Embófia
Asdrúbal vai à deita com as galinhas. Levanta-se cedo, não por espertina, antes por arreigamento à ancestral sabedoria que deitar-se com as galinhas e acordar com os galos garante saúde e crescimento. Salta do tálamo climatizado e logo se encafua na casinha aclimatada, para as convenientes abluções e ablações higiénicas. Páter-famílias modelar e modelado, dá-se ao respeito: é o primeiro a levantar-se, a tomar o pequeno-almoço - preparado pelo assalariado do lar - e a pôr o pé fora de casa. Não fosse a agrestia ambiental, com humidades e temperaturas desconformes, e talvez já tivesse aberto mão do ar climatizado, em todas as dependências da casa. Isto para melhor, não vai, por certo. Sai do lar, pela certa, quando se torna claro que o ascensor, também ele climatizado, se vai imobilizar no patamar. O percurso até à cave passa num fósforo; faz as honras da casa o motorista privativo, na sua libré portentosa, que se apressa a abrir a porta da viatura preta.
O percurso até ao departamento que chefia - a contento das altas esferas - faz-se num ai. Aí despacha de manhã, à tarde e à noite, se for caso disso, acompanhado da aprazível sonoridade da aparelhagem que torna o ar mais amigo do conforto do corpinho. Almoça em restaurante de ar tratado até ao arrepio, com muito charme, boa comezaina, acompanhada de muitos arrotos e outras tantas libações. Já lhe foi diagnosticada propensão obsessiva pelas coisas cómodas e acomodatícias da vida, sendo a dependência ventilativa um dos sintomas, coisa de civilização.
Vê-se metido numa camisa de várias varas, sucessivos apagões tornam doentio o espaço que costuma frequentar, não consegue mexer uma palha, ensopado em suores alternadamente quentes e frios. À sua volta tudo e (quase) todos buliam, no costumeiro ramerrão. «Esta gentinha vive assim? Então não é feita da mesma massa da minha, pode lá ser?! Vejam lá as miragens ca gente tem!»
Corre a depositar ex-votos no regaço do mar vermelho que é onde as águas se separam.