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oitentaeoitosim

28
Dez16

Estórias (I)

Jorge

    Cornélio nasce no seio de uma família de maganos bagalhudos que davam cartas, numa caciquia litorânea. Ao soltar os primeiros vagidos, de cú apontado à lua, - sina de descendentes de proeminentes açambarcadores da boa moeda fiduciária – logo se dão conta, médicos e acompanhantes, naquela hora pequena, que o nascediço tem o seu quê de especial, mas fora de esquadria. Não vem creditado de perfil apolíneo que, se sabe, é sempre muito desejado por genitores em todas as partes do mundo onde o dinheiro é rei, senhor e deus, que boa aparência é boa carta de apresentação.

     - Já ninguém repara nisso! – Comentam assim os progenitores, em círculos relacionais próximos, aquela desfeita dos fados.

    Fosse Cornélio descendente de gente remediada ou de pés-descalços e o facto de ser caolho e cambado seria só anotado com comiseração por cada vez menor número de estranhos, passantes ou viajantes. Do pessoal das redondezas, menos favorecido pelos aditamentos dos deuses que têm a sua efígie pespegada nas dracmas, não tardariam os dichotes escarninhos (entredentes, segundo a praxe) e tiradas de comiseração, às vezes. Como se tal prática invalidasse o amargor de existir para aproveitamento doutrem... 

     - Não vamos ficar parados! – Decidem, no silêncio do tálamo, os pais de Cornélio.

     Vão de Herodes para Pilatos, porfiando na obtenção da panaceia que melhor remediasse aquela situação imposta pela Natureza. Debalde, nenhuma puçanga, nenhuma prótese, nenhuma mezinha é capaz de conter a mágoa instilada no coração dos genitores de Cornélio.

     O cenário adensa-se, quando a mãe de Cornélio é desiludida por médicos amigos da família, após aturados e incontáveis análises e exames, feitos nos mais variados laboratórios da especialidade. Só depois de muitos orgasmos intentados em posições convencionais e não-convencionadas é que se rende à evidência. Ficou o prazer que não o fruto, que a conceção a 3, a restauração da fertilidade e a procriação a partir de células da pele ainda estavam no segredo dos deuses ...

    (Não há prazer que não enfade, mais se é debalde.)

    Quando dão de caras com um pai-de-velhacos, o casal decide-se pela perfilhação dum moço, de boa figura, o Eleutério, fulano com mais uma mão-cheia de anos que Cornélio e que andava aos caídos, má rês para quem o conhecia, mas que, de peco, não tinha nada...

    (Se a palavra disfarça pensamentos, os atos revelam-nos.)

    Cornélio é lançado a um monastério de frades mendicantes, a ver se por ali se adaptava. Mas, o infante deprecia o tom monocórdico das preces laudatórias repetidas até à exaustão; o cotim dos hábitos causam-lhe comichões e pústulas; a busca do negro pão, a cirandar, coacto, pelas ruas, não vai com o seu temperamento, não havia nascido para aquilo! Mesmo assim, aguenta, de cenho arrepelado, 18 largos meses. À décima tentativa de escapadela, é colocado na porta do cavalo, quando se infere que, afinal, o rapaz não reunia os pré-requisitos necessários ao recolhimento.   

    (Corpos vadios não dispensam folias.)

    Armado em filho pródigo, Cornélio volta a casa, onde é recebido com blandícia anunciada, com lautas pitanças e o estrelejar de foguetório.

    (Tal te vejo, tal te cortejo.)

    Os ascendentes escolhem uma catrefada de explicadores encartados para lhe garantir a formação básica e secundária completa, que a frequência de colégios particulares e escolas oficiais onde campeia o bullying estava fora de questão, por conta dos pergaminhos familiares não toleram. Pior seria se passasse todo-o-santo-dia a dar banho aos cães... 

    (Na maior parte do nosso tempo, fazemos por gastar o tempo.)

    Eleutério, entretanto nomeado cogerente de teres e haveres da família, não prescinde da colaboração de Cornélio e até o nomeia para missões, mais ou menos espinhosas, junto de clientes, nas horas vagas. Surpreendentemente, Cornélio dá boa conta do recado. Noutras horas livres que consegue sacar, Cornélio dedica-se a jogos de fortuna e azar, por achar que lhe abre perspetivas próprias de futuro e pela calada da noite, sempre que se lhe depara uma porta mal fechada, sai à rua, a familiarizar-se com as movimentações.

   -  Isto não é vida! - Concordam os cotas do rapaz de Cornélio, que ele praticava mais vadiação do que preparação para o futuro.

