Zelos IX
O atual presidente da mais importante democracia do mundo prometeu amuralhar a fronteira que fica a jusante do país; pelos vistos, por ali, passam desvairadas mercadorias e gentes a salto, o que interfere negativamente com o nível de vida, com a qualidade de vida e com a pegada ecológica da população do seu país que é mais próspero da Terra. Durante a campanha eleitoral, ele comprometeu-se em reforçar aqueles indicadores (desconfia-se que a expensas doutros países, alguns dos quais pouco democráticos, convenhamos), um desiderato perfeitamente legítimo à luz de todos os catecismos que mandam não abrir mão das conquistas alcançadas.
O atual presidente da mais elogiada democracia do globo jamais prometeu plantar um muro na fronteira que fica a montante do país mais dotado na economia global, separador raramente atravessado por mercadorias suspeitas e por gentes insuspeitas. Do lado de lá, vivem pessoas abastadas (um pouco menos, é certo) cujo governo até se senta à mesa das confabulações globais com o presidente de democracia mais renomada do globo, aquando das reuniões, ora dos G7, ora dos G8. Os habitantes do lado de lá da fronteira setentrional não são dados a especiais frémitos, quando ultrapassam a divisória dos 2 campos, tal a força do hábito que os leva a visitar amigos e centros comerciais confinantes, na paz de Deus. À sua maneira contribuem para melhorar o nível de vida, a qualidade de vida e a própria pegada ecológica da vizinhança.
Tivessem bom aspeto os homenzinhos e as mulherzinhas que se apinham na raia a jusante da nação mais badalada da democracia do globo e outro galo cantaria. Nos tempos que correm convém que se esteja bem arriado, com bastante dinheiro no bolso e com a autorização de entrada no outro. Só assim pode haver garantias que o candidato a migrante irá contribuir para a melhoria do nível de vida, da qualidade de vida e da pegada ecológica. Que ninguém se arrogue do direito de se aboletar na casa de vizinho acontioso, se chega à fronteira com uma mão à frente e outra atrás. Nestes preparos, quando muito arranja-se permissão para ser refugiado, não fosse dar-se o caso da inexistência de campos habilitados (dão mau aspeto). A entrada clandestina - embora vantajosa para ambos os lados - infringe as regras da sã competição, nada a que um muro não obste.
As fronteiras do quadrante oriental e do ocidental essas não levantam preocupações ao presidente da mais afortunada democracia do mundo: aquilo é só mar, sempre belo e calmo, quando se vive em terra. Também é verdade que dificilmente o mar se deixa convencer a ser entaipado, embora se saiba que por aí grassam tecnologias que não dão hipóteses ao impossível. Já agora, cercar o mar para quê? O mar não escalda ninguém: só quem manobra inadvertidamente, nas suas margens, se pode chamuscar. Se o presidente da república mais importante do mundo não se dispôs a circundar o mar ao seu alcance, é também porque, a oriente e a ocidente não se nota movimentos intensos de desvairadas gentes que ameacem o nível de vida, a qualidade de vida e a pegada ecológica do líder mundial dos países da Terra país, até ver.
Em verdade, em verdade digo que todo o homem e toda a mulher tem direito a proteger os seus domínios e condomínios, seja com muros, seja com valas, seja com arame farpado, seja com arame eletrificado, seja com guardas armados, seja com sistemas de vigilância, seja com recurso a armamento, ou o diabo a 4. O direito de conquista é garantia de legalidade dos limites, não esquecendo naturalmente as escrituras lavradas nos registos de propriedade; nada a opor, é o que a casa gasta! Por mais que se diga que a posse seja a sepultura do desejo, não é por uma mentira ser repetida muitas vezes que se converte em verdade, sabe-o bem o presidente da pátria mais afortunada da Terra...
Naturalmente que se poderá argumentar que a construção de muros, a separar fortunas diferentes, surge ao arrepio ou em contraciclo de eventos libertadores da História recente: o muro mais conhecido, mais famoso e mais badalado – o de Berlim, naturalmente - veio abaixo e foi um alívio e muita gente gabou o gesto. Curiosamente quem mais festejou aquela queda, põe renovadas expetativas na ereção atual de novos muros, mas de estilo mais up-to-date (haverá provavelmente concurso público), ao que parece. Cada vez mais me convenço que o atual presidente do país mais marcante da presente economia global deve contar-se entre os apreciadores da queda do muro de Berlim e muito provavelmente terá nas suas mansões valiosas amostras daquela muralha. Vai uma aposta?
Será que, uma vez mais, quem desdenha quer comprar?
PS: O atual presidente republicano do país mais abastado do mundo parece não ter ainda desistido da ideia de pôr o México a pagar a ereção do muro sulista provavelmente o mais alto, o mais extenso, o mais modernaço e o mais catita do globo. Tanto lhe bastará contratar ou subcontratar temporariamente operários nos mercados laborais da região, a abarrotar de mão-de-obra habituada a ruim pago...