Preito II
A morte é uma letra a pagar em parte incerta.
Eu gosto de futebol desde garoto quando havia muita gente que decidia do meu futuro por mim e quando eu sofria muito com os relatos de futebol que davam na rádio se o clube do meu coração perdesse comia mal ao jantar dormia mal e depois rabujava com os meus vizinhos que não gostavam do clube do meu coração nessa altura e mesmo na minha adolescência e juventude e adultice preliminar sempre achei que o clube do meu coração era o maior da Terra que os dirigentes do meu clube faziam tudo certo e que os treinadores eram os mestres das estratégias e das táticas e que só eram corridos porque queriam ou se punham a jeito e que os atletas eram todos da elite que é bom um país ter elites.
Na minha juventude já via jogos na tevê e o panorama já tinha mudado já sabia que tinha de lutar pelo meu futuro e dos rebentos mas continuava a sofrer com as derrotas do clube do meu coração que aconteciam quase sempre por aselhice do árbitro por causa do estado do terreno ou devido ao azar e continuava a dizer cobras e lagartos dos clubes com os quais não ia à bola que tinham péssimos dirigentes piores jogadores e treinadores que não valiam um caracol mesmo que já tivessem treinado o clube do meu coração e não me cansava de denunciar tramações urdidas por outros dirigentes desportivos contra o clube do meu coração.
Um dia estava a ver um jogo de futebol bem à noitinha jogo esse transmitido a partir do Brasil só podia ser aquela hora ou então da Argentina já não sou propriamente um jovem conheço de cor o nome de clubes brasileiros tenho cá um pó a alguns deles que já tinham feito morder o pó ao clube do meu coração então pus-me a dar atenção à transmissão e de entrada vejo-me a perguntar «que clube é esse?» vai daí um meu irmão que sabe muito de futebol e da vida disse que era um clube que jogava há pouco tempo no campeonato principal do futebol do Brasil e eu fiquei-me a ver o jogo a minha simpatia pela Chapecoense penso que começou pela sonoridade do nome que me ficou a pairar nos lábios depois passou ao coração e passei a ter 2 clubes do coração a partir daí não perdia uma transmissão de jogos da Chapecoense deve ter sido atração à primeira vista vejam lá que até me convenci que ali estava o futuro campeão de futebol do Brasil que era o maior em tudo o coração tem razões que a Razão desconhece.
As notícias rezavam inicialmente que um avião tinha caído por terras de Colômbia e que nele seguiam dirigentes e jogadores da Chapecoense mau-mau querem lá ver! talvez um dia os aviões sejam seguros a 100% mas ainda não o são foi o pior que aconteceu depois é assim primeiro estranha-se mas depois não há remédio entranha-se a mágoa a morte deveria ser proibida de agir a seu bel-prazer outras notícias se seguiram que as causas terão sido estas mais aquelas que os causadores terão sido beltrano e sicrano para já não me tragam a listas dos inculpados a prestação de contas far-se-á em devido tempo respeitem os mortos que estão a prestar contas aos deuses que chamaram toda essa boa gente ligada a Chapecó.
Sei que todos os dias morrem muitas pessoas de morte natural sei que todos os dias termina a vida de muitos amantes de futebol sei que todos os dias partem muitas pessoas em guerras declaradas pela ganância humana mas não é de todos os dias que parte para outro mundo de crudelíssima forma e em simultâneo tanta gente assim prendada estando nesse número para além de atletas e dirigentes do clube pilotos pessoal de bordo jornalistas tudo pessoal na estima de muita gente poucas derrotas custam assim quando mereciam da vida um prolongamento que a vitória estava à mão de semear é por isso que uma partida destas dói sobretudo a quem gosta de futebol o que acontece com muita gente por esse mundo por isso as lágrimas e as homenagens são incontroláveis creiam vocês que partiram que deixam saudades e se um coração sente saudades é sinal que já cá não está quem muito se deseja sou eu que vos afianço eu nado e criado no país em que a saudade se materializou.
Requiescant in pace!
Só o Homem sabe que é mortal (...)
E é a certeza em que menos se acredita.
Vergílio Ferreira in, Contra- Corrente 2