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18
Mai15

Contos de fados (XV)

Jorge

Lá em casa, era assim: qualquer peça de roupa formal, roupa interior, meias, toalhas, lençóis, só se usava uma vez. Ao ser declarada suja, seguia diretamente para o lixo, para a um desses caixotões de encaminhamento de roupa para as obras de caridade, ou para uma loja de roupinhas e quejandos de 2ª mão. Abria-se uma exceção para suéteres, casacos de abafo, gabardinas, smokings e outros adereços que escapam mais facilmente aos malefícios do suor ou de outros fluidos fisiológicos. O prazo de validade destes subia para um ano, quando eram definitivamente abatidos ao património daquela família de 4 pessoas. Quando em muito mau estado, as roupinhas e similares iam malhar aos contentores da reciclagem, aguardando novo préstimo.

Lá em casa não se consumia eletrodomésticos de lavar, secar, ou restaurar trapinhos, passajava-se, quando muito. Poupava-se na água, em eletrodomésticos, em detergentes e nas molas. Era assim desde que um membro da família se pusera a fazer contas à vida. Ficava-lhes mais em conta comprar, diretamente ao produtor, peças de vestuário com defeito, ao desbarato.

Lá em casa – fronteira a um restaurante que persiste em abrir portas sem requisitos mínimos legais e de higiene – viviam todos os 4 contentes e felizes, não só por isto, mas também.

Lá em casa, num belo dia, é recebida a visita de uma brigada da inspeção económica que, dessa maneira, dava corpo à justeza de uma denúncia anónima. A vizinhança bem dizia que ali vivia uma troupe de taradinhos que nunca tinha roupa na corda, pelo que se supunha que não estivesse de bem com os sãos princípios do consumo, do consumerismo e da ordem social. Ninguém se admirou com o endosso de uma multa exemplar.

Lá em casa, veio pronta a resposta: os 4 puseram-se em campo e compraram todas as lojas onde costumavam comprar os trapinhos e quejandos. Mais nada!.

Acabam de ser agraciados com uma comenda por altas façanhas empresariais.

18
Mai15

Contos de fados (XIV)

Jorge

Juvino é acometido duma inflamação súbita do joelho direito, uma cena recorrente na sua já longa existência, por conta do ácido úrico, uma substância que faz estragos no organismo dos humanos, quando se passa dos limites.

- Os excessos nunca são virtuosos! - Sentenciou uma vez a sua avó e ele nunca a esqueceu.

Desta feita a inchação era descomunal. Nem se deu ao incómodo de visitar a médica da sua família, no centro de saúde que, apesar de bom governo, não se prestava à contingência. Fez-se deslocar à urgência hospitalar da zona, após alguns dias de hesitação.

(A talhe de foice, médicos de família têm cada vez mais pessoas a seu cargo, é como nas escolas com os profes. Profissões cada vez menos procuradas dá nisto!)

Juvino inscreve-se, paga a taxa moderadora (o quê?!), vai à triagem, dão-lhe uma pulseira e instala-se na sala de espera. Não vai tardar muito, a ver-se livre daquela arrelia, anima-se…

(Os nossos incómodos são incomparavelmente mais importunos que os de todas as outras pessoas, nas mesmas circunstâncias).

Juvino, na precipitação da decisão, não trouxe consigo um livro, um jornal, uma revista que fosse. Portanto, vai circunvagando a vista, que a tevê não o seduz. Olha-me aquela jovem (jeitosa, por sinal) ali tem-te-não-caias! Na flor da idade, este e outros desmandos no género podem fazer perigar um percurso laboral que é a razão de ser da existência…

(Tivesse ele outras posses e teria encaminhado os passos curtos a um estabelecimento de saúde privado, aí toca outra música!)

Juvino muda de posição na cadeira que ainda não está estragada, como outras ao alcance da sua vista, ora respira fundo, ora medita, mas acaba sempre por espraiar o olhar pela sala, a dar-se conta de quem foi atendido, das novas chegadas e da azáfama de bombeiros e pessoal médico das ambulâncias que vão chegando.

