Cenas do quotidiano
Cena 1 - «Vais levar essa camisa?» - a pergunta é desfechada, assim como quem não quer a coisa. Olhar tenso, mãos escorridas ao longo das ilhargas, ela não deixa escapar aquela desarmonia. O consorte, com os segundos contados para se apresentar a tempo e horas no emprego, dá-se conta que a combinação ensaiada não se adequa, de facto, aos padrões impostos ao seu status, que a bota não condiz com a perdigota, aquela camisa não rima com as calças, ou vice-versa. Quer armar-se em teso («usa-se agora assim!»), mas, caso saia naqueles preparos talvez faça figura de tanso, ela tem razão. Atira 2 calinadas para disfarçar o mau-humor e o amor-próprio ferido e, sem levantar ondas, busca outra camisa e escapula-se sem grandes alardes, sob o olhar matreiro dela, a seguir-lhe os movimentos, pelo rabo do olho. «Até logo, fica bem!». Raios!...
Cena 2 - «Não me digas que vais andar de pijama todo o dia!» - o reparo sai em tom despreocupado, mas cheio de subentendidos. A observação, feita aparentemente em tom cordato, escorre verrina. O consorte tem uma estima muito especial por aquele pijama de motivos orientais que o enlevam. Sente-se confortável naqueles preparos, para mais em dia feriado, em que folgou por conta da desvalorização do pago. «Incomoda-te?». Que sim, até se podia dar a circunstância de uma visita não anunciada, fica mal pois. Ele atira 2 palavrões sonoros, arma-se um ligeiro quiproquó, é o último a calar-se, o que o convence da retidão da sua postura, mas sai de rabo entre as pernas a pôr uma roupinha de trazer por casa. De regresso à sala, ela não diz nada, mas ri-se por dentro e para dentro. Ele não lhe dirige a palavra nos 60 minutos seguintes.
Cena 3 - «Andas em casa com esses calções?» - a pergunta sai em tom anódino, mas mói. Cara de poucos amigos, mãos enclavinhadas em torno do espanador, pose de entendida, larga a bomba e retoma a ocupação iniciada, manhã cedo. «Não havia outros passados a ferro» - reage o consorte, sem sorte. «Não tens mãos?». Pronto a conversa acaba ali, cada uma vai para seu lado e ele lá desencanta outros calcões de trazer por casa. Fora comprar os jornais, entusiasmara-se com algumas notícias desportivas, enfurecera-se com outras (que desaforados, atrevem-se a falar em compras e vendas de atletas, porra!) e para ali ficara a remoê-las (haverá compras e vendas de repórteres, de jornaleiros, de colaboradores?). Sem perdão. Daí a pouco, ela passa a gozar de fininho. Ele não lhe aprecia os modos e ficam 2 horas sem trocar palavra.
Cena 4 - «Que faço outra vez para o jantar?» - o reparo é tão normal, como a sequência da noite e do dia. O consorte, que segue, relaxado, as peripécias de um jogo de futebol, fica incomodado. «É sempre a mesma cantiga, ao fim do dia». Segue-se as lamentações, eu é que faço tudo cá em casa e sua excelência de papo para o ar, numa de alienação. Até se incomoda em dar uma sugestão. A verdade é que a ela causa desconforto a prática desportiva de sofá, irrita-a as horas dedicadas a dar cabo da vista e perde as estribeiras, porque ele foge à partilha de tarefas. «Faz roupa-velha». DDá-se a coincidência de ter sugerido a mesma coisa no dia anterior, má-sorte a dele que tem de ouvir um chorrilho de impropérios, mas persiste na atividade iniciada, há 3 horas. Ao jantar, cada um dá cabo da sua posta de peixe, mas nem ele tuge, nem ela muge, até a manhã seguinte.
Cena 5 - «Vamos às compras?» - a pergunta fatal é sempre feita ao fim-de-semana, impreterivelmente. O consorte lê tudo nas entrelinhas: vamos ao supermercado e pagas tu, que remédio, o que o incomoda superiormente. «Quando será a tua vez de alinhares?». Aquilo é demais para os seus ouvidos, ela que paga uma série de contas, sobre as quais vão recair em breve mais aumentos. Apetece desfechar-lhe uma galheta, mandá-lo aquela parte, fazê-lo engolir a ignomínia, pô-lo porta fora. Mas, refreia os cavalos, esmifra os seus gastos que estão a ficar incomportáveis e diz-lhe que tenha juízo e maneiras. Ele diz que o graveto é cada vez menos, é preciso cortar nisto e naquilo. «Só me faltava passar fome, com os teus ademanes de forretão!» - desfecha à laia de ponto final daquela troca de impressões. Resmoneia, durante meia hora e ele moita-carrasco! A noite é ainda uma criança, quando o centro comercial mais próximo os acolhe nos seus braços. Mas, a cena contribui para que não se falassem, durante 1 dia.
Cena 6 - «Tantas dores que eu tenho!» - o reparo tem o tom do Ultimato Britânico. Ela agarra-se ao estômago, depois à barriga, faz caretas ao dar 2 passos, tosse, retosse e quase regurgita um extrato de panado ingerido ao jantar. Pronto, o consorte fica a perceber que não há nada para ninguém, ele que se tinha posto a jeito, na antevisão de uns minutos bem passados no bem bom. Nada feito, caraças e já lá se passaram 20 dia!... Se ainda fosse por ela estar num estado interessante, ou num dia proibitivo, ou por estar fragilizada por uma doença qualquer… Mas não, aquilo cheira-lhe a temperança desmedida, vai ficar a chuchar no dedo, é o que é. Agastado, passa pela cozinha a afogar as mágoas num copo de vinhaça, dá 2 socos na mesa, mata acintosamente 2 mosquitos com ar de terem contraído dengue e volta incomodado para o tálamo nupcial, onde a companheira já dorme a sono solto, julga ele. Nisto, ainda ouve uma voz entaramelada de sono: «Volta a cara para o outro lado, que me incomoda o cheiro do palheto!». Ficam 2 dias sem trocar uma palavra.