Diálogos de outono 16
(A propósito de continência sexual)
Na noite de núpcias:
- Amor, vamos à deita.
- Não te apresses, doçura.
- Como não?! Já não sobra nenhum convidado, amor...
- Há sempre Alguém que nos vê, doçura.
- Como assim, já te disse que só estamos os dois, amor...
- Deus vê-nos, doçura.
- Que eu saiba Ele não é voyeur, amor...
- Não fales assim que é pecado, doçura!
- A mim sempre me pareceu que Deus fica feliz, quando nos vê a colher prazer das coisas pequenas e grandes da vida, amor...
- Já pareces a serpente do Éden... Não te enerves e não te precipites, doçura!
- Bem sabes que esta não é a minha primeira vez, já fui casado de igreja, amor...
- Mas, vamos fazer tudo segundo os cânones, está bem, doçura?!
- A continência que me impuseste antes da boda foi muito penosa para mim, amor...
- Pois sim, portaste-te à altura, doçura!
- Olha que não te levei a bem não teres cedido à tentação, ficas a saber, amor...
- Agora me lembro, ainda não pediste escusa canónica, doçura!
- Assim é, mas já tivemos tantas despesas com o casamento e essa pode esperar, amor...
- Olha que não, sem a dispensa do teu primeiro casamento, não há nada para ninguém!
- Olha-me esta, agora, que raio de bicho te mordeu?!
- Nenhum, eu serei sempre fiel aos princípios que orientaram a minha vida, adquiridos no berço, não quero viver de futuro a acumular remorsos!
- Ora bolas, mas tu até aceitaste casar apenas pelo civil!
- Esse pecado já confessei e obtive indulto por antecipação, mas logo o cura me avisou que, em favor da minha salvação, não me convém abrir outras frentes de pecado!
- Ora bolas, Deus sabe que casámos para o que-desse-e-viesse!
- Estás porventura decidido a ir malhar ao caldeirão de Pêro Botelho, tás?! Eu não quero corre tal risco!
- Pois sim, mas olha que é muito triste chegar às portas de Roma e por aí se quedar, sem ver o ver o papa!
- É um risco que corremos, caso não tenhamos na nossa posse o documento que te libera do teu anterior casamento!
- Nem quero pôr-me essa hipótese! Tu sempre foste muito dada a greves sobretudo as selvagens, julgava que tinhas mudado!
- Portanto, ou pagas a desobriga, ou ficas a chuchar no dedo! Das minhas palavras, qual a parte que ainda não entendeste?!
- Suplico-te, abre uma exceção, uma que seja, que a tua lista de pecados é curta, a minha é mais grandita, vá lá mor!
-Que assim seja, mas será uma vez sem exemplo, que deus me perdoe! Mas, não vai haver nada mais para ninguém, sem que antes venha a desobriga, doçura.
- Fica combinado, a gente recasa na ermida mais próxima, logo a seguir, mor!
- Ora, assim é que é falar! Suporto melhor a continência da luxúria que a dos sacramentos, mas desta vez passas, doçura!
- Verás que vai valer a pena, mor!
- Um bom malandro me saíste tu! O que te vale é que te quero muito, mas deus é minha testemunha que não perdes pela demora disso mesmo, doçura!
(E foram fazer pela vida, mas só daquela vez. No dia seguinte, foram à igreja de casamento tratar de papeladas. A desobriga de casamento chegaria por via postal. Depois de largos anos de espera - e de reformulação dos serviços postais -, continuam de esperanças, mas já se desconfia que terá havido sonegação de correspondência...)
«Comunicação sem fios não é novidade para mim. Há 75 anos que não me canso de rezar»