Close-up 1 - Alzira
Chora por mim ó minha infanta
Escorre sangue o céu e a terra
Ah pois por mais que seja santa
A guerra è a guerra
Fausto B. Dias
Não anda com muito tempo, por acaso, dei atenção a certa notícia incluída no serviço informativo das 13 horas que vejo e ouço sistematicamente em diferido, à uma porque fujo às notícias desinteressantes, em segundo lugar, fujo à publicidade - quase sempre rasca -,porque detesto o conúbio entre notícias pungentemente patéticas com anúncios formalmente patetas.
A voz da locutora, límpida e clara – por aí campeiam comunicadores que não investem muito numa dicção precisa – dá conta de mais uma impiedosa ação de guerra, no Iémen: junto a uma cidade portuária, 250 000 pessoas estariam cercadas por tropas da aliança saudita, um dos dois contendores da guerra dita civil que incendeia aquele país (conta com a colaboração insidiosa de potências estrangeiras e aliados extremistas).
Mesmo em guerra,infelizmente,o Iémen recebe migrantes em trânsito, provindos doutras latitudes com conflitos; agora há mais iemenitas a juntar-se aqueles no trajeto seguinte.
A voz da locutora, límpida e cristalina continua a debitar esclarecimentos: dum lado estão lutadores sunitas da coligação saudita, do outro, combatentes xiitas, gente temente ao mesmo deus, cada um à sua maneira.
(Os conflitos bélicos eclodem após decisões de altas esferas, mas não tão altas que cheguem ao Céu...).
Está dito, redito e comprovado que as proclamações de guerra se fazem por amor ao vil metal, logo, por mor da propriedade da liderança (quantas vezes os nacionalismos são malsãmente chamados à pedra!).
A voz límpida e cristalina continua a dar conta de pormenores: a arremetida militar poderia estar a pôr em questão a assistência humanitária não apenas a 250 000 iemenitas civis, mas a um total de 8 milhões diretamente dependentes dos bens aportados aquela cidade, ora sitiada.
As guerras hodiernas têm uma componente bélica propriamente dita e outra humanitária; esta última cinge-se a rígidos códigos de conduta. A Cruz Vermelha, o Crescente Vermelho e outras organizações que ostentem um cristal vermelho oferecem os seus préstimos, de forma a minorar a crueldade
(Do mesmo modo, organizações sociais, em tempos de paz, são apontadas à assistência aos derrotados da vida que bem existem, para contrastar com os heróis.)
A guerra do Iémen, iniciada em 2015, segue de perto os regulamentos das convenções e protocolos de genebra, daí que, por um dos lados no mínimo, esteja submetida a avaliação, monitorização e até prestação de contas, sobre atropelos e sevícias infligidas.
(A guerra, justa ou injusta, é uma púrpura debaixo da qual se ocultam homicídios.)
A Organização das Nações Unidas – um arremedo de governo mundial - faz o que pode e pode pouco; sempre que se proporciona a ocasião, apresenta uma moção de censura do conflito,na sua sede,mas há sempre um vencedor da 2ª GM disposto a vetar o texto, porque lhe serve o contexto.
Na disputa iemenita, a ONU tem no terreno uma Missão de Observação - é o melhor que se pode arranjar - que dá conta dos desatinos cometidos, das epidemias em desenvolvimento, das falhas de socorro, sempre na esperança que o conflito se extinga amanhã.
A ONU também não se importa de gerir zonas neutras, potenciais ou efetivas. Mas, às vezes também se oferece para gerir as chamadas zonas neutras. A soberania dos países exige respeito e contenção nas palavras, atos e obras.
(Quem tudo abarca, pouco ata.)
Conflito terminado, será tempo de discursos em Nova Iorque e noutras capitais do mundo, por parte do vencedor, se a democracia intramuros seja instaurada, bem entendido...
Por aí se diz que quem compra terras, compra guerras.
Eu vi-te, Alzira, naquela reportagem, enquanto a voz, límpida, cristalina continua a denunciar, galhardamente. Ao colo de tua mãe, decidida a pôr-se dali-para-fora, tu choravas copiosamente,angustiada talvez porque pressentisses que te aguardava o desconhecido, a contragosto. Lia-se no semblante da tua procriadora determinação em dar o fora, duma vez por todas, mesmo que isso implicasse deixar para trás entes queridos, objetos estimados e uma terra prezada. A tua mãe,face ao alvoroço,estendia-te um manto protetor.
(Dói muito, mas o que tem de ser tem muita força!).
Só consigo imaginar a aflição superveniente à fuga empreendida, para fora do alcance de tiros, de bombas e do barulho ensurdecedor dos carros de combate e aviões - provavelmente apenas com a roupinha sobre o corpo -, rumo a desejado porto seguro, onde seja possível acreditar que amanhã terá de ser outro dia. A esperança, sempre a esperança que a sobrevivência se faça com dignidade. Por aqui se dizia muito que ninguém foge ao seu destino, mas isso era a canção do velho bandido...
(As guerras modernas são sempre comandadas à distância, onde corre o leite e o mel; é sempre a arraia-miúda que vai mais para o maneta e para pouco conta no momento de afirmar heroísmos.)
De pouco vale dizer-te que lamento a tua sorte, mas digo-o e quando o digo fico tomado de impotência. Esta sensação que a maioria nasce para ser joguete nas mãos de poucos não me larga!
Em nome das vítimas efetivas (tão pouco se lhes dá importância, a não ser às grandes patentes!) e colaterais, maldirei sempre, a plenos pulmões, a guerra, quem a faz e apoia, seja ela civil, aberta, fria, intestina ou santa, de pouco me importam!
(A medicina ensina a curar os doentes, a arte da guerra a matar os sãos.)
Oxalá encontres arrimo e coragem suficientes, até ao dia em que te possas valer a ti própria. E não me saiu mais nada, lamento!
Calada a voz clara e nítida, cai um anúncio não-institucional na pantalha, enquanto ainda matutava na tua desventura, miúda. Estive vai-não-vai para atirar ao plasma o livro volumoso que estava ao alcance da minha mão, mas recuei o braço a tempo, que os afetos não se exibem, sentem-se.
(O Sr. Júlio Dinis escreveu que há aparências de dureza que ocultam tesouros de sensibilidade e afeto,mas também há afetos que se prestam a subjugar.)
Sabes, Alzira, que, viver num país livre de operações militares geoestratégicas, económica e financeiramente desenrascado e avonde de boas consciências, facilita a sobrevivência... Desculpa lá qualquer coisinha!