(Ninguém gosta de ser ultrapassado, ou não estivesse essa coisa da competitividade na massa do sangue!)

Juvino agora vai à máquina de vending, modelo antigo, a tirar um café, oxalá funcione. Funcionou, o café é que não é grande espiga, mas bebe-se. Já agora uma aguinha para fazer face à espera. Volta a sentar-se, noutra cadeira em condições. Então, ocorre-lhe à memória aquele aviso de «estrada em mau-estado», ostentado a par e passo na estrada que o trouxe ali, antes valia que a remodelassem...

(Uma espera em desconforto tem destas coisas, é sempre assim: deseja-se o melhor e espera-se o pior).

- Olha quem é ela, a Alzira, que te traz por aqui?!

- Vim acompanhar uma tia.

- Há tanto tempo que não te via!

- Igualmente.

- Estou reformado.

- Eu também!

- Então, o que tem a tua tia?

- Está para ali que nãos e aguenta de pé, um caso bicudo, pediu-me que a acompanhasse.

- Temos que ser uns para os outros, eu vim pelos meus próprios meios, não vejo a hora de me ver livre deste trambolho no joelho…

(Quem conversa não conta horas.)

Juvino reparava no chão, algo encardido da sala, quando entra porta dentro, lazarento, tinhoso, escanzelado, pestilento e chaguento, uma amostra de cão. Põe-se a vaguear entre utentes e muitos, carregadinhos de peninha, atiram-lhe um pedaço disto e daquilo; o bicho não se faz rogado, abocanha sofregamente os cibos e continua a passear por ali, como se fora convidado habitual.

Juvino nada dá aquela amostra de carnívoro digitígrado, antes abana a cabeça, em denúncia civicamente surda. Entretanto a criatura em estado de dissolução sai pela mesma porta por onde tinha entrado, de livre alvedrio, largos minutos depois, sem ser intercetado ou molestado, as coimas tolhem os movimentos mais atrevidos.

(Nos gabinetes de atendimento ninguém para um segundo, é toda a minha gente a bulir!)

Juvino é chamado e atendido por um clínico atencioso, disposto a reduzir o inchamento, em segurança. Tinham decorrido 4 horas sobre o seu ingresso, quando lhe extraíram líquido do joelho e ele pôde voltar mais folgado para casa.

Sai a pensar que a profilaxia um dia terá lugar cimeiro na saúde. Talvez, então, já não haja esperas destas para ninguém.

Por acaso, só então repara que a sala de urgência, exibe um alerta sobre procedimentos higiénicos tendentes a evitar infeções naquele espaço.

(- Deve ter sido colocado agorinha!)

05
Mai15

Apostilha 15

Jorge

Era uma vez um ex-ministro de vários governos, de várias tendências do espetro político a que lhe deu para falar alto e grosso, do alto da sua autoridade moral.

Falou de bandalheira na gestão do país e exemplificou: detentores de altos cargos usam e abusam de carros de luxo postos à sua disposição; ao fim de pouco tempo são substituídos e depois vendidos por tuta e meia a que se der preferência. Foi ainda mais longe, que há muito menino e muita menina em altos postos da gestão da coisa pública a fazer viagens aéreas aos molhos, munidos de cartões de crédito, sem limite de plafond, não lhes vá faltar nada. Quem paga? O Zé Pagode, naturalmente.

No tempo dele não era assim...

Tó, um condutor de tuk-tuk, sem contas em atraso, dono do casitéu onde vive com família (2 gatos e 3 cães incluídos) e que se convenceu desde tempos anteriores ao PREC que tem uma palavra a dizer no rumo do país, ouviu, não gostou de saber dessas frescatas e disse de sua justiça, numa roda de colegas de profissão, quando aguardava impaciente a chegada de um cliente retardatário, circunstância com que ninguém gosta de arrostar.

