Cá dentro, nós gostamos de novelas, está-nos na massa do sangue.
A nenhum povo europeu são servidas tantas telenovelas como à gente.
O «caso Raríssimas» detém ingredientes, à medida para uma futura telenovela: enredo intrigante, paixões entrecruzadas, personagens de monta, personalidades castiças, (os maus da fita abrem o seu jogo, logo de início), enlaces amorosos, desenlaces tencioneiros, estando o remate final ainda imprevisível, como é de bom-tom.
O emaranhado novelo do «caso «Raríssimas» é tão poderosos que remeteu para segundo plano, a chegada das temperaturas baixas do ar, a atribuição de sinais amarelos, laranjas e encarnados de tempestades antes a gente, a seca moleirona que se prolonga, a problemática ecológica das cinzas sobrantes dos incêndios estivais, as panelinhas e caixinhas politiqueiras, os aumentos do custo de vida (eles são de todos os dias, mas sobretudo do primeiro dia do ano), a liderança mais-do-mesmo da ONU, a liderança contentinha do Eurogrupo, a saída suplementar do país do lixo financeiro e – espanto dos espantos! - os enredos dos alcoviteiros do mundo do pontapé na chincha, com que as tevês, as rainhas da comunicação, faziam questão de nos brindar, nos últimos dias.
Bom seria que o guião para tal presuntiva telenovela contemplasse o seguinte: uma senhora de bom coração cria uma instituição que socorre pessoas infelizmente atingidas por doenças que só lembram ao diabo; mais tarde, a madame empenha-se, a fundo, na expansão da sua instituição, dentro e fora de portas; na ânsia de tal fazer, chama a si pessoal da alta, que, à partida, lhe garante a projeção desejada (outras associações, confrarias, fundações, ONG, etc. também não costumam enjeitar a estratégia); a patroa vai registando sucessos na empreitada a que se propôs; à pala disso, consegue, arrebanhar significativos aportes privados e sobretudo carcanhóis da Fazenda Pública, alguns usados (?) em benefício próprio.
Portanto, o cerne da trama iria girar em torno das venturas e desventuras de uma senhora longânime que, um dia, provavelmente tentada por algum esfervelho, mete a unha no pecúlio disponibilizado pelos legítimos gestores do Tesouro, o qual teoricamente é de todos, sendo que quem mais contribui para a criação de riqueza mais contribui para o erário público. Logo a ação requer os seus momentos de efervescência popular, a verberar as atitudes pecaminosas de acontiados, enteados e protetores Importante será também demonstrar a irritação popular que se fez sentir sobretudo nos locais de emprego, nas conversas de café, em desabafos ao telefone, nas redes sociais, a clamar por justiça que é cega, mas não vai em cegadas
(Ninguém está autorizado a delapidar o dinheiro e as propriedades da malta, sobretudo quem não recebeu votos para cargo público; de quem se aproveita do bom-coração dos eleitos exige-se reposição e dos eleitos retratação.)
Cheira-me que uma tramação assim está destinada ao êxito, junto dos consumidores voluntários de tevê que são logicamente também os principais contribuintes tributários. Longe vão os tempos em que se dizia que a justiça todos guarda, mas ninguém a quer em casa...
(Na ação, tenha-se em conta que as démarches das transferências fiduciárias Estado- Associação foram levadas a cabo, com a maestria habitual, pela portas dos fundos e no silêncio dos deuses. Uma boa oportunidade para o campo dos bons: alguém reparou em possíveis desmandos, protestou e falou com uma jornalista metediça e lá se partiu a cantarinha!)
Supostamente uma tramoia desta constituiria matéria de mexericos dos altos ambientes, das altas esferas e das altas instâncias locais, regionais, nacionais e internacionais. Os desabafos de quem viu e não gostou a uma jornalista metediça deu nisto. Venham os episódios todos, em breve, caso contrário a malta esquece!
Apenas uma reserva: aos intérpretes nacionais, que darão corpo aos personagens dominantes, deverão receber formação específica, habituados que estão a representar situações de irrealidades; as interpretações podem não lhes sair tão de feitio...
E que se cuide bem do final: em pátria de brandos costumes, de virtudes ambíguas, de virgens ofendidas e de reis que hão de chegar por entre a neblina dos dias futuros, a culpa não se importa de morrer solteira. Ao guionista não ficará mal a busca de um peão de brega - distraído na forma – que sirva de bode expiatório, logo, capaz de arcar com as responsabilidades e pagar as favas todas, tá?
Se consegues inculpar o espelho por este mostrar uma virgem grávida, és um vencedor...
(Rira bien qui rira le dernier! que é como quem diz: quem ri no fim são os que têm os dentes todos!…)
O meu pai diz que a persistência é o caminho certo para o sucesso. Portanto, vou continuar a dar-lhe a mesma resposta errada, até que se torne na resposta certa.
PS1 – Oxalá os fados poupem os destinatários do bem-fazer da associação Raríssimas. A palavra ao Estado!
PS2 – Das reportagens reservadas ao caso, retenho aquela cena de um diploma, encastoado em moldura reluzente, que é garante duma pós-graduação a uma pessoa não graduada. Nem todos somos iguais...
PS3 – Este affaire reúne facécias de possidonismo atroz, de quero-posso-e-mando bacoco e de elitismo capiau, parece ou não?