Contos de fados (XV)
Ela crescera com tudo no seu lugar, perfeitinha, graças a deus e convertera-se em mulher deslumbrante, um autêntico chamariz, um regalo para a vista, em resumo.
(Consta por aí que, por mais de uma vez, tinha bloqueado o trânsito, para grande irritabilidade de cidadãos impolutos, apressados e inimputáveis que assistiam incrédulos a tal cena.)
Era também prendada de outra forma, tinha bom feitio, o que – pela junção do útil ao agradável - fazia dela uma sedutora nata, que a poucos passava desapercebida. Trazia essa sina consigo, as atenções incidiam invariavelmente nela e convivia bem com essa situação, pelo conforto que a consolava.
Tratava bem da sua aparência externa, maquilhava-se sem espavento, frequentava ginásios e institutos de beleza, a tratar do físico e até já tinha pensado em recorrer a uma plástica, não se importava expurgar 2 ou 3 pormenores do rico corpinho que não lhe ficavam a matar. Vestia do bom e do melhor, com classe, de acordo com os últimos padrões da moda, mas também com ousadia – usava saias curtas ou até shorts, na maior parte do tempo – o que arrancava requebros aos admiradores.
Qualquer que fosse o ângulo de observação, fazia por contentar todos os olhares atrevidos que lhe iam no encalce. Já vira gabirus plantados à sua frente, quase a babar-se. E ela a fazer variar o ângulo, a desfazer a troca de pernas, o arfar do peito, o menear das ancas, dava-lhe gozo, que querem?!
Teve que suportar incompreensões, que era acintosamente atiradiça, que procurava bom partido a todo o custo desse por onde desse, que até seria capaz de desfazer lares já instituídos... Bem lá no fundo gostava de arrasar, mas não o fazia por mal, antes achava que, se o belo nela se espelhava, tinha de o espalhar, tão simples quanto isto!
Se o ego dela exigia adulação, ela dava-lho, mas sem cedências. Consta que lhe trazia algum incómodo que os mirones pecassem por pensamentos ou por palavras (quem se julga ela, a rainha do Sabá?), mas não dava chance aos pecados por atos.
Casou cedo e com alguém que vivia sem sobressaltos financeiros, indivíduo muito ocupado que, no meio de fartos afazeres, lhe dedicava atenção máxima, pedindo em troca dedicação exclusiva ao lar e à família que foi crescendo.
(As famílias, na sua qualidade de empresas, funcionam melhor assim.)
Não cedeu totalmente, quanto à exclusividade, não tinha temperamento para ficar o dia todo agarrada a tachos, panelas e barrelas, era ponto de honra. Arranjou quem lhe fizesse a lida da casa bem e pagava bem o favor e pôs toda a sua sabedoria em derrubar a oposição do companheiro.
Tinha curso, charme, simpatia e empatia em doses q.b., tudo bons argumentos para ensinar; logo tratou de concorrer a um posto numa escola não muito distante da sua moradia e foi bem-sucedida.
Na escola, a saga continuou: dava nas vistas, fosse pelos dois palminhos de cara, fosse pela apresentação, fosse pela devoção. Não desistiu da sua forma de ser e estar, fazia disso ponto de honra. Portanto não desistiu da forma de trajar, por exemplo.
Os alunos gostavam das suas aulas, nenhum deles se atrevia a faltar, é que ela ensinava bem, os alunos conseguiam na sua disciplina boas notas nos testes, no final do ano, ou nos exames. Mais, uns lavavam a vistas, outras aprendiam a aperaltar-se.
Um belo dia um grupo de encarregados de educação decide avançar com um abaixo-assinado, porque no entendimento dele aquela setora não dignifica a profissão (ou pouco fazia para a dignificar, na senda da tutela)
A comunidade educativa aderiu em massa. O documento sugeria à setora o caminho da rua, sem retorno. Se emendasse a mão, optando por vestes mais condizentes com a função desempenhada (o regime das fatiotas permitidas em escolas oficiais estava em processo de consulta junto dos parceiros sociais, antes da homologação superior, há muitos anos) ainda podia salvar o posto de trabalho.
A gestão da escola, a mando da tutela optou por branda medida: para evitar procedimentos disciplinares gravosos, deveria a setora usar bata axadrezada de chita, abotoada até aos tornozelos, no resto do ano escolar, depois logo se via.
Ficou irreconhecível a setora, uma flor desbotada; as aulas viraram seca, as notas dos alunos deram valente trambolhão, mas ela aguentou firme.
Pôde, enfim, a vida da escola voltar à normalidade formal e frugal, à paz podre que é peculiar a todas.
(A normalidade é tão-somente uma questão estatística.)