Morreu o vizinho Serafim, jardineiro, há muito, estabelecido por conta própria. Soltou o último suspiro, no leito solitário. Estaria a dormir o sono dos justos, quando foi chamado a contas no Além.
- Teve uma morte santa! – Assevera, o vizinho Ifigénio, que sempre conhecera Serafim são que nem pero, a transpirar saúde e que não arranja consolo para a viagem sem retorno do amigalhaço; vai custar muito a ultrapassar a mágoa.
(Por vezes o sono é inimigo da morte, doutras não.)
Foi a vizinha Felismina, viúva entradota que vivia 2 ruas abaixo, quem deu pela coisa. Todas as terças-feiras, ia a casa do senhor Serafim, um misógino e misantropo de longa data, a lavar umas roupas, a passajá-las e a compor a habitação acima de modesta.
- O senhor Serafim não se ajeitava à lide da casa! – Acrescenta a vizinha Felismina que encontrou o Serafim inteiriçado, depois de ter metido a chave à porta e de não ter obtido a habitual interpelação - «esteja à vontade, vizinha!» - ao seu habitual chamamento. Apressa-se a esclarecer que Serafim nunca se dera a certas liberdades, nunca se deu a avanços, nem era homem para atirar piropos ou ditos soezes, nem a sugestões ronhosas, era um homem sério.
(Quem a honra tem perdida, anda morto nesta vida, o que não é o caso.)
O vizinho Tarcísio pôs-se a chorar que nem Madalena arrependida, aos pés da cruz, ao saber que Simão se tinha definhado: para aquele fim-de-tarde estava apalavrada uma cartada na casa do compadre Francisco. Como de costume. Serafim seria o seu parceiro, pois já lhe conhecia, há muito, ademanes e manhas da arte; assim que o conheceu, nunca qui outro compincha.
- Reserva-me um lugar aí em cima, Serafim! – Pede encarecidamente o vizinho Tarcísio, enquanto se desfaz numa choradeira de cortar o coração, prevendo que nunca mais se atrevesse a jogar à sueca. Teve de reservar-se, pois, tinha sido acometido de um AVC; era o ganha-pão, há muito, da sua numerosa família.
(Toda a vida não é senão a estrada da morte.)
A vizinha Marta, uma amiga de longa data do falecido, essa não se cansava de repetir que ele tinha vocação e mãos maravilhosas para a jardinagem, pelo que sempre lhe confiou a manutenção do seu jardim que estava bonito, com era bom de ver.
- Que a terra lhe seja leve, era uma santa alma! – Ajunta a vizinha Marta, tomada de singultos estrénuos. O Serafim fora sempre um cidadão impoluto, por exemplo, nunca se havia recusado a passar fatura com NIF, pela quantia exata, ato que a muitos outros causa engulhos, urticária, psoríase ou candidíase, mas não a um homem de bem homem de bem; a ele não, comprazia-se em ser justo.
(Quem a honra tem perdida, anda morto nesta vida (não é o caso).
Já o vizinho Adriano sempre entendeu que o Serafim era uma boa alma, amigo do seu amigo, inconcusso e indefenso no cumprimento dos seus deveres de cristão, raramente falhava um serviço litúrgico, chegasse cedo ou tarde, estava no templo a dizer «presente».
- Que descanse em paz e deus o tenha! – Adiciona o vizinho Adriano, vertendo grossas lágrimas. O Serafim fora sempre um cidadão impoluto, nunca se havia recusado a colaborar com instituições sociais que se dedicam ao bem, sem olhar a quem, sem nunca fazer grande alarde; mas ele sabia, porque também alinhava na jogada.
(A vida é um sonho de que a morte nos desperta.)
Para o vizinho Militão, o Serafim era digno de todos os encómios, por exemplo, vejam que nunca falhou uma eleição, participava nas assembleias de freguesia e não falhava uma iniciativa cultural que houvesse nas redondezas, fosse cinema, fosse folclore, fosse bailação, fosse colóquio, etc...
- Não se leva nada desta vida! - Filosofa o vizinho Militão, antes de ocultar umas lágrimas que, depois de penderem teimosas das pálpebras, tinham regado as lentes grossas dos seus óculos de míope. O Serafim fora um cidadão impoluto, sempre disposto a colaborar na manutenção e ampliação das áreas verdes das cercanias e a preservar a limpeza das paisagens.
(Na morte e na boda verás quem te honra.)
A vizinha Adozinda, cônjuge de um seu concorrente de negócios, afiançou, num fio de voz e depois numa voz sumida, que o de cujus era um adversário à altura do seu marido, ele também incapaz de recorrer a jogadas sujas para atrair a clientela alheia.
- Olhe, sabe que mais?, somos todos pó e temos voltar a ele! – Sentencia a vizinha Adozinda, tomada de manifestações ptármicas. O Serafim fora sempre um cidadão exemplar, tinha um bocadinho de terra destinada à agricultura biológica; mais, fazia a separação e compostagem de lixos e mantinha a porta da sua casa a quem quisesse partilhar dos seus conhecimentos.
(A morte despe-nos de bens, para nos vestir das obras feitas.)
O senhor Eufrázio destoou: recordou que o Serafim gostava da sua pinguita; quando mais se entregava nos braços de bebedice, gostava de compor quadras soltas de escárnio e maldizer, nada de especial. Tirante isso, era homem para dar a camisa, em qualquer circunstância.
- Que descanse em paz, no domínio dos justos!» - Deseja o vizinho Eufrázio, levantando uma seu copo e propondo uma libação aos que o rodeiam, em memória dele. O Serafim fora sempre um cidadão exemplar, não se lhe conhece relingas com a vizinhança, nunca pagou multas e tinha os impostos em dia
(A morte não poupa o fraco nem o forte.)
O corpo frio do senhor Serafim esteve em velório e baixou a campa rasa, após missa de corpo presente. Compareceram às exéquias sobretudo queles amigos.
O mundo soube da partida do Serafim, através do obituário, posto e pago no jornal local, por dois primos afastados, promitentes herdeiros.
(Mortos ao chão, vivos ao pão.)
Silêncio!
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(Põe-te bom depressa)