Fica aqui o resumo da sua intervenção:

- Considerando que o nosso povo sobrevive com uma mão à frente e outra atrás, na esperança que os apoderados e poderosos deixem escapulir algumas sobras, demasias, ou migalhas;

- Considerando que ainda não está claro que o nosso povo não terá de renunciar à sua identidade, entrar para a lista das culturas em vias de extinção e fechar a porta;

- Considerando que o exemplo de novo-riquismo denunciado pelo ex-ministro é a prova provada que é cada vez mais latente que quem está no poleiro se serve e não se dispõe a servir.

    Proponho que esta malta abusadora deveria ser alvo de processos disciplinares, sumários ou outra coisa qualquer no género, no sentido de serem obrigados a dar o corpo ao manifesto,como participar numa campanha de denúncia da corrupção; alternativamente que os seus nomes constem de uma lista escarrapachada na net e nos postes de iluminação pública. Isto para evitar que seja sempre a mesma melodia: uns comem figos e a outros arrebenta-lhes a labiadura.

Não te vás sem resposta, Nando, um colega seu que o ouviu pachorrento, deu-lhe o troco. Eis a resenha da sua intervenção:

Que não temos de ser pelintras cá dentro e lá fora. Os poderosos não recebem zés-ninguéns, nos seus palácios, as troicas também não. Eles só recebem pessoal alinhado ou de alta linhagem, em carrinhos topo de gama, roupinhas de marca do último grito de Paris ou Milão, pessoal bem comido e bebido, que os maquiavéis não lidam com maltrapilhos, com cavaleiros da triste figura. A estes nem óbolos dão. Janotas, de estômago delicado, de trato fino, a falar línguas fazem-se pagar caro, porque os cânones diplomáticos assim o exigem.

Tó atirou uma cusparada e foi tratar da criação, que o cliente tinha desistido.

Enquanto assim falavam, o primeiro-ministro soube dos arranjinhos e disse que iria pensar no assunto, de molde a reduzir prejuízos deste fartar vilanagem, que o cinto apertado assenta bem a todos.

(Como a denúncia já se deu há largos meses, pensa-se que já terão sido implementadas medidas tidas por convenientes. Oxalá não sigam as pisadas da «tv rural» que nunca mais volta às pantalhas…)

 

 

 

05
Mai15

Em Batatívia (15)

Jorge

Um senhor jornalista apanhou a jeito um senhor sindicalista cujo nome andava nas bocas do mundo por mor da greve em curso sendo que o segundo era piloto às vezes sota-piloto em aviões da empresa de bandeira da santa terrinha e não passava de um caixa-de-ossos à primeira vista parecia ter a modos de um pau espetado nas costas segundo a minha mãe ele sofria de torcicolo mas aguentava firme e hirto as estocadas ai seu valente tinha ar de quem não deixava que lhe fizessem o ninho atrás da orelha todo muito senhor do seu nariz talvez por isso tenha convencido muitos dos seus colegas a fazerem greve que é uma coisa que contende ao que parece cada vez mais com os direitos de utentes às vezes de clientes e até de pacientes.

Então disse o jornalista para o sindicalista que o pessoal todo da santa terrinha estava de pé atrás contra aquela paralisação agora seu eu a falar escolhessem o fim do outono ou o inverno para fazer gripar o motor agora não que a restauração precisa de bocas os hotéis precisam de ocupações pela medida grande os museus necessitam de ser visitados os taxistas necessitam de passear os camones e sei lá que mais sim sim amigo estão contra o seu sindicato todo o bicho careta e tudo o que mexe sejam cidadãos viajados ou não também estão a jurar-vos pela pele os feitores e os supervisores que se pudessem vos fariam em bocadinhos já para não mencionar os mandadores que querem vender a concessionária pela melhor oferta de ocasião a qualquer cívico endinheirado e que ache que o dinheiro dele deve ser investido em boas ações que garantam emprego mesmo com descontos de ocasião aos indígenas pobretes e alegretes para quem bacalhau basta se isto não é democracia vou ali e já venho e vocês estão do lado contrário da rede.

