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oitentaeoitosim

23
Set12

Em Batatívia 1

Jorge

A - Um senhor cavaleiro da távola retangular, alto conselheiro do baronato, diz que os salários deveriam baixar. Os protestos, cochilados entre dentes, ou no segredo das alcovas, não tardam a ver a luz do dia. Desarrazoados, diz dos clamores o brasonado, em nota de imprensa redigida por uma ex-miss do reino, atualmente sua secretária particular: o ordenado de conselheiro dele não seria exceção. Na mesma nota deixa claro que a sanha persecutória se deve a um surto de epicondilite aguda, pelo que a fisioterapia social seria aconselhável. Dois dias depois descobre-se o contubérnio: o adviser recebe avenças sem espinhas de outras 52 empresas, públicas, privadas e mistas. Uma segunda nota de imprensa fala em prestígio social e da justa recompensa dada aos méritos de quem os possui. No mesmo dia, é visto a entrar discretamente, travestido de sem-abrigo, no consultório de bruxo afamado, perito em mau-olhado. Dali sai disparado a caminho do aeródromo.

B – O barão de Uvas Passadas, chefe cimeiro doa aguazis, exige dos ajudantes o consumo de férias em solo pátrio. Um por um, cada qual se dirige a um país diferente. «Deixem lá estar que já lhes conto», faz notar a quem lhe dá apreço. No dia da rentrée governativa, o barão vocifera com os colaboradores, dá pontapés na gramática, despede murraços aos móveis e parte 2 estatuetas e 2 jarras antigas, acabadinhas de sair da linha de produção de fábrica consagrada, sita em terras de larins. A paz volta, assim que um dos ajudantes confessa ter um recuerdo para o chefe, em nome da equipa. Todos se recostam nas cadeiras, compõem um ar de expectante beatitude e resguardam-se por trás de um sorriso maroto. «A minha pátria é o mundo», assim versa o título do livro oferecido.

C - O primeiro barão é criticado pelo uso de expressões ressumando a bedum. «Aos portadores de altos cargos está vedado o uso de linguagem brejeira; de terra-tenente ou especialista, certo» - argumentam expertos, afeitos a fretes.  Sem perda de fôlego, ajuntam: «O povo quer os seus chefes a falar bem, podendo valer-se de muletas, ademanes e habilidades estilísticas. As mentes simples agradecem que as mantenham a precato de explicações cabalísticas e elitistas». Agora, o primeiro barão é visto frequentemente a sobraçar e a recitar para as paredes a Constituição, para ele uma obra literária de primeira água e até então sua desconhecida.

D – Posto em repouso, na sua vivenda de trabalho, o ajudante do baronato vê e revê a sua última façanha. Num rasgo de génio, conseguira um diploma do pré-primário, outro do primário e estoutro da via profissional do secundário, em 2 anos, 2 meses e 2 dias. Decide recusar um canudo do ensino superior, pois demasiada ambição noviça pode redundar em atitude nociva. Neste entrementes batem-lhe à porta: um cavalheiro de indústria do cangaço, há muito estabelecido na praça propõe-lhe sem direito a leitura de entrelinhas a consecução de um diploma topo da gama da Sorbonne. O auxiliar de baronete, atacado de hilaridade, é admitido no hospital particular, onde se mantém na unidade de cuidados intensivos. O prognóstico é ambíguo e reservado.

E - «É demais, são sempre os mesmos a alinhar!». Quem assim fala não é gago, mas sim um jurisconsulto apiedado por quem sofre, embora ele não. O suserano havia mandado recolher de uma só penada as coimas todas, a brancagem, o dízimo, o foramontão, o montádigo, o real d’água, a ecotaxa… Em tempo de guerra, todas as armas são prestáveis. Os foreiros, os arrendatários, os colonos e os servos da gleba debilitados dizem aos mensageiros que aguentem os cavalos, é muita areia para as carroças deles. Que vão buscar qualquer coisinha aos intermediários, aos trânsfugas dos impostos, aos fidalgos, aos letrados e homens de leis, aos físicos, aos vendedores da banha de cobra, ou mesmo aos candongueiros e contrabandistas de amor e saudade. «Impossível» - retrucam. «Essa gente tem por patrono um tal de frei Tomás (faz o que eu digo e não o que faço). Nada feito, portanto, deitaram mãos à obra e desataram a trabalhar todos os dias, de todos os meses, de sol a sol.

F – A instrução pública é mantida por profissionais versados, veneradores das hierarquias, produtores de bons currículos e de bons projetos em prol das comunidades. A instrução pública é servida por objetivos mensuráveis, instalações intervencionadas, pais empenhados e alunos confiantes no futuro imperfeito. Dela se apossa, numa bela manhã de nevoeiro, mestre Foça, personagem da linhagem de Lineu e Bandarra. Os pais dirimem forças com os docentes, os discentes tomam o freio nos dentes, os funcionários veem os comboios passar, às autarquias dá-se uma palavra a dizer e poucos meios para pagar  e os interesses económicos dão um contributo e agradecem confundidos. Afinal a escola não está ali para os servir? Os profes têm de fazer trinta por uma linha, o pino, pilates, canoagem em águas bravas, cliff diving, ações de formação a pago e folclorismos mil. Quem sabe faz, quem não sabe ensina e esta malta precisa de saber, ensinados à distância, ou em regime presencial.  Há quem ache que a instrução, os seus valores e os seus profissionais só voltarão a riscar, quando o sapateiro modelar esteja de volta à sovela, ao tirapé e ao pinador.

G - «Eu quero ir à da minha mãe!». A exigência ressoa por todo o prédio, presa em angústia, lamúria e recriminação. As pancadas secas seguintes comprovam que a dona da voz desejava ver-se livre do amplexo das paredes que a confinava. O apelo repete-se, pelo que o vizinho mais próximo toma-o por ameaça latente e perigo iminente para a infeliz. Avisadas as autoridades, seguem-se meses de investigações helicídeas. Depois a tese: o incidente não passara de mal-entendido, posto que a possível vítima era atriz e o cara-metade ator, gostando ambos de ensaiar pela madrugada adentro. Mais se comprova que a mãe da personagem falecera, há um bom par de anos, embora lhe tenha deixado o usufruto de uma vivenda. Ao vizinho metediço foi imposto o uso facultativo de tampões auditivos que se tornará coercivo em caso de recidiva.

H – A senhora comentadora diz que o xarife está cingido a uma camisa de 11 varas. Prospeções ulteriores, ocorridas em simultâneo com a busca de petróleo no Beato, revelam coisa diferente. O homem apenas está metido em camisa de 7 varas. Desataram os folguedos, por se ter poupado em gorduras.

   

 

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