     Forçado, embarca noutra experiência, de calibita, desta feita. De chapéu braguês na mona, sapatorras velhas e relhas, vestimenta às 3 pancadas e mochila parca, onde cabe um terço de fartas camândulas, é deixado numa área erma, onde se espera que seja tomado de visões e meditações virtuosas. Se já era mau a fixar ladainhas, a debitar litanias e a remexer em cartapácios cheios de jaculatórias, pior fica, entregue a si próprio, ou coisa que o valha. Quanto a visões, só as teve de perdição.

      Sobrevive do que a terra lhe dá, mas desiste, pelo que recorre mais ao que a terra dava aos camponeses das cercanias distantes, os quais não se coíbem de lhe baixar o sarrafo, quando o apanham a jeito. De capilota em capilota, atirado algumas vezes, de catrâmbias, fica de pasto aos comedões, alguns dos quais também se ficam a dever à recusa de alinhar no ganho-ganho, vê que a vida se põe negra para ele. Se mais não o coçaram, tal fica a dever-se ao zelo de guardas, por conta da família, que o tinham debaixo de olho à distância.

     Dezoito meses depois, o presunto beatorro, está de volta às cebolas do Egito, as privações consumiam-no por dentro. De novo, armado em filho pródigo, é recebido com grande com comezainas valentes, foguetório e, desta feita, com distribuição de manjares ao pagode das redondezas.

     (Tal te vistas, tal te vejas...)

     Lá volta ao mesmo ramerrão: muito dormir, muito descansar, muito gozar, muito sornar, estudo nos mínimos (continua a sua formação secundária com explicadores encartados). Os  pais preferiam que fosse à caça de gambuzinos, ou partisse em demanda da linha do equador...

    Eleutério continua a confiar-lhe missões, agora até paragens mais distantes do rancho familiar. Nas horas livres atira-se à batota com gato a bofe; nas noites livres, cuqueia damas das camélias e casa na igreja verde e disso não passa!

     A páginas tantas, deixa de aparecer em casa, após mais uma noitada de sucesso, em que levou outra banca à glória. Procurado em todo o lado, após, nunca mais ninguém lhe põe a vista em cima. Fontes seguras fazem constar que havia uns perdedores com vontade de lhe chegar a farda ao pelo (coisa dificilmente tolerada por ele, como se sabe).

     É o desatino nas hostes familiares, os genitores põem-se na alheta, vão para a estranja gozar merecidas e únicas férias, não fosse a coisa sobrar para eles. Consta que, terão sido vistos, pela última vez, a dirigirem as suas passadas ao cume do monte Fuji.

     Eleutério, por seu turno, prefere voltar ao seu milieu, onde se mantém muito quietinho a gozar dos rendimentos, longe das vistas de qualquer pai-de-meninos.  

    Durante muitas semanas, sucedem-se os cortejos, à porta do principal solar da família, de putativos herdeiros de 1ª, 2ª, 3ª, ou 4ª ordem inclusive. O chão fronteiro, palco de sucessivos torneios medievais, junca-se de orgadas.

     Um dia, alpardinha, 18 meses transcorridos, quando o último par de gladiadores trocava estocadas, uma sombra manquejante aproxima-se.

    - Pernas para que vos quero! - Era Cornélio que regressava às suas 7 quintas, desta feita, sem que o aguardassem pitéus e foguetadas.  

     Neste terceiro retorno, dedica-se aos negócio correntes e à Bolsa, sem sucesso; às croias com sucesso. Bem se desforrou.

     (A azeitona e a fortuna: às vezes muita, doutras nenhuma)

     Cornélio volta a ausentar-se, numa manhã de nevoaça, para parte incerta.Os seus muitos descendentes, prometem alvíssaras a quem o encontrar, dentro dos próximos 18 meses.

Cornélio.jpg

Não estou zangado - Sinto-me tão só muito, mas mesmo muito, desapontado

 

28
Dez16

Em Batatívia 23

Jorge

     Uma senhora deputada volta-se para o nosso primeiro e diz que lhe vai entregar prendinhas de natal vai daí o nosso primeiro não voltou a pôr o ar folgazão por causa do qual levara pouco tempo antes um raspanete dum vestalino companheiro de armas da senhora deputada segundo este fica feio fazer sinagogas e gozar com a cara dos adversários quando estão no uso da palavra só que esse amigo da senhora deputada se esqueceu de lastimar publicamente noutros tempos companheiros seus useiros e vezeiros em fazer modilhos e fosquinhas quando ouviam a oposição e mandavam nela mas não haja dúvidas que o vestalino deputado da bancada do lado deu provas que a amizade até admite esquecimentos o que não se pode levar a mal de todo.

