Diletantismo um
Vai por aí uma polémica sobre a proposta de ereção dum museu das descobertas, na capital do país. Há quem opine pelo sim, outros pelo não a tal empreendimento: para os primeiros ele seria uma homenagem à coragem dos nautas afoitos que desafiaram mares desconhecidos, com o credo na boca; para os outros, a proposta valeria como uma consagração das safadezas cometidas por quem se apoderou de bens e pessoas, durante a expansão além-mar.
A questão mergulha efetivamente em ambas as vertentes. De facto, os marinheiros de antanho, a bem ou a mal, conseguiram demandar lugares desconhecidos dos europeus (que já lá estavam, há muito, diga-se de passagem, rezando a todos os santinhos que não houvesse monstros ali ao dobrar da esquina.
Foram os beneficiários políticos da Expansão além-mar – ou Descobertas, ou coisa no género – que se serviram dos achados para realizar milhões, com a traficância execrável de pessoas e também de bens. A defenestração de comunidades, imposta pelos poderosos do Retângulo e do continente europeu, em terras distantes, vista à distância e à luz dos direitos humanos do presente, é revoltante e é chaga que ainda não está sarada para quem teve ascendentes do «lado de lá».
(À época, seria provavelmente questão de fé a existência de etnias ditas inferiores, menos queridas das deidades, a par de etnias ditas superiores, mais estimadas por entidades superiores, que estariam votadas a fazer gato-sapato das segundas, o que se lamenta.)
Para bem da humanidade, há bastantes décadas, que se passou a fazer o elogio da diversidade cultural, da diferença.
(Atualmente o governo de pessoas e bens dispensa a escravização – Portugal foi das primeiras nações a libertar-se -, até porque são mais funcionais à submissão aos interesses económicos dominantes certas derivações dos códigos da ética e da moral.)
Muita da História hodierna – pelo menos a que se faz lá por fora - dá ligeira ênfase ao pioneirismo técnico lusitano, na expansão além-mar, mas não perdoa as trafulhices e pulhices consumadas por avoengos cá da terra.
(Continuasse Portugal nos lugares cimeiros da trama comercial internacional e já teria expiado os seus pecados.)
Já estive em contacto, noutras latitudes e noutras longitudes, com estrangeiros que se apresentaram, com orgulho, como sendo descendentes de portugueses de antanho, viajados até aos orientes. Longe dos olhos longe do coração, a autoafirmação pode trazer no bojo alguma mistificação da realidade...
(Quando se permite que o vento sopre sempre da mesma direção, a árvore crescerá inclinada.)
Por enraizada displicência, ou por má consciência, até hoje Portugal não dispõe de um espaço que vinque os méritos técnicos e (porque não?) os deméritos políticos dos Achamentos.
A existir, e desde que não se esforce por mostrar apenas o «lado bom», reputa-se de meritório.
O espaço museológico pensado até poderia levar o nome de Sagres, onde se apuraram, por exemplo, as caravelas - essa estrela das Navegações - que zarparam mar fora, beneficiando de conhecimentos bebidos de diferentes culturas.
(Museu do Mar Salgado, também não ficaria mal.)
Mas, num tempo em que elementos fundamentais do património material levam nome de viventes que acumularam fortunas ou fama, ou as 2 coisas, até que assentava bem um museu Infante D. Henrique).
Para os que não querem, há muito, valha-nos Camões (estará ele chateado com a questiúncula da ereção dum museu comemorativo da expansão além-mar?)
PS1 – Há muitos anos, um chefe tribal, de um país do Terceiro Mundo, foi convidado oficialmente para um evento, num país da Europa. Mal pôs pé em terra firme, gritou, alto e bom som: «Descobri a Europa!». A verdade, nua e crua, dispensa enfeites!...
PS2 – O Sr. Eduardo Lourenço afirmou, num destes dias: «"Não sei por que é que neste momento parece haver uma necessidade de crucificar este velho país em função de uma intenção louvável, mas que ainda não redime aqueles que querem realmente a redenção, aqueles que foram objeto de uma pressão forte como o do nosso domínio enquanto colonizadores, de uma certa época".
PS 3 – O criador do «microcrédito». M. Yunus, escreveu, há uns tempos: «O único lugar onde a pobreza deve existir é em museus». Todos os tipos de pobreza, acrescente-se...