Diletantismo dois
«Vive como se fosses uma alface do Lidl» - assim, sem tirar, nem pôr.
O alvitre votivo está assente num folheto aparentemente anódino - dos muitos que caem, todos os dias, em todas as caixas de correio deste país -, a marcar o arranque de mais uma campanha de descontos.
(A poupança no papel ainda não incomoda grandemente as grandes redes de distribuição alimentar do país. Parte de mim acha bem, que a distribuição de tanta papelagem garante a ganha-pão a alguns respeitáveis cidadãos.)
Nas tevês generalistas (sempre predispostas a cavalgar a onda) também passa publicidade afim. Mas, para mim, propaganda só no papel...
À primeira achei que o pregão não tinha ponta por onde se pegasse e não liguei meia.
Mais, até fiquei de pé atrás: querem lá ver que houve engano na mensagem, uma publicidade capaz não se atreveria a fazer votos de vida curta!
(Decididamente não me pareceu uma ideia forte, daquelas que muita gente adota, estilo «tou xim, é para mim!»).
Pus nariz de palmo e meio, eu que me tenho na conta de cliente fiel da sobredita rede que, dispôs, a 2 passos de casa, uma loja catita (não tenho popó às ordens, pelo que tenho de alombar com os sacos de compras).
Pensei de mim para mim: aqui há gralha, ou então o autor da gracinha estaria descompensado, grosso, ou pirado, quando a pariu... Também há a hipótese remota de se ter deixado tentar por outras alfaces, as do dianho, por exemplo!
(Um senhor famoso, Henry Ford de sua graça, terá dito isto: «Sei que metade da publicidade que faço é inútil, mas desconheço qual seja a metade inútil». Ou seja, às vezes, ideias peregrinas funcionam, certo?)
Só um pouco mais tarde, achei alguma piada ao dichote, havia ali um misto de nonsense e de mensagem subliminar capciosa...
(Atração fatal?)
Faço questão de proclamar que me incluo no número de pessoas que acham que um crescimento humano sustentado passa pelo consumo de alfaces, verduras e hortaliças, em geral.
Faço questão de deixar claro que me incluo no número de indivíduos que sabem ser a alface fonte de vitamina C e outros microminerais, que ajuda a prevenir cancro de pulmão e da boca, que retarda a queda de cabelo, que uma infusão de alface ajuda a dormir melhor e por-aí-fora. Há muito que uso e abuso da hortaliça verde em apreço.
Mas, também me incluo nas pessoas que sabem que uma alface é criada, na varanda, em hortas, ou em estufas e que ele se faz num abrir e fechar de olhos; que será comercializada rapidamente, depois de colhida, numa frutaria, num lugar, numa barraca, num super, ou num híper próximo; que aí fica submetida às apreciações dos curiosos, um dos quais acabará por lhe lançar a mão e por ela pagar por ela modesta franquia; que, já em casa do novo legítimo proprietário, na devida altura, será lavada e deglutida, em 2 tempos, desaparecendo do mapa, em 2 compassos.
Curiosamente, até à data, nunca experimentara alfaces do Lidl. Verduras e frutas só as compro nos mercados, mas, por que não experimentar?
Assesto os óculos do perto no papelucho e continuo a ler: «Para elas (sim, no plural) não há amanhã».
Aqui chegado, ainda permaneço de pé atrás: uma alface dura pouco e quanto a viver intensamente, estamos conversados, está para ali posta em sossego, com o pé de molho, sossegadinha da Silva...
Mas, a música já é outra, já se fala no plural, em alfaces, quanto mais comer, mais fortunas acumularei, certo?
Pelo-sim-pelo-não, no dia seguinte dirijo os meus passos à loja do costume e, num impulso, encho 2 sacos com alfaces, junto quantidade à qualidade, vamos lá tirar a coisa a limpo!
Em casa, cumulo as alfaces de todas as atenções, depois debulho 2-3 delas, acrescento-lhe tomate, pepino e pimento verde e aí está uma ótima salada, a acompanhar o bife da casa, ao almoço e um picadinho à janta.
À hora da sesta, dou-me a escutar uma voz interior que me desafia a ir surfar as ondas gigantescas de Peniche. Olha lá, nunca, até agora, uma voz interior foi capaz de me desafiar assim, a deixar o meu círculo de conforto e viver uma experiência louca, isto promete!
Na madrugada seguinte, acordo cheio de pica e ponho-me a escutar a mesma voz interior que me desafia, desta feita, a integrar-me no próximo Nepal Trekking que se realiza ali para as bandas de Katmandu.
Nessa manhã, volto às compras e de lá saio com mais 4 sacos de alfaces, não vão elas esgotar-se. Preparo nova saldada, mais substancial, desta feita, a acompanhar umas favas com entrecosto, ao almoço e um peixe feito na chapa, ao jantar.
À sesta e durante o sono noturno habitual, a vozinha impõe-se, com novas sugestões
Nos dias seguintes, atirei-me a um fartote de terrines, tortas, focaccias, pestos, galettes e muffins de alface, do Lidl, naturalmente!
E aquela voz a desafiar-me para novas aventuras e eu a sugerir-lhe que aguentasse os cavalos.
(De momento, todas as minhas refeições incluem daquelas alfaces da marca e seus derivados. Estou na esteira de uma vida emérita, longa e esfusiante, quase não tenho dúvidas...).
Dou uma última espreitadela ao citado panfleto, com os óculos do perto: «Os nossos frescos são repostos todos os dias».
Antes assim, a malta apreciadora de alfaces proactivas agradece (dando de barato que alguns frescos sejam renitentes e gostem de se exibir mais que os outros, uma exceção a uma regra bonita)!
Já agora, para que conste, decidi abandonar o regime omnívoro, a comida de plástico (ao regime gourmet nunca me habilitei). Tenho agora para mim que o regime ovo-lacto (mas sobretudo) vegetariano é o melhor para mim e que seria bom para todos os cidadãos do mundo interessados em paz e amor.
Conselhos de amigo são aviso do Céu...
(Entretanto, tenciono buscar panaceia para esta soltura travessa que me acometeu e que faz questão de fazer-se notar, mesmo em horas desencontradas. Como se percebe, só depois de restabelecido, estarei habilitado a seguir à risca as instruções da tal vozinha. Estas alfaces têm, de facto, um potencial diabólico!).
- Tens um pedacinho de alface metido nos dentes.
- Obrigado!