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oitentaeoitosim

21
Set15

Vidas (2)

Jorge

    Quis o destino que o ministrante número dois da coligação governativa que é o governante número um do seu partido coligado fosse posto perante a contingência de ter um debate pré-eleitoral com a figura número dois de um partido furta-cores que integra uma coligação de oposição, onde será a número dois.

    Não desarmou e disse-se «encantado» com a oportunidade, tendo voluntariosa e briosamente afivelado uma feição prazenteira. O episódio não o abespinha, jura.

Duas ou três perguntas depois, o segundo ministrante, não se contém e dispara:

- Em nenhum país comunista haveria um debate com os adversários políticos, porque, se houvesse, era o último. Como sabem, ou lhes cortavam a cabeça ou os prendiam. Em democracia trocamos ideias naturalmente, civilizadamente.

    Amino, comentador de tevê que seguia, em direto, aquela conversa considerou que o segundo ministrante não tinha afivelado bem a máscara, que tivera um deslize indesculpável, enfim, fica mal numa pessoa de trato afável e diplomático semelhante espalhanço.

    Almerinda, rapariga nova, mas pouco dada a leituras e que não fazia a mínima ideia de que seria um país comunista e até duvidada da existência deles, fica estarrecida com a tirada. Logo ali, no café mais próximo de casa, confessa, a quem se dispôs a ouvi-la que, das três uma: primeira, o homem sofre de ginofobia, ou tem xinidamina; segunda, o senhor deve estar mal informado, nunca houve eleições com degola, quando muito uma só vez sem exemplo; terceira, o homenzinho tinha mau perder.

    Antero, um cidadão devotado, teve de recorrer às urgências psiquiátricas do hospital mais próximo, a uns bons70 km da sua casa, onde permaneceu do nascer ao pôr-do-Sol, acometido de medo fulminante. Sempre soubera de fonte segura que aquela malta que gosta dos países comunistas dava injeções atrás da orelha aos velhotes e que comia criancinhas ao pequeno-almoço; nunca lhe tinham contado (era já entradote) essa manigância nos debates pré-eleitorais, coisa monstruosa. Passou-se.

    No dia seguinte, Amino comentou outra vez: que o senhor ministrante número dois até tinha alguma razão do seu lado; nas democracias, guarda-se o melhor para os mais dotados. Ainda teve a oportunidade de acrescentar que, sob pena de termos um simulacro de debate, quem deveria lá estar do lado oposto da mesa, seria o senhor que é o número um daquela coligação oposicionista, porque o segundo ministrante é o número um de um dos dois partidos que estão na coligação do poder. Falou e disse.

    No dia seguinte, Almerinda estranhou que ninguém tivesse vindo a terreiro a desancar no segundo ministrante, o que confirmava a sua ideia que nunca tinha existido países comunistas. Portanto, quanto a essa conversa de se cortar cabeças por causa de debates pré-eleitorais era mesmo tanga, para engodar tansos.

    No dia seguinte, já não se tirava nada de Antero, tão pouco o colete-de-forças que traz agarrado à pele. Já se discute a nível oficial se um dia poderá votar, só ou acompanhado.

    No dia seguinte soube-se igualmente que o segundo ministrante esteve vai-não-vai para desistir do debate, que lhe marcassem falta de comparência queria lá saber! Mas, pensou melhor e, no dia aprazado, assinou o livro de ponto.

   Ainda não tinha dito, mas fica aqui o registo: o ministrante número dois filou pelos gasnetes a senhora que era a número dois de uma coligação de oposição, mal soou o toque final do gongo. A vítima ainda teve de ser submetida a tratamento ambulatório de reanimação.

    Ao Amino já não saem comentários com cabeça-tronco-e-membros; Almerinda já não diz coisa-com-coisa no café; a Antero já não o fazem sair do seu estupor. O segundo ministrante anda ufano por aí, a lançar foguetes e a recolher as canas. Nem quer pensar que não terá direito a comemoração votiva, com a saída dos resultados da consulta popular..

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Não te procupes, ele é um profissional competente!. 

 

21
Set15

Vidas (1)

Jorge

Na Roma clássica, em períodos de descontentamento social generalizado, era normal que os mandantes patrícios apostassem numa distribuição libertina à plebe, escravos e libertos.

Nesta janela de oportunidades, as padarias não tinham mãos a medir e o pessoal aproveitava para tirar a barriga de misérias, tal a avondança de papos-secos, de brioches, ou até de farturas que chegavam às mesas depauperadas.

Nesta janela de oportunidades, o patriciado apresentava circo a rodos, com corridas de cavalos, lutas de gladiadores, de leões famélicos a esmo. Calcula-se que, por cada sessão, seguiam a caminho dos Campos Elísios, ou a fazer companhia a Tânato uma boa mão-cheia de indivíduos assinalados (nos morituri te salutant, os que vão morrer, começavam por gritar os lutadores, fazendo das tripas coração).

(Os cristãos que literalmente pregavam essa ideia da igualdade dos humanos, viram sucumbir nas arenas mártires, heróis e santos. As ditas heresias sempre custaram caro...)

