Estórias (I)
Cornélio nasce no seio de uma família de maganos bagalhudos que davam cartas, numa caciquia litorânea. Ao soltar os primeiros vagidos, de cú apontado à lua, - sina de descendentes de proeminentes açambarcadores da boa moeda fiduciária – logo se dão conta, médicos e acompanhantes, naquela hora pequena, que o nascediço tem o seu quê de especial, mas fora de esquadria. Não vem creditado de perfil apolíneo que, se sabe, é sempre muito desejado por genitores em todas as partes do mundo onde o dinheiro é rei, senhor e deus, que boa aparência é boa carta de apresentação.
- Já ninguém repara nisso! – Comentam assim os progenitores, em círculos relacionais próximos, aquela desfeita dos fados.
Fosse Cornélio descendente de gente remediada ou de pés-descalços e o facto de ser caolho e cambado seria só anotado com comiseração por cada vez menor número de estranhos, passantes ou viajantes. Do pessoal das redondezas, menos favorecido pelos aditamentos dos deuses que têm a sua efígie pespegada nas dracmas, não tardariam os dichotes escarninhos (entredentes, segundo a praxe) e tiradas de comiseração, às vezes. Como se tal prática invalidasse o amargor de existir para aproveitamento doutrem...
- Não vamos ficar parados! – Decidem, no silêncio do tálamo, os pais de Cornélio.
Vão de Herodes para Pilatos, porfiando na obtenção da panaceia que melhor remediasse aquela situação imposta pela Natureza. Debalde, nenhuma puçanga, nenhuma prótese, nenhuma mezinha é capaz de conter a mágoa instilada no coração dos genitores de Cornélio.
O cenário adensa-se, quando a mãe de Cornélio é desiludida por médicos amigos da família, após aturados e incontáveis análises e exames, feitos nos mais variados laboratórios da especialidade. Só depois de muitos orgasmos intentados em posições convencionais e não-convencionadas é que se rende à evidência. Ficou o prazer que não o fruto, que a conceção a 3, a restauração da fertilidade e a procriação a partir de células da pele ainda estavam no segredo dos deuses ...
(Não há prazer que não enfade, mais se é debalde.)
Quando dão de caras com um pai-de-velhacos, o casal decide-se pela perfilhação dum moço, de boa figura, o Eleutério, fulano com mais uma mão-cheia de anos que Cornélio e que andava aos caídos, má rês para quem o conhecia, mas que, de peco, não tinha nada...
(Se a palavra disfarça pensamentos, os atos revelam-nos.)
Cornélio é lançado a um monastério de frades mendicantes, a ver se por ali se adaptava. Mas, o infante deprecia o tom monocórdico das preces laudatórias repetidas até à exaustão; o cotim dos hábitos causam-lhe comichões e pústulas; a busca do negro pão, a cirandar, coacto, pelas ruas, não vai com o seu temperamento, não havia nascido para aquilo! Mesmo assim, aguenta, de cenho arrepelado, 18 largos meses. À décima tentativa de escapadela, é colocado na porta do cavalo, quando se infere que, afinal, o rapaz não reunia os pré-requisitos necessários ao recolhimento.
(Corpos vadios não dispensam folias.)
Armado em filho pródigo, Cornélio volta a casa, onde é recebido com blandícia anunciada, com lautas pitanças e o estrelejar de foguetório.
(Tal te vejo, tal te cortejo.)
Os ascendentes escolhem uma catrefada de explicadores encartados para lhe garantir a formação básica e secundária completa, que a frequência de colégios particulares e escolas oficiais onde campeia o bullying estava fora de questão, por conta dos pergaminhos familiares não toleram. Pior seria se passasse todo-o-santo-dia a dar banho aos cães...
(Na maior parte do nosso tempo, fazemos por gastar o tempo.)
Eleutério, entretanto nomeado cogerente de teres e haveres da família, não prescinde da colaboração de Cornélio e até o nomeia para missões, mais ou menos espinhosas, junto de clientes, nas horas vagas. Surpreendentemente, Cornélio dá boa conta do recado. Noutras horas livres que consegue sacar, Cornélio dedica-se a jogos de fortuna e azar, por achar que lhe abre perspetivas próprias de futuro e pela calada da noite, sempre que se lhe depara uma porta mal fechada, sai à rua, a familiarizar-se com as movimentações.
