Contos de fados (X)
Zé Antôino fumava cigarros de tabaco com filtro, a um ritmo impressionante, chegava a despachar diariamente 2 maços, um pacote de 5 em 5 dias. Cigarrava por gosto, gostava de saborear o fumo nas profundas da alma. O corpo pedia, a cabeça pedia e ele cedia à tentação. Apreciava a vertigem do primeiro paivante do dia, dava-lhe a volta, prazer até, o rais-parta do fumo, não fora isso e talvez cedesse aos nervos, à má catadura, ao mau temperamento. Se podia excomungar o estresse assim, com aqueles movimentados compassados do braço, a levar à labiadura o cigarro em fase minguante, mas sem boquilhas, bem dispensava as passeatas, as pírulas, as compaixões…
Zé Antôino achava anelante a cena do cigarrito a consumir-se à frente dos olhos, também fumava por mor disso. Depois, gostava de atirar beatas ao chão, evitando os cinzeiros estrategicamente dispostos em todas as esquinas, aquilo dava fulgor à sua faceta anticlerical, o seu desafio à ordem estabelecida.
Zé Antôino não conseguia encaixar o anátema diatribe do sistema que repelia os fumadores ao estilo dos leprosos de épocas medievais, coitados parecem doidinhos, sempre prontos a engolir e a deitar fora baforadas... Ao invés, as empresas que se prestam a pôr cá fora os maços e os pacotes essas são toleradas. Dão largo contributo ao peditório dos impostos, é isso! Os carros também matam e besuntam o ar, mas nem por isso são proibidos, antes pelo contrário, os cidadãos automobilizados têm a cidade a seus pés, um país, 2 sistemas, ora abóboras!...
Zé Antôino teme pelo dia em que os fumadores sejam atirados às masmorras ou às catacumbas, oxalá fosse no dia do Juízo Final, assim poupava-se esforços. Para já aturam palavras-de-ordem macabras nos maços, é para bem deles… Enquanto não forem tratados como terroristas!... As doenças matam, os transportes matam, as armas matam, mas ninguém as erradica, estão voltados para ali os cruzados! E isto acontece nos países do 1º e 2º mundos, que nos outros mundos, o 3º e o 4º nomeadamente, o tabagismo não faz mal algum, não risca…
Zé Antôino fumava do que viesse à rede, deixou-se de esquisitices, há muito, tudo o que fosse cigarro capaz de ser queimado à frente dos olhos servia. Era assim a modos do género de quem, perguntado sobre a marca de vinho preferido, sempre respondia que gostava muito. Mas tinha catarro, pieira e roncava como deus manda.
Zé Antôino mantém-se fiel ao cigarrinho, nada de cigarros de palha, de charutos, de cigarrilhas, de cachimbos ou narguilés. Punha-se a deitar fumo pelos olhos, quando lhe falavam em cigarros de enrolar, ficava lívido, tinha nascido com uma fobia a mortalhas. Tivesse ele nascido mais para trás e talvez mascasse tabaco, como os cobóis insolentes, ou talvez optasse pelo rapé.
Zé Antôino sabe que tem os pulmões inquinados, a circulação destrambelhada, já foi avisado por médicos e médicas que se tem amor à vida que se deixe de cenas e figuras tristes, que ponha a cigarreira e os isqueiros de parte. Que sim, um dia…
Ultimamente não tem sido visto a deitar fumo pela boca, a não ser nos dias frios. Desempregado, com poucos copeques nos bolsos, deixou-se arrastar para debaixo de uma ponte.
Diz-se que morreu de privação.