Piquete
- Vai à janela e diz-me que vês, Zé.
- Tá meio mundo de braços caídos, outros tantos de monco caído, contra um anjo caído, chefe.
- Deixa que isso passa! Os tratamentos e os remédios criam efeitos colaterais e dura e dura, a entender… Que mais?
- Que o chefe não se tomou de zelos por eles, que os sinapismos são mais que à conta. Que a malta da candonga escapou aos curativos.
- Deixa-te de bocarras, tás aqui e sais pela porta dos fundilhos, a vender águas a esses ranzinzas atoleimados e eu não te acompanho.
- Estão ali, nos cartazes, uma vergonha em termos de estética, chefe! Há para aí tanto leal conselheiro que podia ter aqui uma oportunidade, a maneira de melhor fazer passar uma ideia. Se o desemprego deslustra a imaginação e as artes, temos de o fazer baixar.
- Ao maior ídolo deste mundo chamaram os nomes todos e ele é adorado nas 7 partilhas, Zé. Passa à frente!
- «Ladrão», «O teu paizinho que te ature que a gente já te deita pelos cabelos».
- O tratamento custou-lhes um punhado de luíses, mas a pobreza tudo alcança à força de braço e manha. Apresentai armas, ó ronhosos, logreiros e zorros do meu país, que haveremos de estancar a sangria. Que mais?
- «Vai gamar para as Selvagens ou fica lá forever», «Mete-te na caçoila»!
- Ajeita-me aqui o gorjal da armadura, Zé, isso passa-me ao lado, que tenho alma até Almeida, ida e volta! A loxodromia está traçada, ab initio, não cedo a casuísticas lhanas, que siga a marcha!
- Procedo em conformidade, chefe?
- Que os paisanos metam um punhado dos mais desaforados na carrinha mais próxima do tribunal.
- Essa está avariada, por falta de dinheiro no mealheiro.
- Depois de mim, o país soçobrará à bicharada do dilúvio!
- Um grupo de novos milionários vem a subir para o seu gabinete, chefe.
- Dá cá o balão, Zé, daqui a pouco arranca novo ensaio da marcha-ó-filambó dos Corretores do Bolso, a festa não perde pela tardança. O Corpo de Deus já se acabou, o 5 de Outubro está-se a acabar!...
- Há também uma porta, perdão, um postigo que se abre, chefe.
- Muito me contas, abre a porta, fecha a luz, vem deitar-te ao meu lado, acordado. Qual o canal que hoje oferece mais? A gente cobre essa maquia, negócio fechado!
(Sucedem-se as saudações, as libações e as exsudações e um escol de canções. Alguém chama o António e depois o Gregório pela janela entreaberta, sobre a noite escura que nem breu, no preciso momento em que olhos coruscantes descantavam a «Internacional». Fecham-na com estrondo. Pela gateira ouve-se acordes brejeiros e picantes).