Como ia dizendo esse senhor jornalista da tevê voltou-se para o sindicalista que gere a greve dos pilotos dos aviões e pespegou-lhe isso mesmo nas trombas que a malta toda está contra a greve a mim não me perguntaram nada mas não faz mal fica para a próxima não se esqueçam depois o trinca espinhas do porta-voz dos grevistas deu conta do seu lamento pelos problemas criados aos passageiros e a todo o mundo é preciso ter lata o que ele foi dizer ouça lá atirou-lhe sibilino o pivô jornalista ou vice-versa que é lá isso a intenção de uma greve não é criar problemas?

Julgava eu que ficaria sem resposta mas o fininho não se deixou ficar nem tão pouco enrolar olhe lá pois fique sabendo que o senhor Luther King deixou dito que a greve é a linguagem dos que não são ouvidos ora toma e embrulha e manda para a terra no serviço expresso a mim pareceu que ia dando um mal devagarinho ao diarista que se ficou nas encolhas à espera de nova estocada que não demorou.

Ouça lá a maior central de sindicatos cá da santa terrinha desfez na greve em curso e isto nunca tinha acontecido antes e nem vai acontecer depois aí o sindicalista magrinho disse que os partidos as centrais sindicais e o governo andam sempre em busca dos votos e de ter a opinião pública do seu lado agora a decisão dos profissionais que passam a vida a voar não passa por populismos desses a empresa está mal por causa dos negócios em vera cruz nós queremos o nosso dinheirinho que está empatado lá há muito a gente não desmobiliza a companhia tem andado a fazer num equipamento 2-3 voos acoplados a adesão à greve deixa-nos reconfortados querem vender a casa por tuta e meia a um privado e assim se fica o nosso  rico e querido dinheirinho a arder.

A conversa estava neste entretém sem provas documentais nada só paleio quando o senhor jornalista não se conteve e acusou o sindicalista lingrinhas de jogo desleal então fazem greve e pagam aos que aderiram isso subverte o espírito da coisa então aí o rapaz do sindicato ainda teve tempo para dizer que outros sindicatos têm fundos semelhantes que isso é prática corrente e legal que assim e assado a gente não vai devolver a massa toda que os pilotos ganhariam nos 10 dias de greve que a parte fixa do ordenado é inferior a variável é que proporciona bom guito a gente fez e faz tudo dentro da legalidade nisto o sindicalista foi acometido de dúvida metódica pediu licença e voou dali para fora a consultar um especialista nesta matéria de fundos e que é empresário de futebol por sua vez o jornalista saiu no fim das peças informativas todas e foi consultar um fisiologista pois algo lhe dizia que tinha metido a pernita na pocinha e saiu-se mal.

05
Mai15

Contos de fados (XIII)

Jorge

- A justiça não é igual para todos, é preciso denunciar.

- Desminto categoricamente, no papel e na teoria todos somos iguais. Mais direi, a justiça nunca deixou de ser igual para iguais.

- A justiça é cara, urge atuar.

- Totalmente em desacordo, tudo tem o seu preço certo. Toda a gente pode contratar um bom causídico, independentemente do pé-de-meia adregado e agregado. As entidades financeiras, os familiares e amigos são para as ocasiões.

- Não há pai para advogadas e advogados, assim não pode continuar.

- Não é bem assim, quem manda pode e quem pode manda. Elas e eles podem e dão-se a algumas veleidades do mando. Quem parte e reparte e não fica com a melhor parte…

- O Estado deveria chegar-se à frente e não fiar-se tanto nas boas graças de S. Ivo.

- Não está a ver bem a coisa, os bons dos causídicos apenas se desenvolvem em privado, a iniciativa privada gosta deles. Portanto, não meta o Estado o nariz onde não deve, em nome da sã competitividade social, logo do bem-estar geral. A cada santo seu círio!

- De médico, advogado e padre cada qual tem um grande bocado.

- Discordo, de leis o mais vulgar é haver desconhecimento. As decisões favoráveis obtêm-nas todos quantos melhor interpretem e convoquem os espíritos das leis.

- A justiça tem sete mangas e em cada manga sete manhas.

- Discordo, quando muito justiça não é só lei, requer uns pozinhos de espírito inventivo, como noutra profissão e é assim que o mundo pula e avança.

