Cheirinhos kafkianos I
Avaliações
Serafim diz:
- A casa é minha, sou eu que lá vivo, com minha família.
Hermengarda retruca:
- A casa é minha, tenho aqui a escritura de compra e venda lavrada no tabelião.
Luana assevera mais tarde:
- Talvez a casa seja minha, tenho aqui uma procuração com todos os poderes da srª. Hermengarda, portanto, eu posso vender a quem der mais e depois logo se verá.
Ambrósio não se fica e, dias volvidos:
- Talvez a casa seja minha, tenho aqui uma promissória sobre ela, assinada pela srª Luana, na casa da mãe Joana.
Epaminondas António vem à colação e esclarece, mais tarde:
- Creio que, muito em breve, a casa será minha, tenho aqui umas letras assinadas pelo sr Ambrósio e que se vencem amanhã, no valor exato desta casa, obtido em recente avaliação.
Hermenegildo arrasa:
- A casa continua a ser minha, o meu banco fez um empréstimo à srª Hermengarda para compra de habitação própria e ainda não foi totalmente ressarcido. Ouçam a salvaguarda: até pagamento do último cêntimo, a casa pertence ao je, está escrito a letras pequenas, na retaguarda!
Enzo José desabafa:
- Desisto da minha quota-parte desta casa, sou advogado de todos vocês, mas não me entendo com este imbróglio. A bem do meu espólio, passem muito bem e esperem pela conta.
Agrément
- Estou em greve! – confessa Juventino.
- E porquê? – pergunta a repórter neófita.
- Muita gente não tem emprego, por isso não pode trabalhar!
- O senhor não trabalha em dia de greve, para que outros tenham trabalho, é assim?
- Assim é! Toda a gente tem direito ao seu quinhão da felicidade global.
- Eu estou a trabalhar, não alinho em greves! – debita Fagundes.
- E porquê? –pergunta a repórter neófita.
- Gostava que muita mais gente tivesse emprego e pudesse fazer greve.
- O senhor trabalha em dia de greve, para que outros possam ter trabalho e fazer greve, é assim?
- Assim é! Toda a gente tem direito ao seu quinhão da felicidade global.
- Não tenho trabalho nenhum, nem subsídio! – admite Salustiniano.
- E porquê? – alarma-se a repórter neófita.
- Durante 5 anos, trabalhei para 10 patrões e todos fecharam as lojas.
- Os que fazem e os que não fazem greve são solidários consigo, é assim?
- Assim é! O que eu gostava mesmo era de trabalhar e de poder fazer greve, toda a gente tem direito ao seu quinhão da felicidade global.
- Vão, mas é trabalhar, seus malandros! – atira aos 4 ventos Jeremias.
- O senhor detesta quem não trabalha, por causa das greves, certo? - pergunta a repórter neófita.
- Especializei-me em requalificação, ponho a mexer muita gente, em nome da boa saúde (financeira) da nação e aqueles malandros de braços parados, feitos parvos, ao que isto chegou!
- O senhor acha que se deve trabalhar, que não se deve fazer greves, mas manda para o desemprego muita e boa gente, é assim?
- Assim é! Toda a gente tem direito ao seu quinhão da felicidade global, olarilolé!
Bizarraço
- Tás a ver como eles alinharam – diz o banqueiro 1 para o banqueiro 2.
- Caíram que nem patos! – diz o banqueiro 2 para o banqueiro 1.
- 7 mil milhões já cá cantam! - galhofa o banqueiro 1.
- Tiraste esse número do cú? - galhofa o banqueiro 2.
- Se fosse a pedir de entrada mais, levava sopa, tão certo como estar aqui!-
- Topo essa, começas por um dedo, depois a mão, depois o braço.
- Se fosse a pedir mais, morria pela boca! – ri, agarrado à barriga, o banqueiro 1.
- O céu é o limite! - ri, agarrado à barriga, o banqueiro 2.
- Ganda sorte a minha ter nascido com o rabo voltado para a lua!
- E se a malta do governo não entra com mais?
- Vamos pelas canas dentro, mas arrastamos os mecos e o país – pressagia o banqueiro 1.
- Já pagaste as comissões? – atalha o banqueiro 2.
- A seu tempo se fará, 300 milhões bastam, eles são mais que muitos.
- Não te esqueças de mim, quando chegares ao paraíso!...
- E se o banco for nacionalizado? – arma-se em agoirento o banqueiro 1.
- É da maneira que mantemos os nossos empregos! – rompe em riso histérico o banqueiro 2.
(Ouve-se os primeiros compassos da canção guerreira «A Alemanha acima de tudo». Soube-se mais tarde que uma alemã sentiu picadas excruciantes nos tarsos e metatarsos esquerdinos, para descobrir que a tinham mordido.)