- Isto não é vida! - Concordam os cotas do rapaz de Cornélio, que ele praticava mais vadiação do que preparação para o futuro.
Forçado, embarca noutra experiência, de calibita, desta feita. De chapéu braguês na mona, sapatorras velhas e relhas, vestimenta às 3 pancadas e mochila parca, onde cabe um terço de fartas camândulas, é deixado numa área erma, onde se espera que seja tomado de visões e meditações virtuosas. Se já era mau a fixar ladainhas, a debitar litanias e a remexer em cartapácios cheios de jaculatórias, pior fica, entregue a si próprio, ou coisa que o valha. Quanto a visões, só as teve de perdição.
Sobrevive do que a terra lhe dá, mas desiste, pelo que recorre mais ao que a terra dava aos camponeses das cercanias distantes, os quais não se coíbem de lhe baixar o sarrafo, quando o apanham a jeito. De capilota em capilota, atirado algumas vezes, de catrâmbias, fica de pasto aos comedões, alguns dos quais também se ficam a dever à recusa de alinhar no ganho-ganho, vê que a vida se põe negra para ele. Se mais não o coçaram, tal fica a dever-se ao zelo de guardas, por conta da família, que o tinham debaixo de olho à distância.
Dezoito meses depois, o presunto beatorro, está de volta às cebolas do Egito, as privações consumiam-no por dentro. De novo, armado em filho pródigo, é recebido com grande com comezainas valentes, foguetório e, desta feita, com distribuição de manjares ao pagode das redondezas.
(Tal te vistas, tal te vejas...)
Lá volta ao mesmo ramerrão: muito dormir, muito descansar, muito gozar, muito sornar, estudo nos mínimos (continua a sua formação secundária com explicadores encartados). Os pais preferiam que fosse à caça de gambuzinos, ou partisse em demanda da linha do equador...
Eleutério continua a confiar-lhe missões, agora até paragens mais distantes do rancho familiar. Nas horas livres atira-se à batota com gato a bofe; nas noites livres, cuqueia damas das camélias e casa na igreja verde e disso não passa!
A páginas tantas, deixa de aparecer em casa, após mais uma noitada de sucesso, em que levou outra banca à glória. Procurado em todo o lado, após, nunca mais ninguém lhe põe a vista em cima. Fontes seguras fazem constar que havia uns perdedores com vontade de lhe chegar a farda ao pelo (coisa dificilmente tolerada por ele, como se sabe).
É o desatino nas hostes familiares, os genitores põem-se na alheta, vão para a estranja gozar merecidas e únicas férias, não fosse a coisa sobrar para eles. Consta que, terão sido vistos, pela última vez, a dirigirem as suas passadas ao cume do monte Fuji.
Eleutério, por seu turno, prefere voltar ao seu milieu, onde se mantém muito quietinho a gozar dos rendimentos, longe das vistas de qualquer pai-de-meninos.
Durante muitas semanas, sucedem-se os cortejos, à porta do principal solar da família, de putativos herdeiros de 1ª, 2ª, 3ª, ou 4ª ordem inclusive. O chão fronteiro, palco de sucessivos torneios medievais, junca-se de orgadas.
Um dia, alpardinha, 18 meses transcorridos, quando o último par de gladiadores trocava estocadas, uma sombra manquejante aproxima-se.
- Pernas para que vos quero! - Era Cornélio que regressava às suas 7 quintas, desta feita, sem que o aguardassem pitéus e foguetadas.
Neste terceiro retorno, dedica-se aos negócio correntes e à Bolsa, sem sucesso; às croias com sucesso. Bem se desforrou.
(A azeitona e a fortuna: às vezes muita, doutras nenhuma)
Cornélio volta a ausentar-se, numa manhã de nevoaça, para parte incerta.Os seus muitos descendentes, prometem alvíssaras a quem o encontrar, dentro dos próximos 18 meses.
Não estou zangado - Sinto-me tão só muito, mas mesmo muito, desapontado