     Do púlpito a senhora deputada põe-se a descascar as prendas destinadas ao nosso primeiro atitude que não está prevista nos intricados protocolos ditados pela etiqueta e pelo regulamento da casa tenho para mim que os manuais proíbem partes gagas sabendo-se que deslizes similares ficam registados para memória futura mas dão algum gozo ao protagonista em princípio só o destinatário das prendas está autorizado a rasgar o papel de embrulho depois mostra-se contentinho com o regalo e por fim exibe um sorriso de gratidão de orelha a orelha ora a senhora deputada lançou os foguetes foi recolher as canas toda campante deixando muita e boa gente de beiço caído como eu com semelhante deslavamento.

     A senhora deputada começou por abrir uma caixinha donde retirou um par de óculos provavelmente comprado numa loja chinesa ou nalguma estação dos CTT ela não disse nem ninguém pediu esclarecimentos à mesa sobre se as lentes eram graduadas por acaso até acho que se fossem graduadas à maneira dariam bom jeito ao nosso primeiro que deve andar de vista cansada de tanto ler orçamentos acordos discursos contas de festarolas tanta coisa e mesmo que o faça pela rama cansa aliás desconfia-se que além de andar mal da vista o nosso primeiro também esteja mal do corpo todo e de finanças pessoais tantas são as andanças atrás ou à frente dum PR ligado à corrente empenhado em distribuir afetos  que são mantimentos da alma todos os dias nos 4 recantos do país até parece que o PR quer o nosso primeiro azamboado e  já viram a quantidade de massa que tem de gastar para não usar dias seguidos os mesmos trapinhos coisa recomendada pela etiqueta?

     Depois aquela senhora deputada sacou de um frasquinho de soro da verdade destinado ao nosso primeiro na esperança que ele o tome voluntariamente a ver se acaba com mentirinhas para arranjo da vidinha com as meias-verdade e até com inverdades mas olhe rica convença-se que cada pessoa tem o seu fundo de verdade até é chato dizer isto é uma verdade do senhor de La Palisse mas caso a senhora deputada ache que ao nosso primeiro não lhe costuma fugir a boca para a verdade isso pode ser impeditivo do exercício do cargo talvez a rica devesse tentar uma moção de censura um merecido castigo para quem foge à sua verdade não acha?

     Mas senhora deputada fique a saber que o soro da verdade a sério é mais poderoso que as mistelas usadas pelas bruxas más das estórias da sua infância de resto o soro da verdade está no rol dos produtos tidos por drogas e o seu uso abusivo é tido por tortura do-mal-o-menos a senhora deputada não se ofereceu para ministrar aquela mistela que mais não devia ser uma zurrapa de água com açúcar no natal como no carnaval ninguém leva a mal uma pilhéria mas da próxima vez pense em doar ao nosso primeiro uma garrafa de vinho da santa terrinha de marca que os há bem bons quadrava-se melhor com as suas posses cada pessoa devia sentir-se obrigada moralmente a dar o que pode e olhe que o vinho pode muito palavra de rei aqui a verdade não engana.

Por fim a senhora deputada acrescentou num saco todo catita e garrido uma terceira prenda em papel que continha propostas apresentadas em diferentes ocasiões pelo partido de Vexa. francamente não percebi por que razão não pôs todas as propostas numa pen o ambiente agradecia ainda-por-cima nesse papel vinham impressas propostas do seu partido que levaram sopa  no decurso de trabalhos parlamentares provavelmente até seriam as melhores das que se apresentaram a debate e até das melhores do mundo mas a insistência bem pode ser entendida como sinal de mau perder naturalmente que o nosso primeiro vai mandá-las para o caixote do esquecimento se ele anda cansado da vista não faz sentido que se ponha a reler papéis que já passaram à historia valha a verdade que não merece castigo!

     Finalmente deixe-me dizer-lhe senhora deputada que a ideia do nosso primeiro em lhe ofertar um retrovisor é também curta de vistas talvez pelo cansaço coitado do nosso primeiro faria muito mais sentido oferecer antes um carro ficando a doação dum retrovisor aquando dum próximo espalhanço ou acidente de percurso isso era de homem! mas rica tenha paciência eu acho que um retrovisor vale mais que as suas 3 logo o nosso primeiro ganha aos pontos em generosidade aliás a senhora deputada e o seus vizinhos do lado direito já devem estar habituados a que o nosso primeiro em tempos de carestia de vida e inflação programadas vá marcando pontos  junto de quem pouco dá ou recebe prendas mas que mostra gratidão a quem se atreve a pôr mais uns euritos no subsídio ou na pensão.

