Agraz no olho
(Pôr a cabeça em água aos sedutores, deixá-los arremelgados e deixar a concorrência à nora, é estro de quem acha que lhe está reservado o papel de chamariz, de caleidoscópio multicolor, de borboleta atraída pela luz e isso enche o ego.)
Rita sai de casa, apressada, lavada, manicurada, pedicurada e maquilhada, muito bem-posta no seu vestido blouse-vintage, verde paisagístico, dando relevo às saliências, curvas e contracurvas do seu torso (decote generoso) e traseiro calipígio. Vai fermosa e segura, bolsa de ombro sem condizer com a cor dos sapatos, umas sabrinas que tomam boa conta do seu pé de boneca. Acarreja um currículo, irrepreensivelmente redigido, a caminho de uma entrevista de emprego. A conversa descamba em charla, os entrevistadores apoderam-se de conversa mole e convites para a retoiça, o que a fez ferver naquela água chilra. Chega-lhe a mostarda ao nariz e, antes que desatasse à tapona, deu aos calcantes, que o mundo está cheio de conversa fiada sobre igualdade de géneros e, bem vistas as coisas, aquele emprego não fazia o seu género. O lugar em disputa foi preenchido, na entrefala seguinte, por um catamito que se limitou a exigir o mínimo dos mínimos, o que encantou os porta-vozes do arrais do barco. Fica-lhe de escarmenta, da próxima não vai em cantigas, ou o anúncio é de confiança ou não põe lá os seus ricos pés.
Rita sai de casa, apressada, lavada, manicurada, pedicurada e maquilhada, muito bem-posta e arriada no seu vestidinho chiffon vintage, verde-mar, dando relevo às saliências, curvas e contracurvas do seu torso (decote até ao umbigo) e traseiro calipígio, Vai fermosa e segura que agradará, bolsa a tiracolo, sem condizer com a cor dos sapatos, umas vírgulas que lhe vão a matar com a pequenez dos pés e a graciosidade dos artelhos. Decidiu corresponder a insistências de um amigo, pelo que é vista, em fim de tarde, numa festarola que prometia ser de estalo. A casa fervilha de gente, vitualhas e bebidas circulam generosamente e pululam casalinhos dispostos à curtição, na busca incessante de nichos esconsos, onde na falta de luz se ajeita os trejeitos. É solicitada ao consumo de estranhos pós, pastilhas e fluidos, de alta procura e oferta arriscada. E ela prá ali feita parva, sem jeito, sem alinhar no fandango, autêntico peixe fora de água, a ver navios. Os hospedeiros, gente calejada do milieu, querem-na interativa e nada, ela para ali resiliente. Aquelas cenas fazem-nas gente derrancada, predisposta a passar das marcas em causa própria, uma malta sem avoengas, uns mijas-mansinhos, que se atrevam aquele fadário à luz dos holofotes e da luz dos olhos dos ascendentes! Forrobodós, rapiocas assim não se ajeitam ao seu número de pé e adiante troca o passo. «Talvez seja preferível que vás pela sombra e não viste nada!» Nem toma balanço, bico calado, não precisa empurrar, que aqui me vou. Fica-lhe de escarmenta, da próxima vez que for tentada por um convite destes, manda-os dar uma volta…
Rita sai de casa, apressada, lavada, manicurada, pedicurada, maquilhada, muito bem-posta, arriada e enfeitada no seu vestidinho de chita vintage, verde-chá, dando pouco relevo às saliências, curvas e contracurvas do seu torso (decote respeitoso) e traseiro calipígio. Vai fermosa q.b., carteirinha acolchoada ao ombro, sem condizer com a cor dos sapatos, uns sapatinhos de boneca que lhe ficam a matar nos pezinhos incólumes. Dirige os seus passos à missa, rito a que se eximia há uma década a esta parte, por causa das tosses e da falta de empatia com os devotos. Para mal dos seus pecados, as beatas respingam, as amigas olham-na de soslaio, pela calada atiram-lhe dichotes (ao jeito dos treinadores de futebol quando as coisas não correm bem às suas cores) e cora à conta do assédio em forma de piropos (parece uma boneca de trapos, olha, olha!). Dois fiéis quase chegam a apostar que o cura seria acometido de um qualquer faniquito, na hora de lhe ofertar a hóstia, mas uma alma caridosa deu ao leque, enquanto adiantou um copo de água e o embaraço finou-se por ali. Ficou-lhe de lição, passou a frequentar o templo de macacão.
Rita sai de casa, lavada, manicurada, pedicurada, maquilhada, muito bem-posta arriada, enfeitada e composta no seu vestidinho branco de organza, dando pouco relevo às suas saliências, curvas e contracurvas do torso (sem decotes) e traseiro calipígio, carteirinha clutch e luvas acima do cotovelo, a condizer com os sapatos stiletto brancos. Assim abaiucada, vai formosa e muito segura, amparada em quem lhe pediu a mão, tomada de amores, numa tarde tórrida digna de trópicos. A autoridade notarial dá ordem de soltura ao casal de pombinhos acaba de selar o nó: sacos de arroz alados, buquês voadores, pétalas esvoaçantes, confetes adejantes, fitas multicolores pairantes, xetas delicodoces e votos beatíficos de felicidade para mil e uma noites, há um pouco de tudo (não necessariamente por esta ordem). Um magazine garante o exclusivo da festança, que o nubente, um taçalhão deveras, é figura de proa da comunidade local. As festividades decorrem até-às-tantas: escorropicha-se copos mil, os pitéus, de tão bons, nem chegam a assentar (que bom que está este bolo-de-noiva!), os nubentes esvoaçam de mesa-em-mesa (que ricas prendas, obrigado!), os pares rodopiam, os brindes sucedem-se e os sorrisos esbranquiçados com caranço, também (não necessariamente por esta ordem). As grandes alegrias merecem partilha, aquilo sim é viver.
(Rita tomou-lhe o gosto, nunca mais arranjou emprego, nunca mais foi a festas privadas, nunca mais foi à missa, mas já protagonizou para cima de uma mão-cheia de casórios).