- Se calhar põem-se os juízes a inventar…

-Não coloque palavras na minha boca! Qualquer juiz atém-se à letra da lei, para tanto lhes paga o Estado p, para serem equânimes.

- Se calhar põem-se os agentes do Ministério Público a inventar…

- Discordo o suficiente, para não estar de acordo, pela busca objetiva de provas, já sobram bastas vezes, aos seus agentes, profícuas provações.

- Quem nos dera que a justiça terrena fosse infalível como a divina, deus escreve direito por linhas tortas.

- Quem sou eu para discordar?! Aos humanos é também dada a possibilidade de escrever torto, por linhas direitas.

- A justiça é mesmo cega de nascença?

- Não consigo ser imparcial, não lhe acompanhei os primeiros passos.

Assim cavaqueavam Teobaldo, um émulo do Zé do Telhado, e Querubim, um advogado do diabo, à porta da domus iustitiae.

Entrementes, chega um plutocrata a bordo de uma chaimite. Vinha acusado de ter desgraciado muitas existências. Tomado de súbito e lancinante estupor, o argirocrata claudica e estatela-se ao comprido, quando fina adaga lhe atravessa o ventre, expelindo o último suspiro.

Na versão oficial, posta a circular, transcorridos 2 minutos sobre o infausto acontecimento, o indivíduo tinha executado haraquíri inopinado e inconcluso.

Atenção que já não é de bom timbre ajustiça feita por mão própria.

 

 

 

05
Mai15

Contos de fados (XII)

Jorge

Nota prévia: Tivera lugar uma paralisação atípica, mal-amanhada, de personalidades pouco afeiçoadas ao poder das ruas, que seu é o efetivo, o dos gabinetes. Reivindicavam para toda a gente (mas sobretudo para os seuis mais próximos) a liberdade de ser ensinado onde bem se quisesse, à pala de próprios nacionais, de preferência.

 

No banquete cerimonioso que se seguiu tem a palavra um senhor bem-posto e que não gosta que lhe falem à mão, fala ao coração:

- Mas que falta de consideração pela vida dos clientes das casas nossas, nunca se viu tal!

Os escutadores curvam-se reverentemente. Amém!

 

O senhor, diserto e com mãos de anéis, volta à carga e debita:

- Mas que falta de consideração pela vida dos amigos das casas nossas, jamais se viu um desplante destes!

Os escutadores acurvam-se reverenciosamente. Amém.

 

O senhor, bem-apessoado que dantes assentara a mão na governação, perora:

- Mas que falta de consideração pela vida dos amigas dos clientes da casa, não há memória!

Os escutadores dobram-se reverencialmente. Amém!

 

O senhor, um taful que fala pelos cotovelos, volta ao ataque:

- Mas que falta de consideração pela vida das mães dos clientes das casas nossas, abrenúncio!

Os escutadores vergam-se com reverência. Amém!

 

O senhor, cheio de verve e que não dá ponto sem nó, remoqueia:

- Mas que falta de consideração pelas vidas dos pais dos clientes das casas nossas, por amor à santa!

Os escutadores dobram-se com modos venerabundos. Amém!

 

O senhor, bem-posto e que fala ao coração, aclama:

- Bem-aventurados os que se opuseram firmemente à paralisação decretada por um bando de sacristas que querem mandar nas nossas casas, sem nosso consentimento!

Os jantantes ainda se torcem reverentemente. Amém.

 

O senhor, diserto e com mãos de anéis, proclama:

- Bem-aventurados os que dão o peito às balas e tudo fazem por ajudar a compor com as ajudas que são devida às nossas casas! 

Os jantantes ainda conseguiram contorcer-se reverenciosamente. Amém!

 

O senhor, bem-apessoado e que assentou a mão na governação, conclama:

- Bem-aventurados os que, como nós, querem que nos desamparem a loja os lesa-famílias e os lesa-pátrias, apostados em derrubar aos apoios devidos às nossas casas!

Os jantantes retorcem-se com reverência. Amém!