PS - Da próxima vez senhora deputada que oferecer prendas ponha um ar de má se conseguir zangue-se mesmo com  o nosso primeiro as zangas têm o condão de trazer à baila a verdade nua e crua assim não vai lá é melhor tirar o cavalinho da dressage .

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 Todos os anos é a mesma coisa... A camisa é muito pequena, a gravata é feia comó raio! Preferia que fosses tu a tratar das minhas prendas de Natal, em vez daquele velho senil de casaco encarnado!

 

04
Dez16

Preito II

Jorge

 

A morte é uma letra a pagar em parte incerta.

 

Eu gosto de futebol desde garoto quando havia muita gente que decidia do meu futuro por mim e quando eu sofria muito com os relatos de futebol que davam na rádio se o clube do meu coração perdesse comia mal ao jantar dormia mal e depois rabujava com os meus vizinhos que não gostavam do clube do meu coração nessa altura e mesmo na minha adolescência e juventude e adultice preliminar sempre achei que o clube do meu coração era o maior da Terra que os dirigentes do meu clube faziam tudo certo e que os treinadores eram os mestres das estratégias e das táticas e que só eram corridos porque queriam ou se punham a jeito e que os atletas eram todos da elite que é bom um país ter elites.

Na minha juventude já via jogos na tevê e o panorama já tinha mudado já sabia que tinha de lutar pelo meu futuro e dos rebentos mas continuava a sofrer com as derrotas do clube do meu coração que aconteciam quase sempre por aselhice do árbitro por causa do estado do terreno ou devido ao azar e continuava a dizer cobras e lagartos dos clubes com os quais não ia à bola que tinham péssimos dirigentes piores jogadores e treinadores que não valiam um caracol mesmo que já tivessem treinado o clube do meu coração e não me cansava de denunciar tramações urdidas por outros dirigentes desportivos contra o clube do meu coração.

Um dia estava a ver um jogo de futebol bem à noitinha jogo esse transmitido a partir do Brasil só podia ser aquela hora ou então da Argentina já não sou propriamente um jovem conheço de cor o nome de clubes brasileiros tenho cá um pó a alguns deles que já tinham feito morder o pó ao clube do meu coração então pus-me a dar atenção à transmissão e de entrada vejo-me a perguntar «que clube é esse?» vai daí um meu irmão que sabe muito de futebol e da vida disse que era um clube que jogava há pouco tempo no campeonato principal do futebol do Brasil e eu fiquei-me a ver o jogo a minha simpatia pela Chapecoense penso que começou pela sonoridade do nome que me ficou a pairar nos lábios depois passou ao coração e passei a ter 2 clubes do coração a partir daí não perdia uma transmissão de jogos da Chapecoense deve ter sido atração à primeira vista vejam lá que até me convenci que ali estava o futuro campeão de futebol do Brasil que era o maior em tudo o coração tem razões que a Razão desconhece.

As notícias rezavam inicialmente que um avião tinha caído por terras de Colômbia e que nele seguiam dirigentes e jogadores da Chapecoense mau-mau querem lá ver! talvez um dia os aviões sejam seguros a 100% mas ainda não o são foi o pior que aconteceu depois é assim primeiro estranha-se mas depois não há remédio entranha-se a mágoa a morte deveria ser proibida de agir a seu bel-prazer outras notícias se seguiram que as causas terão sido estas mais aquelas que os causadores terão sido beltrano e sicrano para já não me tragam a listas dos inculpados a prestação de contas far-se-á em devido tempo respeitem os mortos que estão a prestar contas aos deuses que chamaram toda essa boa gente ligada a Chapecó.

Sei que todos os dias morrem muitas pessoas de morte natural sei que todos os dias termina a vida de muitos amantes de futebol sei que todos os dias partem muitas pessoas em guerras declaradas pela ganância humana mas não é de todos os dias que parte para outro mundo de crudelíssima forma e em simultâneo tanta gente assim prendada estando nesse número para além de atletas e dirigentes do clube pilotos pessoal de bordo jornalistas tudo pessoal na estima de muita gente poucas derrotas custam assim quando mereciam da vida um prolongamento que a vitória estava à mão de semear é por isso que uma partida destas dói sobretudo a quem gosta de futebol o que acontece com muita gente por esse mundo por isso as lágrimas e as homenagens são incontroláveis creiam vocês que partiram que deixam saudades e se um coração sente saudades é sinal que já cá não está quem muito se deseja sou eu que vos afianço eu nado e criado no país em que a saudade se materializou.

Requiescant in pace!

 

Só o Homem sabe que é mortal (...)

