Ouvi ou li (IX)
1 – Uma equipe de futebol da terra defronta outra e leva que contar, uma tareia à moda antiga. A equipe derrotada era da casa e jogou na condição de visitante; a equipe ganhadora era da estranja e jogou em casa, como visitada. O resultado foi um rotundo 5-0, para pena de muito boa gente.
Num jornal (ou terá sido num site?) um bravio patrioteiro escreve que foi um jogo muito disputado, que os derrotados não viraram a cara à luta e deram que fazer aos vencedores. Só fala dizer que os golos marcados tinham caído de roldão pelo céu abaixo.
Outros agentes do ramo, enternecidos, fazem eco do comentário enternecedor.
Fosse 1-0 o resultado final então sim teria sido um jogo desequilibrado!...
2 – Um ministro discorre sobre a boa obra feita pelo seu governo, o desemprego a mirrar a olhos vistos, postos de trabalho em multiplicação, as exportações imparáveis, o crescimento a impor-se. Uma jornalista, de rabo calejado, traz à colação um relatório de peritos de uma instituição que assentou arraiais cá na terra, a cagar sentenças e depois se baldou lá para fora, aonde continua a mandar. Diz o relambório, preto no branco, que muitos empresários indígenas pouco percebem do governo das suas empresas (das suas moradias também, talvez aí resida a pecha). Felino e aquilino, o ministro reage e espanta. Olhe, não se vá sem resposta, a gente está a vender empresas aos estrangeiros exatamente por causa disso, eles são peritos na matéria, não vêm cá para ver passar os cortejos ou as bandas e sempre ensinam qualquer coisinha.
(De cara à banda ficam nacionalistas, associações de empresários disto e daquilo, mais um número considerável de fundações e observatórios.)
Nesse mesmo dia, muito dinheiro de empresários de cá passa lá para fora.
Bem caçado!
3 – O inquiridor sugere a um banqueiro um pedido de desculpa às vítimas dos seus descuidos. Vá lá não custa nada, a mim já me aconteceu esbarrar na rua com uma pessoa, a culpa foi minha e logo apresentei o meu pedido de desculpa. Chama-se a isto falar ao coração (sem se dar conta do empedernido que tem pela frente). Não se ficou sem resposta o devassante: ficam-lhe bem esses sentimentos, meu caro senhor, mas não para mim que já tenho cabelos brancos a dar com um pau, sempre cultivei as boas regras de ética e fiz muito bem a muita boa gente; apure lá esses ouvidos, eu não tive culpa, eu seguia o meu rumo, chega-se um transeunte no sentido contrário que, por acaso é o patrão do banco central, esbarriga comigo e eu esbandalho-me. Quem era merecedor de um pedido de desculpas?
Juiz que um dia delinquiu, raramente perdoa…
4 – O atual chefe supremo da igreja católica, apostólica e romana é um praticante genuíno. Tem um olhar que não engana ninguém, carregado de convicção e lhaneza. Transporta no peito a resiliência e a pertinácia dos simples que são os mais sábios. Acontece que os simples são também ingénuos, dá-lhes para mudar o mundo, mas há valores que não há volta a dar-lhes, diz-se. O senhor pediu aos mafiosos de uma cidade que se deixassem converter. Não sei se algum mafioso seguiu o conselho, só que se ouve dizer que eles são crentes, que se encomendam a santos, são homens de uma palavra só, o que até pode ser um disfarce malévolo do rei das profundas. Nem todos os que batem no peito estão dispostos a abdicar de pecados grossos, grosseiros ou grosseirões, armados em arrependidos, para melhor se safarem de complicações futuras.
Ora, converter-se significa mudar de vida.
Deixar os bancos ao deus-dará não seria mais pecaminoso?
5 – Partiu desta para melhor um dos ícones do cinema caseiro que durou mais de um século, o que é obra. Por ter deixado obra, o senhor recebeu elogios de todos os quadrantes, com exceção dos que não o conheciam de parte alguma. Foi enternecedor apurar tal unanimidade, apenas alcançável em dias soalheiros em que toda a gente diz que o tempo está bom, com exceção dos que acham que não só para contrariar.
Quem é conhecido sujeita-se a isto, o que me faz um certa impressão, porque compartilhei parte da vida com uma pessoa que comparecia sistematicamente aos funerais dos seus conterrâneos, fossem graduados, fossem trolhas, togados, ou purpurados, ia tudo raso.
Foi por ocasião de tão triste episódio que se chegou à frente o chefe da governança e opinou, mais ou menos assim, que tinha a certeza que todos sentiam um aperto muito grande pela partida daquele senhor para o além.
Falar, aperto libro, dá nisto.
O senhor centenário que partia terá tido tempo para franzir o sobrolho…
Ao chefe da governação fugiu a boca para a verdade por si criada. Faltou o ato de contrição, o que teria tornado mais agradável a viagem do venerável que seguia para a eternidade e por tal aliviaria as penas dos que ficam entregues às manápulas da governança.
No aperto, no perigo e na tristeza descobre-se o amigo (o da onça, também)…