Ouvi ou li (IV)
Sombras chinesas
As greves foram conquistadas por e para quem trabalha. Uma greve é aceite ou rejeitada pela maioria de uma minoria social, ou dos seus representantes. Uma greve é declarada e levada a cabo por uma minoria social, sem sombra de dúvidas. Quem por cima da burra olha para as greves não vai lá muito à bola com a democracia: só uma minoria de jóqueis monta o cavalo do poder, escudados numa maioria de votos e devotos. Lá dizia o Aristides: em poder e se abster é que está o poder.
Cavaleiro vilão
Aquele zeloso cavalariço era extremamente atencioso para com o cavalo. Sempre que podia limpava a cavalariça, não fossem os maus cheiros e as varejeiras empestarem mais e mais o ambiente. Escovava o alazão (a tender para o branco) sempre que se impunha, cuidava-lhe dos dentes, pois fora adquirido a peso de ouro, pousava-lhe a manta anti moscas, tratava de o refrescar e cuidar, trazia-o num brinquinho, está visto. - Que pena! – disse-lhe um dia o arraçado de puro-sangue, atazanado pelo mosquedo em dia de especial vibração - se de facto me desejasses ver em melhor forma, acariciavas-me menos e alimentavas-me mais. Durmo em pé, mas não na forma!
Ao olho treinado do equídeo não tinha escapado o desvio sistemático de parte da sua ração para o mercado negro, onde se trafica favores, pareceres, cobre, drogas e correlatos. É que não há mesmo cavalo sem tacha!
Arcaz
Um senhor de provecta idade tinha em casa um arcaz, onde guardava tudo, a propósito e a despropósito, uma espécie de bolsa de mão feminil, de grande porte, doutro material. Um dia, enquanto almoçava, decide-se pôr ordem nos gavetões. Logo no primeiro, dá de caras com um livro de 40 folhas dedicado ao socialismo fabiano. Estava ele todo curioso a folhear o calhamaço, quando lhe batem à porta. Fechado de supetão o gavetão, entala-lhe o dedo indicador esquerdo; o dói-dói arranca-lhe um protesto e um palavrão. Fechada apressadamente a gaveta, dá de caras com uma encorpada comitiva, de muitos plumitivos. «Se tivessem chegado mais cedo, teriam almoçado comigo!» - disse todo esganiçado e alvoroçado. Todavia, não dão o tempo por perdido, ali mesmo organizam um jogo de uíste, muito regado a uísque. O tempo da razão vem com a estação!
Espuriedade
As e-faturas são uma exigência dos tempos decorrentes também do fair trade. Passá-las, dá-las e pedi-las é dever e/ou direito constituinte (ou virá a sê-lo) de todo o cidadão que não foge às trocas e traz aos consumidores mais generosos regalias nunca dantes vistas, caso não se esqueça de as guardar em cofre-forte (pelo-sim-pelo-não aplique um formicida valentaço, antes). Por conta deste refinado serviço de inteligência, aprendizes de feiticeiro coscuvilharam entes, parentes, patentes, benemerentes e negócios do arco-da-velha: há por aí um número catita de empresas-fantasma, número de contribuinte-fantasma, etc… Dão-se alvíssaras a quem descobrir casas assombradas!
Atrás de tempos vêm tempos
Celestino embezerrava com o meio-tintismo (o penálti cheiinho é que lhe enchia as medidas), fossem dos cenários macroeconómicos, fossem das estratégias do crescimento barra desenvolvimento. Quando ouve dizer que o tempo, o maior mestre de todos, se propõe voltar atrás, em busca de soluções retiradas ao baú, fulmina os tertulianos com esta tirada: «A diminuição do desemprego virá com o regresso das mulheres ao governo do lar, assim como a desindustrialização levará à purificação do ar e à diminuição da população absoluta humana mundial». A perspicácia do Celestino, traduzida nesta e noutras tiradas de olímpica sabença, foi compensada: multiplicou-se o número de cooperantes da tertúlia ao Dejejum com o Mata-Bicho. (Ainda não tinha dito que a alcunha do Celestino dá por Salomão?) A ilusão e a sabedoria são os encantos do mundo!
A trancos-barrancos
a) - A vida é uma sucessiva sucessão de sucessões que se sucedem sucessivamente, sem suceder o sucesso…
b) - O homem que fazia boa cara ao mau tempo chorou lágrimas de crocodilo, no dia em que voltou a chover no molhado.