Nesta janela de oportunidades, os gladiadores do circo bravateavam pela vida, por regalias e por promoção social (o tempora o mores, através dos quais muita gente era vista apenas como mero acessório!). Para tanto, bastava despachar opositores e apostar na lealdade aos amos, condição sine qua non para o disfrute. Por qualquer suspeição intriguista - fosse o gladiador um andábata, um beluário, ou de outro estilo de luta – podia ser posto fora de circulação. Ou ia bater, em carne e osso, aos nauseabundos mercados da especialidade, caso não fossem alinhados

A fidelização da espécie humana ao mercado e/ou mercados vem de longe... 

(Ainda se discute se terá surgido na Roma clássica o adágio de que mais vale ser livre um dia que escravo toda a vida. Os primeiros que lhe foram no encalço, não terão deixado muita descendência...)

Com pão e circo (panem et circenses) dizimava-se inquietações, mas depois voltava-se ao ramerrão habitual que era de muita labuta. É que a austeridade já xingava, à época. Trabalho era trabalho e hidromel era hidromel!

Roma antiga foi-se abaixo das canetas, mas deitou muitas raízes e rebentos.

Hoje-por-hoje e por todo o lado, os mercados (não são propriamente uma originalidade romana) diversificam-se e enlaçam, com seus sortilégios, a vida das pessoas. A posse de sestércios - visíveis ou invisíveis - dita quem é mais forte e deste é o poder e a glória. E estão em todo o lado, com ou sem mercadorias por perto.

Hoje-por-hoje e por todo o lado as mais importantes decisões das pessoas são tomadas preferencialmente depois de uma espreitadela à marcha dos mercados, ou uma abordagem a conselheiros financeiros, gestores de contas e gurus. Lamentavelmente, ocupações tão meritórias como a das pitonisas, visionários, astrólogos, ou bruxos correm sérios riscos de extinção.

(Aos mercados acolhem no seu seio ditaduras, democracias, ou regimes musculados, vai tudo a eito, com limpeza. Eventualmente só os mercados de peixe fedem...!)   

Hoje-por-hoje e por todo o lado – salvo as situações emergentes de catástrofes o pão ganha-se definitivamente à custa do suor do rosto ou da solidariedade e o circo definha (há por aí uns teimosos que persistem em fazer umas habilidades e outros caturros que põem bichos a fazer momices, neste último caso para desgosto de militâncias comezinhas que os querem fora da ementa dos espetáculos tolerados atirados ao esquecimento de uma vez por todas).

Hoje-por-hoje e por todo o lado, o desporto profissionalizado - com larga vantagem para o futebol soccer – impõe-se ao circo, com vantagem. Ele aproxima a malta, apazigua tensões e até controla desvios ao padrão.

(O desporto profissionalizado contribui para mens sana in corpore sano e corporiza a inevitável competição real.)

Aquele moço, nascido num país à beira-mar plantado, sempre teve queda para a arte, tornando-se profissional de futebol. Bateu à porta de vários mercados nacionais e internacionais, pelo que assinou por diferentes clubes, alguns de renome. Agora joga numa coletividade do meio-fundo da tabela da divisão masculina principal.

Aquele moço procura no futebol jogado a alto nível a promoção a regalias chorudas. Teve oportunidade de recriminar essa ideia peripatética e peregrina de andar a prestar um qualquer serviço, a um qualquer alienatário, desconhecido, para todos os efeitos. Se metessem a literatura (a de cordel, sobretudo), a música (a pimba, sobretudo), as telenovelas (de origem demarcada ou não), o cinema (estilo «foram felizes para sempre» sobretudo) tudo no mesmo saco, ele ainda se calava, assim...

(Felizes aqueles que encontraram sua ideologia de vida, por aí se dá o primeiro passo em desfavor da alienação.)

Aquele moço, futebolista de carreira e encartado, um dia, vai de embirrar com um colega, num treinamento. O atingido não acha piada a uma entrada às pernas e a destempo e houve mosquitos por cordas. Depois do escarcéu, levou forte aperto de calos.

Aquele moço, meses depois, o rapaz reincide, entra com tudo sobre outro colega, na sessão matutina de treinos, mas não se fica a rir: o colega atingido à má-fila devolve o mimo, pegam-se e logo se levanta novo berbicacho sobre o relvado e no balneário. Repete-se a bronca e é acrescentada uma multa choruda.

Foi quando o capitão da equipa, um trintão bem amadurado, criado e adulado por aquelas bandas, veio a terreiro a dizer que, por este andar, a paciência do grupo ainda se esgota, no curto prazo.

(A paciência é remédio para os males que o não têm. O capitão da equipa e todo o balneário renovou e melhorou as condições do seu contrato.

O prevaricador, a quem chamaram de gladiador, vai parar ao mercado de compras e vendas. Está tudo negociado: iria zarpar rumo a um clube de terceiro escol da sua terra natal. Eis senão quando, é declarada greve do pessoal dos registos de novos contratos, na última hora da baliza de transferências, a qual teve adesão a 100%.

O rapaz mantém-se fiel ao ditame que reza ser uma boa regra a que permite acesso a uma boa renda.

(Chora que logo bebes!)

 

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