Descoco
(Durante 2 lustros o suserano tinha sofrido de aguerreação crónica. Num belo dia, após múltiplas tentativas, cura-se. Não perde tempo, fez saber de imediato nunca mais declararia uma guerra – eu seja cego surdo e mudo (lagarto, lagarto! -, fossem elas convencionais, fratricidas, de palavras, de nervos, frias, limitadas, abertas, financeiras, económicas ou de alecrim e manjerona.)
Aclara a voz, aproxima-se do micro, dá-lhe os 2 piparotes da praxe e bota discurso ao conclave, na sala das cortes solenes:
- Guerras há as que um homem quer. Eu tive a minha conta e nunca tive rebuço em dar o primeiro passo. Em todas dei o melhor e de todas sai ileso, graças aos deuses. Agora já não quero ampliar o meu palmarés, não sai mais qualquer guerra para a mesa do canto! Por isso e por muitas coisas mais, devolvo a tiara, a coroa, o cetro, as rédeas e o cavalo do poder. Entrego-as à sua autoridade, ilustre decano! Já não tenho estômago para atribuir medalhas às vítimas e glórias a possidentes. A partir de hoje, vou dedicar-me à pesca, na desportiva.
(El-rei nunca fora gago, embora parecesse. Perante ele, muitas bocas se abrem de espanto, pelo tom, descomunalmente desabrido. Terminada a intervenção, materializa, à sorrelfa, um pirete encarpado, seguido de manguito à retaguarda, ao som de uma imprecação estilosa, com uma mão a tapar movimento dos lábios. Safa-te, Jorge, do que me livrei!).
Os aspones e ministraços ali presentes – para cima de 2 centenas, bem contadas - nunca o tinham visto naqueles preparos. Tolhidos pela surpresa, ficam literalmente grudados às poltronas, babadinhos de todo, como se lhes tivessem interrompido - à má-fé - a degustação de saborosa baba-de-camelo. Vejam só esta, o rei quer pisgar-se à papo-seco e logo hoje, para daqui a pouco está marcado o começo de nova guerra, qui há mescambilha, pardês!...
Nisto, o suserano, lesto alcança o seu gabinete de trabalho (nos fundilhos dos aposentos pessoais, de homem solteirão, mas não virgem) e assina o decreto da própria demissão. Já os cortesãos tinham iniciado uma correria louca a todos os meios de comunicação mais à mão – sinais de fumo e estafetas inclusive –, para fazer chegar o seu pasmo aos gentis-homens de quem são avençados.
- O rei diz que já não está pelos ajustes, não quer mais guerras, sejam conflitos subacromiais, de interesses, intergeracionais, de classe, ou coisa no género. Mais, ele está de partida, a dar banho à minhoca, para o resto dos seus dias. Parece uma decisão irreversível, ditada, com toda a probabilidade por um quadro de neurastenia depressiva, radicado num procedimento de abulia sistémica.
(Numa primeira fase, os bichaços riem-se a todos a bom rir, por conta da irreversibilidade da coisa, um chão que tem proporcionado uvas úberes e cenas tristes. Numa segunda fase, desatam aos berros e a dizer cobras e lagartos do inhaça. Numa terceira fase juram-lhe pela pele: ele atreveu-se a decidir às escondidas, sem dar cavaco a ninguém, quem se julga ele?!)
Os argirocratas amesendados dão-se ares de virgem ofendida, mas mantêm o sangue-frio reservado a grandes ocasiões. Reúnem-se sem delongas na sede do clube mais privativo, rodeados de todos os confortos possíveis e imaginários, pois só assim sabem decidir:
- O monarca é livre de ir pastar para longe, já temos substituto para fazer a mesma figura de corpo presente. Antes, porém, nem que a vaca tussa, esse traidor da classe que põe os outros a operar vai pôr o preto no branco na declaração formal da próxima guerra prevista para ontem, damos a cara por isso! Não se brinca com o futuro coletivo, só porque o comandante-em-chefe das tropas lhe dá na veneta que quer a reforma antecipada e se deixa apaixonar por grelhados. Já temos generais, patrasanas, lateiros e magalas em número suficiente, à espera do preto-no-branco!
A mensagem chega rapidamente aos multimédia, os quais enformam que se dera uma remodelação calma e pacífica.
(Este marreco já arrastava as sapatorras, nem préstimo tinha em agarrar o cetro, não dava uma para a caixa em económicas e financeiras, só nas bagaceiras. Borrou-se todo, é o que é! Ele que ponha as barbas de molho, atira-te ao mar e diz que te empurrarem!...)
No dia seguinte, logo pela manhã, o suserano cofia primeiro as barbas e depois confia a tarefa de as cortar ao seu leal barbeiro de serviço. Deixou de propósito restou-lhe um passa-piolho, a ver se passaria desapercebido. Está já com um pé no estribo do monolugar à prova de bala, quando é intercetado por uma multidão de basbaques e turistas curiosos dos orientes, a tolher-lhe o passe e a disparar as câmaras.