E é a certeza em que menos se acredita.

    Vergílio Ferreira in, Contra- Corrente 2

 

04
Dez16

Preito I

Jorge

Sou saudosista.

Do tempo da velha senhora, não! Custa-me a admitir que o verbo e os recursos económicos de uma comunidade possam ser exclusivo de ungidos mandantes sem rebuços.

(O «populismo» d’agora tem disto!)

Sou saudosista, repito.

Entrado na idade, também alimento o preconceito que no «meu tempo é que era», fazia-se assim-e-assado, bem melhor que hoje!...

(À falta de argumentos mais poderosos, cá vai disto!)

Sou saudosista, repiso.

Papo tevê a-torto-e-a-direito e acho que ela já teve melhores dias, com menos. Serve-me ela conversas moles, entrevistas às-3-pancadas, doses maciças de pilhérias forçadas, inenarráveis, boçais, com acompanhamento de palminhas, de beijinhos, de contubérnio forçado, enlaçados ou enroupados em música pimba, com pessoal a dar ao beque, em sorteios de popós e de dinheiro, para «ajudar a passar o tempo», numa consagração do dolce far niente do jet set.

(Ressaibos do bucolismo popularucho, tipo ancien régime?)

Sou saudosista, repito e repiso.

Eu acho que, a certa altura do campeonato, os audiovisuais até chegaram a oferecer, a espaços, oportunidades de meditar, de divertir, de informar, com alguma pinta; agora é só formatar, como se todos sofrêssemos de audimudez ínsita.

(Os espetadores, agora, vão valendo por uma variável estatística.)

Já sabem que sou saudosista, ora pois!

Por vezes busco em canais de reminiscências um grãozinho que exiba uma diferença ilustradora. É dado adquirido que os meios de informação, diversão e preenchimento de tempos livres na atualidade esforçam-se ao máximo por cortejar quem mais dá e mais obtém, o resto é cantigas...

(Às vezes até duvido que tenha sido diferente...)

Assim e por ser saudosista, vejo e revejo a rtp-memória.

Há dias, estava numa dessas, quando dou de caras com um programa cómico de dignidade suficiente. Aí descubro (é o termo!) um senhor ator, dono duma capacidade histriónica fantasticamente espontânea. Quedei-me por ali divertido com as suas caretas, as poses, os trejeitos castiços e com a pinta de dominar os textos, eu que não o conhecia de lugar algum! Mais tarde aprendi que já não teria hipóteses de o conhecer, ao vivo. Olhe que doeu!

(Juntou-se ao Sr. Solnado, outro invulgar entertainer que não deve enjeitar a sua companhia...)

Não fosse eu saudosista e não estaria aqui a dar testemunho disto: sempre que o vejo, dou o meu tempo por bem empregue, um bem-haja pela companhia, Sr. Pedro Alpiarça.

Ainda hoje o senhor contribuià distância para a minha boa-disposição e  a lidar com a vida que é cara, mas inclui todos os anos uma viagem em volta do Sol, como dizia o Sr. Maupassant, com pouco riso e muito siso.

(Os tempos não estão para brincadeiras – suponho que daí de cima tenha uma visão mais completa –, mas ajuda a aguentar saber rir dos nossos males, com distinção, fugindo com arte a palhaçadas fúteis e estapafúrdias).

 Ainda bem que, às vezes, me armo em saudosista.

Já agora, perdoe-me a pergunta, Sr. Pedro Alpiarça, foi o amargor da vida que o fez partir de súbito?

 

PS: Duma das vezes em que procurei um programa em que entrasse o senhor Pedro Alpiarça, na rtp-memória, pus-me a catucar o meu filho, entregue a ocupação diferente, ali ao lado, a ver se me acompanhava na experiência. Não ficaria muito feliz, caso soubesse que não o incluiu na lista de favoritos.

 palpiarca.jpg

 

Nunca  se sabe aquilo que basta. Talvez baste um poema, uma coisa mínima, viva, nossa, uma coisa sub-reptícia para empunhar diante do implacável acordo das formas exteriores. Também pode ser que nada baste. E nesse caso tanto faz escrever um romance ou cem poemas ou apenas um poema, ou ler ou emendar o céu astronómico ou manter-se parado no meio de um jardim húmido e silencioso, à noite. Até pode suceder que a morte não seja bastante.

     Herberto Helder, in Público, Dezembro 1990

ou cem poemas ou apenas um poema, ou ler ou emendar o céu astronómico ou manter-se parado no meio de um jardim húmido e silencioso, à noite. Até pode suceder que a morte não seja bastante.

     Herberto Helder, in Público, Dezembro 1990

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