemas de viva voz e quedei-me surpreso, com mais de oitenta anos de vida, o senhor Herberto Helder ainda mantinha o sotaque da ilha, não há que enganar! Eu perdi o sotaque, sem querer…
Soube que o senhor Herberto Helder era uma espécie de bicho-do-mato, não gostava de cagar-na-saquinha, como se diz por aquelas bandas. Entrevistas, reportagens ou simples fotos não davam com o seu feitio, eram tempo perdido. Acho que também eu…
Dantes fora um globe-ttroter, conhecera o mundo e disso se serviu, não há como cirandar para se pôr a penetrar o real. Outra coincidência, também me fartei de ser zangarilho…
Chegou a recusar prémio ou prémios – que atrevimento -, era assim, estava-lhe na massa do sangue! Nunca experimentei uma recusa dessas, mas deve ser saboroso…
Descobri que, apesar da atitude reservada de anacoreta, os livros dele se vendiam como pastéis de Belém, em Belém mesmo, num dia cheio de turistas, que é o pão nosso de cada dia. Aprendi que fez por merecer a fama e a glória que lhe dispensaram. A tanto não chega quem gosta de espernear em cama de penas, como uma pessoa que eu cá sei…
De indagação em indagação, descubro que o senhor Herberto Helder estava feito com alguma musa, coisa pouco ao alcance da esmagadora maioria dos mortais. Uns dizem que é grande vate, outros que é o vate entre os vates, seja do Rectângulo e arredores, seja da Europa e até do globo terráqueo. Fiquei babado! Só podia, eu que faço parte daquela maioria…
Pois é todos o tinham por mestre na arte poética de há muitos anos a esta parte, arte essa que, quanto a mim se perde de amores pelo amor platónico, carnal, total e por aí não vou. Pus-me a ler o senhor Herberto Helder, estilo frete, ao início, com mais gula desde então.
Pedi desculpa ao senhor António Aleixo, por me ter afeiçoado a outrem; que não havia problema, que me entendia (lia-o pela calada, descobri). Também ele tinha ficado pelo beicinho…
É certo e sabido que ninguém se faz poeta na sua terra. Que, na terra do senhor Herberto Helder, ninguém se alembre em erigir-lhe um museu, ou uma estátua mesmo! Caso contrário, desconfio que o teríamos de volta - quem sabe? - a espadeirar os vendilhões do templo. Quem sabe se não ficaria à coca, a ver se não repetiam a gracinha…
Vendo bem, até que não era mal pensado!...
(Também gostei de saber que o senhor Herberto Helder não conduzia carrinho pelas estradas fora. Vejam bem, eu também!... Agora proponho-me ler mais um poema, talvez vá escolher aquele sobre a bilha de gás vendida num país onde já não se fia, o que não o torna fiável…)

06
Abr15

Contos de fados (VII)

Jorge

O bebé chora.
- Maria, vá lá ver de que se queixa o menino!
- Minha senhora, o menino tinha os cueiros sujos. Já lhos mudei.
O bebé volta ao choro e aos berros.
- Maria, o Angelito voltou ao mesmo, vá lá ver de que se queixa!
- Minha senhora, dei-lhe a chupeta, com açúcar. Já está na sossega.
Na volta o cinco-réis de gente torna ao choro e à grita.
- Maria, vá lá ver novamente de que se queixa o meu amorzinho!
- Minha senhora, o menino estava com cólicas, apertei-lhe a barriguita. Já está aliviado.
O cinco-réis de gente não desiste, com mais ganas, o choro e os gritos atroam o ar.
- Maria, vá lá ver de que se queixa novamente o pequenito!
- Minha senhora, estava com fome. Dei-lhe a sopita da praxe. Já está satisfeito.
O puto fica horas infindas sem incomodar. A senhora despacha Maria em nova missão, a ver o que se passava. Maria não hesita, maquinalmente espreita pela porta entreaberta, através da qual se houve o bebé chorão que ressona. Limita-se a cumprir um pró-forma, para os ingleses verem, eles que estavam a comemorar uma parceria de negócios com o cara-metade da dona de casa. Por alguma coisa a mandam aviar uma receita especial de sopas de cavalo cansado.

06
Abr15

Contos de fados (VI)

Jorge

(No rescaldo de eleições na .Madeira)
-Eis os grandes e crónicos vencedores, com maioria absoluta!
- Sim, tivemos menos votos absolutos, menor %, menos deputados, mas não há pai para a gente.
- Eis os grandes derrotados, os terceiros classificados!
- Sim, tivemos menos votos absolutos, menor %, os mesmos deputados, mesmo com aliados, levámos mais que à conta e o chefe bazou.
- Eis os grandes empatas, repetem o segundo lugar!
- Sim, tivemos menos votos absolutos, menor %, menos 1 deputado, mas ser segundo, neste caso, não equivale a ser o primeiro dos últimos é colocar-se logo a seguir ao vencedor que tem lugar cativo.
Há quem se dê por insatisfeito.
- Faça saber a partir daí que fomos os vencedores, foi a primeira vez e demos 5 deputados.
- Certo, mas ficaram a meio da tabela, isso não dá direito a pódio!
- Proclame daí que fomos os grandes vencedores, conseguimos 2, quando tínhamos zero.
- Certo, foi grande feito, mas o vosso agrupamento já tinha voado mais alto!
- Anuncie daí que fomos os vencedores, metemos 2 parlamentares, quando anteriormente só lá tínhamos 1.
- Certo, mas vocês ficaram no rabo da lancha!
O locutor de serviço cala-se. Já sabe o que a casa gasta, dois dias antes tinha posto aquela gente toda e mais uns quantos a discutir dados do desemprego e a criação de novos empregos e engendrara-se um impasse, cada cabeça sua sentença, como de costume. O impasse continua, pelos vistos. «Não há pachorra!» e foi a banhos, enquanto a disputa se tornava acérrima pela consagração.
Entretanto, numa sacristia ali perto, um cura e um diácono felicitavam-se: «Ganhámos!». E puseram-se a festejar.

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