Perante este rematado exemplo de fuga de informação e manifesta inconfidencialidade, o suserano ainda em funções faz meia-volta, dá corda aos sapatos e torna ao ponto de partida, furibundo, a escoicinhar e a soltar todo o vernáculo que lhe ia na alma. Um adjunto mais calmo põe-no a par da situação:
- Os notáveis acham que sim, que pode declinar as suas funções, e até leva a reforma por inteiro. Apenas exigem em troca que use pela derradeira vez o seu sinete e declare a guerra prevista para começar hoje, ao fim da tarde, não custa nada! Vá lá, é só mais uma!
(Já chegámos à Madeira, os gajos não me largam a mão, querem à viva força a minha assinatura. Eles querem guerra, pois vão tê-la! Eu tenho uma pequena surpresa para estes arrebata-punhadas de meia-tigela!)
O suserano aclara a voz, compõe o traje civil, démodé, por sinal, afina com aquela malta toda que se pôs a casquinar, mas fala em tom preclaro, na sala das sessões das cortes:
- Parem lá com as falinhas mansas e com paninhos quentes em que vosselências se especializaram, que a mim não me levam à certa, é tempo perdido! Se os terra-tenentes querem guerra, tê-la-ão. Tenho aqui na mão o diploma que lhes retira a posse de tarecos e tralhas, vai tudo raso, nacionalizado! Calha bem que a minha demissão ainda não saiu no códice oficial, em dois tempos ponho esses pimpões de pé-chato - que ficam em casa a roer as unhas, a pensar em pingues lucros, quando os canhões troam – a pão-e-água ou eu não me chame Tibério, palavra de rei não volta atrás!
(Aqui d’el rei que está bravo o bicho! A mocada que recebeu foi forte e a gente que o julgava apanhado de todo, mas assim talvez arranje lenha para se queimar!)
Um por um os coadjuvantes dos grotas enviam mensagens, por todos os meios e feitios, até por boca-a-boca e telegrama.
- Sua senhoria não transige, amarrou o burro, nada feito, está mais voltado para uma guerra de palavras... Para cúmulo, em caso de insistência, ameaça que vos retira as possessões e deixa-vos de mãos a abanar. O quadro anterior está a evoluir para sandice pura e dura.
(Olha-me o gabiru, quer ver-nos nas lonas, o sacripanta! Que tire o cavalinho da chuva, ainda está por nascer quem nos derribe do poder, armado em revolucionário de meia-tigela, para o que lhe havia de dar, o tantã!)
Os fisiocratas indignados, homens de torcer antes de quebrar, apanhados de calças na mão, no clube privado, agarrados a bons nacos, pois só assim funcionam em plenitude as suas capacidades, mantêm-se inconcussos:
- Essa é forte, pensa que nos consegue arrebatar tudo e só nos deixar com a roupinha que trazemos vestida, mete-se o povoléu, os casuals e o tribunal plenário ao barulho e em 2 tempos, acaba-se a golpada. E logo eles, tão respeitadores do sagrado direito à propriedade! Mas, pelo-sim-pelo-não tentem saber se a gente deu a esse pascácio poderes assinar uma bodega dessas.
A mensagem chega rapidamente aos multimédia, os quais enformam que se dera uma tentativa de golpe de estado, suportada pelo anterior ocupante do palacete real.
Ciosos, os cortesãos partem à inquirição de sacerdotes do templo, leais conselheiros e jurisconsultos de verbo e ventre mais proeminentes.
(A coisa está feia, os cânones e codicilos por nós estudados e compulsados consideram crime de lesa-pátria a evicção da propriedade, SM só pode estar a reinar…)
- 1-2-3-4-5-6-7 com o direito à propriedade dos titulares ninguém se mete, caso contrário é o fim da picada, o caos mesmo!
(Bons conselhos da parte de quem está a precato de males e arrelias do quotidiano podem não ter substância, como corpo sem alma, mas importa que caiam para o lado certo.)
Os dignitários são informados dos pareceres.
- Deixemos o homem partir nas calmas, adiamos a guerra, até porque o substituto só pode ser abençoado pelo patriarca que está no leito a contas com doença ruim. Adiamos a guerra por tempo indeterminado, continuamos a faturar o mesmo, paciência, outros tempos melhores virão. Bebamos a isso, ipe, ipe hurra!
(Seguem-se brindes atrás de brindes, libações atrás de libações, atividades entre lençóis, fogo de artifício e até houve sessões de vermelhinha e de lerpa!)
Da primeira vez que lançou o anzol à água, o suserano filou um peixe opíparo, de se lhe tirar o chapéu, pesava para cima de vinte arrobas. Acondicionado o bicho em arcas frigoríficas, tem sido visto a dormir, regalado, à sombra da bananeira (ou será de um bambu?)
(Tentem ver as coisas na minha perspetiva.)