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oitentaeoitosim

09
Jul14

Caranço

Jorge

«5 minutos de estória»,  de Xico Braga

Livro, quando te fecho, abro a vida.

Pablo Neruda

 

Sigam-me ao longo de 6 estórias (de 20). Depois digam-me se não gostariam de ter captado a centelha que nelas perpassa.

1

O meu livro favorito

Estava o escritor a laurear a pevide, frente à Baía, quando, perante ele, se materializou uma menina curiosa. Olhei e deslumbrei-me com o sorriso que enchia a cara toda da menina...Vai daí, a infanta quis conhecer o livro favorito do autor que se viu à rasca, como qualquer adulto, perante perguntas inocentes, quantas vezes! Desconcertantes. Há os livros que são grandes criações artísticas, sublimes obras literárias; há os livros que respondem às nossas dúvidas e incertezas; há aqueles que nos causam outras dúvidas e que abalam as nossas convicções… Ora, adeus minhas encomendas! O autor passa no teste, à rasquinha…

2

A minhoca preguiçosa

Era minhoca amiga do seu amigo, simpática, com sentido de humor, para além do resto, mas tinha uma conceção pessoal do cumprimento das tarefas, era mais dada a vagares. À pala disso, um dia, apanhou um valente escaldão, quando veio à superfície do solo e não se apressou a penetrá-lo azinha. Amachucada, recebeu a visita da líder, a saber se estava melhor. A chefe não a ameaçou com a ostracização, limitou-se a olhá-la com aquele seu ar muito sério a impor respeito, mas a abraçá-la de bondade. Como não haveria de melhorar?

3

A biqueira do sapato

A biqueira era luzidia, esplendorosa, arrogante. Estava-se nas tintas para a sola, o calcanhar e mesmo para os atacadores, com os quais refilava, caso se atrevessem a incomodá-la. Rompia o ar com uma prosápia de pavão conquistador e resplandecia em cada tomada de raio de luz que conseguisse apanhar diretamente sobre si.» Em dia de temporal a chuva foi tanta que arrastou consigo pelas ruas e passeios uma quantidade inusitada de terra arrancada dos montes distantes. Ficou lixada com a lama que atingiu o sapato todo e aí mudou. Hoje a biqueira abre o caminho, mas vai narrando tudo o que vê às outras partes do sapato. É que nada, nem ninguém é uma ilha.

4

O passo largo

O amigo Alberto esfalfava-se, mas não conseguia acompanhar a passada do autor, a caminho da estação do comboio. A coisa já vinha de infância, eles e outros amigos competiam por serem os primeiros a chegar à escola (tempos estranhos!) A professora fingia-se zangada, do que ela tinha mesmo medo, era que nos aleijássemos. E as culpas sobravam para o autor, dono de pernas de passos longos, à época. Chegam à estação, onde desembarcaram os netos que largaram à desfilada até casa. «Andem mais devagar, rapazes!» - reivindica o autor. O amigo Alberto soltou uma gargalhada cristalina, só merecia.

5

O Largo do Paço

Grandes malucos, os putos; à falta de consolas, computador, televisor, ipods e ipads, punham-se a criar cavalos ilusórios. Preparámos uma nova colheita de magníficos corcéis – puros-sangue, nascidos das canas que fomos cortar no canavial da ribeira -, caprichámos nos ornamentos feitos com tiras de jornais e uma outra folha colorida. Assim mesmo! Depois, com pompa e circunstância dirigiam-se ao Largo do Paço, em frente à casa que, no passado fora do rei, para a cerimónia de investidura, à laia dos Cavaleiros da Távola Redonda. O Artur fez de rei Artur, sabendo os outros que ele não podia montar a cavalo, pois a sua poliomielite obrigava-o às muletas. E convidaram irmãs e amigas, a assistir. Entrámos no Largo a cavalgar, dois a dois. Fizemos salamaleques de imitação e desmontámos, júbilo no rosto e espada à cinta. A coisa estava a correr bem, até ao desfile. O Manel alembra-se de puxar da espade dele, e lá vem a algaraviada da praxe. Atentas, as mães acodem e aí nada a fazer, recolheram-se as montadas à cavalariça. A imaginação é a grande força a que geralmente a sociedade não dá importância suficiente. A criançada solidária, sim!

6

O  pombo apaixonado

Os pombos e as pombas, as rolas e os rolas arrulham, independentemente de se sentirem apaixonados ou não. Aquele era um pombo apaixonado que se pendurava no ramo duma árvore, fronteira à gaiola de rolas dos novos vizinhos do segundo andar direito. Ficava ali pasmado, horas a fio, a arrulhar. Até se esquecia de ir fazer as necessidades a outro sítio, por isso arriava o calhau que se acomodava sistematicamente num vidro do carro de um amigo do autor. «Todos os dias, caramba! É demais!» Nada que um pouco de água de garrafa, mantida na bagageira do carro não retirasse, mas era chato! Quando o vai a enxotar, o bicho saiu-se com esta: Nunca estiveste apaixonado? Que sim, mas o bicho falou?!… E as cagadelas sucessivas?, questão arrumada!… Respeitoso, saiu da varanda, fechou a porta da cozinha e encheu nova garrafa com água, para de manhã a levar para o carro. E nem uma só vez pensou em procurar outro lugar de estimação para parcar o popó.

 

Portanto, pais, avós e indivíduos em geral, da classe alta, média ou baixa, peçam à meninada que se atire ao livro; já agora, façam-se convidados e entrem na dança. Eu deixei-me levar pela sua prosa poetizada que prende à vida.

 

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