 

O senhor, um taful que que fala pelos cotovelos, reclama:

- Bem-aventurados os que, como nós, foram injustamente apelidados de pelegos, quando, ao invés, apenas se luta pela liberdade que temos de gerir as nossas casas à boa maneira!

Os jantadores ainda conseguem retorcer-se reverentemente. Amém!

 

O senhor, cheio de verve e que não dá ponto sem nó, com venera na lapela, declama:

- Bem-aventurados os que não rasgam compromissos por assinar, assim do pé-para-a-mão e que sabem, como nós, levar a água ao seu moinho, sem tergiversações!

Feitos num 8, os jantantes expetantes, mal têm forças para gritar. Amém! 

 

A vizinhança, farta de tanta falação e alta grita e a horas impróprias, diz-se vítima de desconsideração; feita a participação a quem de direito, chega a ordem de levantamento de rancho e do circo montado. O senhor, verboso prestidigitador de palavras e um mãos-rotas do parlapié, de venera solta da lapela, dá de mão da pregação. No entanto ainda lhe escutam:

- Mas que falta de consideração!

Amém!

01
Mai15

Eu quero aplaudir!

Jorge

O ancião entra nas catacumbas do metropolitano, arrimado à sua fiel bengala. Com passo incerto, desce um-a-um os degraus – recusa a sugestão do elevador, ainda está para as curvas! - que o deixarão na plataforma da linha vermelha berrante. Pele encarquilhada, cabelo escasso, passada insegura, gestos (agora) imprecisos, assim se apresenta a um exame mais atento que não o dos passageiros apressados que o ultrapassam sem olhar a quem, sem dó nem piedade.

Se alguém nele reparasse mais atentamente, veria que o matusalém vai apresentável na sua farpela, fatinho de todas as ocasiões, gravata de tempos idos e sapatos acabadinhos de serem bem tratados pelo engraxador de quem é fiel cliente há décadas e que tem um magro sustento, coitado! Sapatos de couro (tá queto, ó mau!) migraram para as altas esferas, o que mais abunda para aí é chanatos de lonas nas gáspeas e borrachas nas solas e adjacências. Também se percebe no seu andar e no seu olhas resquícios de modos e modilhos de sedutor dos bons velhos tempos, mas isso é assunto que não vem ao caso. Olhado a preceito, dir-se-ia que andava pelas 80 primaveras.

Chegado à plataforma apinhada, apercebe-se que há uma composição em manobras de aproximação, não precisa de olhar para o placar a se certificar. Coloca-se no sítio julgado mais a preceito, de forma a conquistar um assento na composição, o que não vai ser fácil. Portas abertas, a máquina a guinchar, aí ai ele, em busca do lugar que já julga perdido. Mas não, ali está um espaço digno de ser ocupado, num banco de 3 posições, é a do meio, pouco importa. As juntas dos braços e canetas já não ajudam, queixam-se, revelam alguma intolerância às deslocações, mas o melhor é não lhes ligar!...

Mochilas e mochileiros barram-lhe o caminho, colegas de viagem que têm por norma estacionar na entrada da carruagem dificultam-lhe a manobra, mas consegue chegar ao ponto desejado, quando se fecham as portas todas. O comboio arranca, no preciso momento em que ele, se apresta a conquistar o seu objetivo.

A alguns dos passageiros parece que ele não vai conseguir tirar-se de apuros; uns, mais pessimistas, já se veem a ajudar a acondicionar-se numa padiola, por conta de ossos partidos; outros julgam que há uma defunção a caminho.

Algumas piruetas depois, (e a bengala que bate à direita e à esquerda!), ele consegue sobreviver ao arranque – um dia talvez estes arrancos caprichosos sejam minorados – e assenta-se donairoso no lugar previsto.

É então que estrilham salvas de palmas.

O seu destino era a estação seguinte, mas sai na última, a tirar partido da situação, lia-se na cara.

À saída, assume que também será capaz de se entender de uma vez por todas com a net, com a caixa automática e com a imensidão de títulos de transportes que lhe abarrotam os bolsos.

 

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